Quando vão aos estádios, torcedores LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) evitam andar de mãos dadas com seu parceiro. Beijar? Só depois de olhar para os lados e verificar se a barra está limpa, sem olhares de reprovação. Mesmo assim, o bom senso recomenda só um selinho. Usar camisetas ou cartazes que identifiquem algum movimento organizado? Nem pensar. Eles temem agressões físicas e verbais. Sem segurança para ir ao estádio, eles criaram sua própria arquibancada: as redes sociais.
Torcedores LGBT não se manifestam nos estádios para evitar o que aconteceu com os namorados Yuri Senna e Warley Silva. Ao trocarem carícias no Mineirão, no jogo entre Vasco e Cruzeiro, pelo Campeonato Brasileiro, no dia 1º de setembro, os dois foram filmados. As imagens foram publicadas nas redes sociais e canais de internet ao lado de comentários homofóbicos. “Foi uma ação de intimidação, humilhação e chacota”, conta Yuri, que tem 24 anos e atua como empreendedor social.
Outro caso emblemático aconteceu em São Paulo com o palmeirense William De Lucca no ano passado. Na partida entre Palmeiras e São Paulo, esse jornalista de 34 anos se sentiu ofendido por um cântico homofóbico de sua própria torcida e registrou sua indignação no Twitter. A repercussão foi imediata, com mais de 25 mil reações, a maioria de desaprovação. Nos meses seguintes, ele contou 37 ameaças de morte na internet. Por recomendação da Polícia Militar, ficou três partidas sem ir ao estádio, mas confessa que as ameaças continuam.
“Existem muitas pessoas LGBT nos estádios, mas elas têm de ser invisíveis. Não podem ter uma expressão que fira esse ideal de masculino construído pelos estádios. Isso afeta também os heterossexuais que não se encaixam em um padrão de homem viril. Nós somos tolerados desde que não sejamos vistos”, diz William, que se assume homossexual.
O Estado percebeu como os torcedores LGBT buscam o anonimato no futebol durante a produção desta reportagem. Dos oito torcedores que haviam confirmado presença em uma sessão de fotos no Allianz Parque, apenas um compareceu. Só o William foi. No dia marcado, três alegaram compromissos inesperados; cinco não atenderam o telefone celular.
A homofobia (ou LGBTfobia) não está presente apenas nos atos explícitos de violência. Na tese de mestrado “Pelo direito de torcer”, o historiador Maurício Rodrigues Pinto e a pesquisadora Aira Bonfim destacam o discurso preconceituoso presentes nos estádios. “Ofensas como 'bambi', 'maria' e 'galinha' ou os mesmos os gritos de 'bicha' são interpretadas como piadas ou brincadeiras” que fazem parte do jogo, mas ninguém aceita para si”, diz o especialista da Universidade de São Paulo.
ORGANIZAÇÃO
Os episódios individuais de homofobia começaram a se condensar em ações coletivas a partir de 2013. Surgiram as chamadas torcidas livres. A Galo Queer foi o primeiro movimento LGBT de torcedores de um time específico e articulado por redes sociais. A expressão “Queer” significa “estranho e excêntrico”. A partir dos anos 1980, a palavra era um xingamento contra a comunidade homossexual. No fim da década, o termo foi apropriado pelos próprios ativistas que viraram o jogo e adotaram o termo na sigla LGBTQI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queers e intersexuais). É a mesma estratégia que o feminismo usou ao criar a Marcha das Vadias. A Galo Queer mexeu até no emblema do time: o preto se transformou nas cinco cores da bandeira do orgulho LGBT: laranja, amarelo, verde, roxo e até o azul, do Cruzeiro.
Em São Paulo, o coletivo mais relevante é a Palmeiras Livre do qual William De Lucca foi um dos fundadores. A página de 2013 se apresenta como “movimento anti-homo e transfobia, contra racismo e todo tipo de sexismo destinado à torcida que mais canta e vibra”. Hoje, são mais de 10612 seguidores no Facebook, 1646 no Instagram, 50 membros em um grupo do WhatsApp e cinco voluntários na administração. “Estamos tentando articular atividades fora das redes sociais e a partir de uma aproximação com o clube”, diz a fotógrafa e educadora Thais Nozue, que também é co-fundadora da Palmeiras Livre.
A professora Luiza Aguiar dos Anjos, colaboradora da Galo Queer e autora de uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre a Coligay, primeira torcida gay do País, afirma que o principal objetivo dessas torcidas é levantar o debate. “Essas torcidas são na verdade coletivos, não são torcidas organizadas. Elas pretendem dar visibilidade aos torcedores LGBT. Não têm propósito para ir ao estádio coletivamente, mas sim trazer o debate”, diz a pesquisadora.
Ao Estado, a Polícia Militar afirma que "atua com policiamento ostensivo em locais de eventos para inibir o cometimento de todos os tipos de ilícito". Além disso, em outro trecho da nota, a PM afirma que "está à disposição dos representantes das torcidas organizadas que representam todo e qualquer grupo social para promover a participação segura e de acordo com as leis vigentes no país". A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), principal gestora do futebol brasileiro, não se manifestou sobre o pedido de esclarecimentos sobre o tema.
A pauta dessas torcidas não se restringe à homofobia e abrange também transfobia, machismo, racismo e até a crescente elitização do futebol brasileiro. Os torcedores procuram marcar seu posicionamento político também na linguagem. Alguns grupos adotam o termo “torcedorxs”, com o “x” no lugar do “e” para se referir a pessoas contrárias ao machismo e à homofobia.
SAÍDAS
O livro “Bicha – homofobia estrutural no futebol", escrito pelo jornalista João Abel, do Estado, mostra iniciativas de ocupação dos espaços esportivos pela população LGBT que correm paralelamente aofutebol profissional. Uma delas foi a criação de um time de futebol amador formado por homens transsexuais. É o time chamado Meninos Bons de Bola. Outra experiência é a LiGay Nacional de Futebol (LGNF), formada por times LGBTs e que atua como espaço de resistência e de competição amadora para homo e bissexuais.
Ouça a análise do historiador Maurício Rodrigues sobre as torcidas LGBT nos jogos do futebol feminino:
A maneira como cada torcedor se comportou após os episódios de homofobia também indica as estratégias que as torcidas livres estão utilizando para ganhar espaço. O palmeirense William criou a plataforma “Eu sou, eu torço” para dar visibilidade e voz a torcedores LGBTs. É um espaço para narrativas negadas pelas próprias equipes. Passou a ter atuação política e defende a adoção de políticas públicas para promover a diversidade, maior atuação dos clubes e a criminalização da homofobia. Em setembro, o STJD recomenda que os atos de homofobia sejam relatados nas súmulas das partidas.
O cruzeirense Yuri transformou o vídeo homofóbico em forma de declaração de amor ao namorado, invertendo a lógica de discriminação. O casal também abriu uma ação judicial por homofobia na Delegacia de Crimes Cibernéticos de Belo Horizonte contra os agressores mais raivosos entre os mais de 700 comentários publicados.
Após o episódio, Yuri foi convidado para prestar serviços de consultoria ao Mineirão em ações de combate à homofobia. No Dia Internacional do Orgulho LBGT, em junho, o estádio realizou três cerimônias de casamento de casais homoafetivos. Algo inédito no país. O estádio costuma ser iluminado com as cores da bandeira LGBT, além de apoiar eventos relacionados à diversidade de gênero. Yuri também criou a torcida Marias de Minas, que reúne quase 100 torcedores do Cruzeiro. Maria é a maneira como os atleticanos se referem aos cruzeirenses quando querem xingá-los e ofendê-los.
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