Em todo fim de ano, Paulo Queiroz, de 40 anos, ficava apreensivo, esperando não ouvir o telefone tocar. Se o aparelho tocasse, seu filho não continuaria no São Paulo. Para a sua lamúria, a ligação veio e anunciou a dispensa do menino, então com 13 anos. O garoto em questão é Du Queiroz. Ele viu seu sonho ser interrompido no time tricolor do Morumbi, mas anos mais tarde, depois de enfrentar a escassez de dinheiro e outros dissabores comuns de quem tem tudo contado em casa, provou seu talento e foi a principal revelação do Corinthians em 2021, terminando a temporada como titular no estrelado time comandado por Sylvinho.
"O meu sonho, desde criança, era vê-lo jogando no Corinthians. Pelo futebol aguerrido e porque a gente é corintiano também", conta Paulo, pai de Du e o maior incentivador da carreira do volante, que já foi lateral, meia e atacante antes de ascender aos profissionais. O combustível, muitas vezes, foi a "vida sofrida". "Ficar sem comer às vezes, ir treinar com fome, isso tudo o motivou", diz. Paulo é motoboy e, entre uma entrega e outra, encontrou tempo para conversar com o Estadão.
Até chegar ao time profissional do Corinthians, Du encarou negativas em peneiras, dificuldades financeiras em casa e viu de perto amigos sofrerem as consequências de se envolverem com as drogas. Hoje, tornou-se referência em sua "quebrada". Por isso, quando foi o melhor em campo na vitória sobre o Athletico-PR, fez questão de lembrar de onde veio. Exaltou a sua origem em uma entrevista inusual, fugindo do padrão que se vê entre os futebolistas.
"Para nós, que somos nascidos e criados na comunidade, na favela, sabemos o quanto é difícil um favelado chegar até aqui. Não tenho nem palavras para descrever o que é isso", disse o corintiano na ocasião. Seu pai entendeu o recado. E toda a comunidade tanbém. "Ele quis exaltar a favela para mostrar que todo garoto de quebrada pode ter sucesso, sim. Foi uma mensagem principalmente para os meninos da comunidade", explica o pai do volante do Corinthians.
Cinco casas no terreno da avô
Du nasceu e cresceu no BNH, comunidade situada no Butantã, zona oeste de São Paulo. No campo de terra do bairro, deu seus primeiros passos no futebol. Ídolo dos meninos da comunidade, ele mora até hoje no mesmo local de sua infância com mais 24 familiares no terreno que pertence à avó do jogador e abriga cinco casas.
"Ele sempre ajudou a gente. Sempre fortalece. E agora que assinou o contrato, a vida está andando e estamos fazendo planos de comprar uma casa", comenta Paulo, em referência ao acordo até 2024 com o Corinthians, assinado em outubro deste ano. O sonho, finalmente, se realizou.
Paulo fez vários bicos até comprar uma moto, bem como sua mulher, que já foi caixa de supermercado e empregada doméstica. Levam uma vida simples. Os dois foram pais de Du cedo. Ele tinha 17 anos e ela, 16. As dificuldades atrapalharam, mas não impediram que os dois dessem o suporte de que Du precisava para realizar seu sonho.
Trajetória tem início no terrão
Du iniciou sua trajetória em um projeto social no clube BNH. "O treinador chamava a molecada para se distrair no futebol e, assim, não ir para o crime, se envolver com as drogas. Ele começou a se destacar. Sobrava no meio das crianças", recorda-se Paulo. Em um amistoso, o menino, então com 7 anos, chamou a atenção de um técnico de uma escolinha de futsal do São Paulo, que ofereceu uma bolsa para que ele jogasse lá. Continuou se destacando no salão atuando como pivô ou ala, mas era sempre recusado nos testes para jogar na base do São Paulo, em Cotia.
"Sempre ficava entre os três primeiros, mas nunca era escolhido. Eu ficava indignado. Ele 'rabiscava', era muito habilidoso", lembra o pai. Depois disso, Du disputou pelo Pacífico a Liga de Futsal de Osasco. No torneio, enfrentou Antony, hoje atleta do Ajax e da seleção brasileira, que passou pelo time do Morumbi também. "Era um dando chapéu e outro dando caneta".
Um dos técnicos gostou de Du e pediu para que fosse avaliado no CFA de Cotia. "O professor, quando o viu, ficou abismado", comenta Paulo. O jovem foi aprovado nos testes e, enfim, surgiu a primeira oportunidade no São Paulo, que defendeu por cinco anos, até os 13 anos, quando a indesejada ligação aconteceu para informar a dispensa. "Falaram que ele não tinha evoluído e tal, aquela conversa", lamenta o pai.
A dispensa, nas palavras de Paulo, foi "um choque" para o garoto e o fez voltar a bater bola no terrão da comunidade. Mas, Du, pouco dias depois, foi convidado para jogar o Paulista Sub-13 pelo Osasco Esporte Clube (ECO). Um dos duelos foi com o Corinthians. Ele teve bom desempenho e ganhou a chance de fazer um teste no clube.
"O técnico me avisou no mesmo dia que o Du tinha sido aprovado. Aí o sonho começou de verdade porque ele havia passado no time de coração da família. Foi uma felicidade imensa", relata o orgulhoso pai. Para levá-lo da zona oeste à zona leste foi um desafio. Como o pai e a mãe trabalhavam, o jeito foi ensinar o garoto de 13 anos a fazer todo o caminho sozinho, de metrô, ônibus e parte do percurso a pé.
"Mostrei o caminho. O treino era à tarde e de manhã ele ia para a escola. Saia direto e às vezes nem almoçava porque não tinha tempo", diz Paulo. No fim, tudo caminhou bem, até melhor do que o esperado para Du. Ele foi ganhando espaço na base, atuou como volante e lateral e teve boa performance na Copa São Paulo de 2018, sob o comando de Eduardo Barroca. Houve, porém, um contratempo. Quando achou que subiria do sub-20 ao time principal, isso não aconteceu. Teve de ficar no sub-23 e esperar um pouco mais.
"Ele ficou triste, mas não deixou a peteca cair. Deu a vida nos treinos. O (técnico) Danilo e o (ex-coordenador) Alex tinham outra visão e ficaram admirados com ele no sub-23. A técnica apurada e a garra. Aí ele foi convidado a treinar no profissional e agarrou a chance", ressalta Paulo. "Colocou a vida sofrida dele na ponta da chuteira e foi para cima das dificuldades, de peito aberto".
Du Queiroz foi promovido ao time principal neste ano e fez sua estreia contra o Athletico-PR no fim de agosto. Pouco tempo depois, renovou seu contrato por mais três anos. Em 2021, o volante participou de 16 jogos e fechou o ano entre os titulares. O gol ainda não saiu, mas nem é necessário para Du orgulhar a sua comunidade lá no Butantã. "Para quem não sabia como seria a nossa vida no fim do ano, daqui para frente é só alegria", espera o confiante Paulo.
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