Debates sobre excesso de jogos no calendário colocam o comando do futebol em xeque. Há solução?

Discussão antiga no Brasil sobre agenda inchada chega na Europa após mudanças da Uefa e Fifa incomodar atletas, que ameaçam greve por melhores condições de trabalho

Foto do author Rodrigo Sampaio

Enquanto os campeonatos estaduais são os pivôs do debate sobre o calendário inchado no Brasil, a Europa passou a debater o tema após a Uefa aumentar o número de partidas na Champions League, e a Fifa incluir na agenda o novo Mundial de Clubes, que estreia em julho de 2025, nos Estados Unidos. Atletas do primeiro escalão se levantaram contra a crescente adição de datas, argumentando que as entidades não estão preocupadas com o desgaste físico e mental dos jogadores, e sim com lucros. Uma greve geral é especulada, colocando em xeque o comando do futebol internacional.

Há duas semanas, o Sindicato Internacional de Jogadores (Fifpro) se reuniu com lideranças das principais ligas europeias para debater sobre o aumento no número de jogos. Segundo David Terrier, presidente do órgão responsável por dar voz aos atletas, o calendário proposto é inviável. “A Fifa está abusando de seu poder de ditar o calendário de jogos internacionais e expandir suas próprias competições e, assim, aumentar suas próprias receitas”, disse.

Declarações de Kevin De Bruyne são ouvidas por lideranças das ligas europeias e da Fifpro durante reunião em Bruxelas, na Bélgica.  Foto: Virginia Mayo/AP

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Segundo uma pesquisa publicada pela Fifpro, 54% dos jogadores experimentaram uma carga de jogos acima do ideal na temporada 2023/24. A partir de 55 partidas, o estudo indica quantidade excessiva. Julián Álvarez, do Atlético de Madrid, entrou em campo 75 vezes, somando compromissos com o Manchester City, seu ex-clube, e a seleção argentina. Ao todo, o atacante de 24 anos foi relacionado em 83 ocasiões.

O estudo ainda faz uma projeção para Phil Foden e Fede Valverde, dois dos principais jogadores de Manchester City e Real Madrid, respectivamente. Atletas da primeira prateleira do futebol internacional, com a agenda cheia por causa de finais e compromissos com as seleções de seus países, eles devem atuar em até 79 partidas em 2024/25, e 83, em 2025/26.

“Na minha humilde opinião, acho que é demais. Nós ou alguém tem que cuidar da gente, porque somos os principais personagens deste esporte, ou negócio, ou seja lá como queira chamar. Nem tudo é dinheiro ou marketing, é também a qualidade do show. Quando estou descansado, jogo melhor. Se as pessoas quiserem ver um futebol melhor, precisamos descansar. Quando o número de jogos começar a aumentar, o desempenho e a qualidade diminuem”, comentou recentemente Rodri, volante espanhol do Manchester City.

Pep Guardiola, um dos treinadores de maior relevância no cenário mundial, também saiu em defesa de um calendário mais enxuto. “Durante 11 meses são jogos, jogos, jogos. Antes, a pré-temporada eram quatro ou cinco semanas. Agora temos 10 dias. Queremos jogar futebol e aproveitar, mas temos que reduzir. É demais. Não estou dizendo que você tem que eliminar seleções nacionais, ou a Liga dos Campeões, ou a Premier League, ou todas as copas, mas temos que encontrar uma solução. "

Ainda de acordo com a pesquisa da Fifpro, o excesso de partidas pode ter um impacto negativo em atletas jovens, aumentando o risco de uma carreira mais breve no futuro. Aos 21 anos, o craque inglês Jude Bellingham, do Real Madrid, encerrou a temporada passada com 251 partidas como profissional, número bastante acima de outras referências da Inglaterra de gerações anteriores na mesma idade, como Wayne Rooney (212), Frank Lampard (93) e David Beckham (54).

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“É tão difícil com agendas malucas e depois se reunir para o fim da temporada para um último torneio. É difícil para o corpo — mentalmente e fisicamente você está exausto”, disse Bellingham.

O outro lado da ‘moeda’

Apesar das críticas ao calendário inchado por parte dos jogadores, há quem acredite que os próprios atletas são parte do problema. Com contratos cada vez mais astronômicos sendo negociados, clubes e federações precisam de novas fontes de receita para sustentar o mercado. Assim, surge a necessidade deixar o futebol cada mais atrativo tanto ao público quanto aos anunciantes.

Luis Figo, craque português com passagem por Real Madrid, Barcelona e Inter de Milão, comentou o assunto recentemente, citando justamente o outro lado da “moeda”. “Há de se encontrar a melhor solução. Cada vez há mais jogos e isso é como uma bola de neve. Mas, quanto mais jogos, também os contratos são maiores. Se reduzem os jogos, imagino que os contratos também serão reduzidos. Então, é uma questão de equilíbrio, que é sempre muito difícil de encontrar”, disse.

Em entrevista à revista Kicker, Karl–Heinz Rummenigge, CEO do Bayern de Munique, alertou que jogadores e agentes caíram na própria armadilha ao exigir salários, luvas e comissões cada vez mais altos. “De onde vem essa receita? Através de mais jogos. E é por isso que digo: devemos sentar–nos com todos os envolvidos e discutir sem emoção quais mecanismos precisamos para trazer de volta tempos mais sérios e racionais — inclusive em termos de negócio”, comentou o ex-jogador alemão.

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Os salários dos jogadores de futebol passaram a crescer de maneira exponencial a partir da década de 1990, após Tribunal de Justiça da União Europeia decidir a favor do meio-campista Jean-Marc Bosman. Ele entrou com uma ação contra o RFC Liège, da Bélgica, depois de recusar uma renovação salarial menor e não conseguir se desvincular pelo fato de agremiação ser dona do seu passe. Assim, o jogador era tratado como “propriedade” do clube, mesmo com o eventual fim do vínculo trabalhista.

A Justiça decidiu a favor do atleta, encerrando o passe — o caso ficou conhecido como “Lei Bosman” — e definindo ainda que jogadores de de países vinculados à União Europeia não sejam considerados estrangeiros, diminuindo obstáculos contratuais e aquecendo ainda mais o mercado da bola, com transações arrojadas. Um dos episódios mais emblemáticos aconteceu em 2000, quando o Real Madrid pagou a multa rescisória de Figo, estipulada em 60 milhões de euros, para tirá-lo do Barcelona.

“Não podemos desvincular os contínuos aumentos na remuneração dos atletas do constante aumento do valor da exposição das marcas dos patrocinadores dos clubes. Não conheci ainda um atleta que estivesse disposto a, por exemplo, reduzir seus salários e prêmios em vinte por cento, para deixar de atuar em cinco, seis quartas-feiras no ano. Mas o cenário não é tão problemático, já que observamos também um vetor contrário, que é o do enorme e contínuo desenvolvimento do trabalho de prevenção de lesões, e de recuperação dos atletas. Hoje, um número cada vez maior deles se alimenta e suplementa melhor, dorme mais e melhor, com monitoramento das suas especificidades, e com exercícios que não se resumem ao ganho de força, mas também de flexibilidade, agilidade e mais inteligentes”, comenta Thiago Freitas, COO da Roc Nation Sports no Brasil, empresa de entretenimento norte-americana, comandada pelo cantor Jay-Z, que gerencia a carreira de centenas de atletas.

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Novidade na Europa, calendário cheio é dor de cabeça antiga no Brasil

Temporada após temporada, o problema no futebol brasileiro é o mesmo. Jogadores, treinadores e dirigentes reclamam do número excessivo de partidas na temporada. Faltando cerca de dois meses para o fim da temporada, Botafogo e Atlético-MG, semifinalistas da Copa Libertadores, já realizaram 64 e 60 partidas no ano, respectivamente. Caso conquistem o título continental, consequentemente ainda disputam a Copa Intercontinental antes de virar o ano. Marlon Freitas (55) e Gustavo Scarpa (56) são os atletas com mais partidas das respectivas equipes.

“Em um calendário cada vez mais repleto de partidas, os atletas enfrentam uma sobrecarga física constante, com menos tempo para recuperação entre os jogos, o que aumenta o risco de lesões musculares. A fadiga se acumula, afetando a coordenação e a execução dos movimentos, e, em muitos casos, ainda há o retorno precoce após as lesões, sem respeitar o período necessário, por conta da necessidade do resultado esportivo, o que só piora a situação. Com competições internacionais sobrepostas e viagens frequentes, o planejamento físico ideal se torna quase impossível, criando um cenário onde o corpo não consegue se regenerar adequadamente”, comenta Dra. Flávia Magalhães, médica do esporte que trabalha com futebol há mais de 20 anos, presidente da Sociedade Mineira de Medicina do Esporte (SMEXE) e com passagens pela CBF e Conmebol.

Outro fator considerado problemático para o acúmulo de jogos na temporada brasileira são os Estaduais. Apesar de o futebol nacional ter se desenvolvido na figura de competições locais, estes torneios, estes torneios têm menor prestígio e são considerados um impeditivo para o avanço do debate sobre o calendário. Após alterações da CBF, as federações ganharam poder e desde 2023, a classificação para a disputa da Copa do Brasil acontece por meio dos Estaduais. O Santos ficou fora do torneio neste ano, e o Corinthians corre risco de ficar fora em 2025.

“Precisa haver uma racionalização de datas entre as competições. Se os Estaduais forem continuar a existir, é preciso observar que os times que disputam a Copa do Nordeste e/ou a Copa do Brasil, não podem entrar na mesma fase dos que não têm esses calendários. Alguns times que jogam a Libertadores, por exemplo, não jogam as fases iniciais da Copa do Brasil. Algo neste sentido deveria ser pensado para os Estaduais. Não é possível jogar quatro competições ao longo de um único semestre”, argumenta Yuri Romão, presidente do Sport, time que está muito perto de subir à primeira divisão.

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