O debate global sobre saúde mental, aberto pela ginasta americana Simone Biles ao se afastar de quatro finais nos Jogos Olímpicos de Tóquio-2020, chegou ao futebol. A Fifa, entidade que comanda o futebol mundial, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançaram uma campanha para estimular os atletas, principalmente aqueles das categorias de base, a procurar ajuda em caso de problemas emocionais.
De acordo com a entidade, metade dos problemas de saúde mental, considerando a população em geral, aparece perto dos 14 anos. Além disso, o suicídio é a quarta causa da morte de jovens entre 15 e 29 anos. Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, vários fatores pressionam os jovens jogadores.
“Para se manter nos treinos, os meninos quase sempre abandonam a família. Os ambientes das categorias de base ainda são autocráticos. Além disso, eles têm de tirar cada vez mais do corpo e passam a conviver com a dor. Por fim, há a falta de preparo e de acompanhamento psicológico”, diz o especialista que tentou ser jogador de futebol na adolescência.
O problema vai além das categorias de base. Estudo da Federação Internacional de Atletas (Fifpro) mostra que cerca de 23% dos jogadores em atividade sofrem transtornos do sono, 9% relataram que sofrem de depressão e outros 7% são ansiosos. Esses números aumentam entre os jogadores que já se aposentaram: a depressão afeta 13% dos atletas.
A psicóloga e psicanalista Beatriz Breves explica que um atleta está sempre se obrigando a superar seus limites, o que exige um grande sacrifício emocional. “Ele precisa lidar com as expectativas das pessoas e dos torcedores, por ser um esporte de grande interesse popular. São experiências que fazem emergir, variando em cada pessoa e sua história de vida, diversos transtornos, consequência do próprio estresse emocional que a situação provoca”, diz a fundadora da Sociedade da Ciência do Sentir (SoCiS).
Três anos atrás, o atacante Thiago Ribeiro falou sobre o problema ao Estadão. O atacante tomou antidepressivos e remédios para dormir ao longo de nove longos meses. Passou dos 75 quilos, seu peso ideal, para 67; perdeu o arranque e a resistência, características que o transformaram em um dos destaques do título brasileiro do São Paulo em 2006 e do Cruzeiro entre 2009 e 2011. Thiago só tomou coragem para revelar sua depressão quando se sentiu curado, em 2017. Além dos remédios, diz que uma mudança espiritual na vida (tornou-se evangélico) foi decisiva para sua recuperação. Hoje ele joga na Chapecoense.
Outros nomes de peso conviveram com a depressão. O ex-atacante Nilmar, que chegou à seleção brasileira, sofreu com o problema principalmente nos anos finais de sua carreira. Comentarista do Grupo Globo, o ex-meia Pedrinho também já se manifestou publicamente sobre a depressão.
Na campanha, a Fifa também apresenta relatos de atletas e familiares de atletas com depressão. No vídeo de lançamento, Teresa Enke, viúva do goleiro Robert Enke, relata o trabalho da sua fundação para conscientizar pessoas sobre a importância de conversar sobre saúde mental. O goleiro alemão Robert Enke cometeu suicídio após uma crise depressiva em 2009.
Participam da ação da Fifa diversas personalidades do futebol, masculino e feminino, em atividade ou aposentada, entre eles, o ex-lateral Cafu, a ex-zagueira Aline Pellegrino, a atacante Vero Boquete, do Milan, além do mexicano Luis Garcia, a italiana Patrizia Panico, entre outros nomes.
Efeitos da pandemia
Na esteira dos desdobramentos da pandemia causada pelo novo coronavírus, transtornos psicológicos como ansiedade e depressão representam uma espécie de segunda onda de danos à saúde. Isso afeta os atletas de maneira particular, como lembra Luís Eduardo d'Almeida Manfrinati, psicólogo do Sindicato dos Atletas de São Paulo.
“A pandemia tem impactado as pessoas de formas adversas, em especial para os atletas que já vivem em um contexto de grande cobrança e exigência emocional extrema”, opina. Entre avaliações e atendimentos clínicos, o sindicato atendeu em torno de 100 atletas de diversas modalidades.
Lidar com maior tempo ocioso, a falta de oportunidades ou as condições precárias de trabalho, atrasos de pagamentos, necessidade de trabalhos alternativos, preocupações com a saúde pessoal e familiar e incertezas quanto ao futuro da carreira são algumas demandas que se agravaram na pandemia. “Esse cenário é capaz de desencadear sintomas de ansiedade, estresse e depressão, que precisam ser cuidados pensando na saúde mental e no bem-estar do atleta, antes mesmo de pensar na performance”, completa Manfrinati.
Na opinião do neurocientista Nelson Annunciato, é possível adotar algumas atitudes preventivas. “Além das atividades desportivas, a nutrição funcional, algo mais complexo e crucial do que mera alimentação, e noites de sono reparador são necessárias para enfrentar os desafios do dia-a-dia", diz o especialista da Jolivi.
Luciana Ferreira Angelo, psicóloga da seleção brasileira feminina sub-20 e da Associação Brasileira de Psicologia Esportiva (Abrapesp) afirma que o tema tem de ser debatido desde as categorias de base.
"No Brasil, a perspectiva legal (clube formador) tem estimulado esse aspecto. É preciso compreender e perceber as emoções e os comportamentos relacionados ao contexto esportivo por meio de programas que estimulem o autoconhecimento. Acessar características de personalidade, habilidades socioemocionais para desempenho físico e mental, interesses e competências a serem desenvolvidas é fundamental para a carreira de atleta", avalia.
Entre as soluções para os desafios da saúde mental no futebol, a assistente social Silvana Trevisan defende a valorização dos profissionais de Psicologia e Serviço Social que atuam na área esportiva.
“São áreas que tornam o ambiente mais humanizado e enxergam o atleta da base ao profissional além do mecanismo econômico. O ser humano não pode ser fragmentado. Ele precisa ser visto de forma sistêmica. Com isso, sua competência esportiva e emocional dará bons resultados. É preciso humanizar o esporte”, diz a profissional do Sindicato de Atletas de São Paulo.
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