Daqui a alguns anos certamente os fãs de futebol vão se lembrar de 2019 como um ano que mexeu com a história das transmissões do esporte no Brasil. A temporada marcou a ruptura com um antigo modelo tradicional, ao impor novidades tanto para a Série A do Brasileiro como em exibições via internet para competições como Séries C e D e pelo Twitter para futebol feminino.
Em vez de somente contar com a televisão, o torcedor agora tem uma série de novos dispositivos para continuar ligado no futebol. Se por um lado a Série A vive um impasse sobre direitos de transmissão e terá neste domingo, por exemplo, uma partida sem exibição de nenhum canal, outros campeonatos menos badalados ganharam espaço em plataformas até então inéditas.
A Série C do Brasileiro assinou neste ano um contrato de quatro temporadas com a DAZN. A empresa inglesa vai exibir 86 partidas da competição pela internet. Nas duas primeiras rodadas, foram oito jogos exibidos por Youtube e Facebook. O destaque foram os 500 mil acessos registrados no empate por 2 a 2 entre Santa Cruz e Treze-PB.
"Estamos diante de um mercado de transmissão esportiva em evolução para o digital, no qual as emissoras estão repensando os formatos", disse ao Estado o vice-presidente da DAZN Brasil, Bruno Rocha. "A Série C foi a oportunidade perfeita para os nossos planos para o DAZN se estabelecer dentro do futebol brasileiro e expandir a sua presença", completou.
Até mesmo a divisão nacional mais inferior, a Série D, ganhou mídia neste ano. A plataforma portuguesa MyCujoo fechou contrato com a CBF para exibir as partidas da competição, assim como torneios de futebol de base e feminino.
As transmissões são feitas com tecnologia simples, na maioria das vezes com uma única câmera para gerar imagens ou até por um celular apoiado em um tripé e com conexão 3G.
Segundo o diretor do MyCujoo para o Brasil e América Latina, Terence Gargantini, apenas na primeira rodada da Série D a plataforma transmitiu 30 jogos e teve 400 mil acessos. "Nós não queremos disputar com os grandes canais. Temos nosso próprio segmento: os jogos que não passariam na TV. A internet nos ajuda a estar em vários lugares ao mesmo tempo", comentou.
A CBF terá mais de 600 jogos distribuídos em diferentes dispositivos e coordena com as respectivas equipes dos parceiros a padronização das exibições. O intuito é fixar em grande parte dessas transmissões os mesmos conceitos, como ângulos de câmera, padronização gráfica das informações presentes na tela e da linguagem das equipes de transmissão.
IMPACTO
Para especialistas ouvidos pela reportagem, as mudanças no mercado de transmissão estão apenas no começo. "Existe um desafio de atender a audiência das novas gerações. A pessoa olha a TV, mas está com o celular e o tablet nas mãos. Não se consome esporte da mesma forma que anos atrás", afirmou o diretor de negócios da consultoria Golden Goal, Danyel Braga, especialista em marketing esportivo.
Já para o advogado especialista em direito desportivo André Sica, do escritório CSMV, a mudança nas transmissões no Brasil poderiam ser ainda maiores caso a Lei Pelé não fosse tão restritiva. O texto determina que para uma partida ser exibida é necessário os dois times estarem sob o mesmo contrato de transmissão. "Isso atrapalha fundamentalmente a abertura do mercado para novos concorrentes e novos veículos. As legislações mais modernas preveem que o mandante é o detentor do espetáculo e pode negociar."
TRÊS PERGUNTAS PARA:
Manoel Flores, diretor de competições da CBF
1. O que levou a CBF a apostar em novidades para a transmissão dos torneios?
A CBF compreendeu a realidade atual de mídia, que está muito segmentada, e resolveu dar oportunidade para conhecer novas plataformas, para dar distribuição aos produtos da CBF e gradualmente conseguir dar alcance e retorno aos clubes, inclusive também na parte financeira.
2. Existe a possibilidade de se ampliar nos próximos anos as transmissões pela internet?
Temos acompanhado o mercado e observado dentro da nossa estratégia. Não vamos explorar toda e qualquer plataforma, mas com estratégia e dinamismo nós vamos atacar, sim, o mercado de maneira consciente. Mas dentro de uma linha estratégica.
3. Como a CBF avalia o início dessas transmissões pela internet?
O mercado recebeu muito bem. Sejam as federações estaduais ou os próprios clubes, todos estão muito engajados para que os produtos se alavanquem. Principalmente os times enxergam com bons olhos, porque isso representa no futuro a chance de se ter ganhos financeiros.
ANÁLISE: "Poder codificar quem está assistindo é um universo novo"
Por José Sarkis Arakelian*
Não tenho nenhuma dúvida de que o mercado caminha para essa nova era de transmissões esportivas. Em pouco tempo, a gente não vai mais ter essa divisão de o que é de internet e o que é de TV. Com a chegada das smarts TVs, com a internet a cabo em valor mais acessível, e a influência da Netflix, os adultos já estão se acostumando e as novas gerações não têm nem mais essa barreira. É claro que muito depende da economia do País, com a chegada de infraestrutura de internet.
Como é relação "desintermediada", porque não precisa de operadora de TV a cabo, vai redesenhar a cadeia de distribuição de conteúdo. No Brasil, isso está começando. A Globo já percebeu esse movimento e colocou à disposição a assinatura do Premiere pelo aplicativo.
A possibilidade de poder codificar quem está assistindo é um universo novo. Na TV, você sabe por uma medida estatística. No streaming, sabe exatamente quem é a pessoa. Essa quantidade de informações para um futuro próximo pode gerar uma possibilidade de negócios para essas provedoras. Acho que o direito de transmissão digital vai crescer assustadoramente. Existe um potencial para os clubes receberem mais com o digital, mas também tem o potencial de queda da TV aberta. Vai ser importante os clubes entenderem esse modelo.
* Professor de marketing da Faap
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