BRASÍLIA - Todos os documentos das fases 1 e 2 da Operação Penalidade Máxima, a que o Estadão teve acesso, mostram e detalham como os criminosos atuavam para ganhar dinheiro fácil nas casas de apostas, cooptando atletas, pagando adiantado a eles e até zombando dos perdedores quando as ações davam certo. São quase 2000 páginas de anotações, registros, prints de conversas no WhatsApp que retratam todo o esquema.
As investigações sobre manipulação de jogos de futebol em esquema de apostas esportivas ganharam repercussão nacional. Elas buscam agora ampliar a rede de financiadores, apostadores e jogadores que participavam da fraude. Junto com o oferecimento da última denúncia à Justiça, um novo procedimento investigatório foi iniciado pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO), que começou a investigação após denúncia da operação fraudulenta feita pela diretoria do Vila Nova, clube goiano. A relação de jogadores envolvidos e de clubes que teriam sido prejudicados pela quadrilha pode aumentar. Em mensagens trocadas, apostadores apontados como líderes da organização citaram “contato”, ao todo, com jogadores de oito torneios estaduais em 2023: GO, SP, RJ, MG, PR, CE, SE e BA. Eles atuaram também nas Séries A e B do Campeonato Brasileiro do ano passado.
“Maravilha, irmão. Então vamos ver com quem a gente consegue casar. Eu tô com contato no campeonato mineiro, tô com contato no campeonato paranaense, tô com contato no campeonato paulista, tô com contato no campeonato baiano, tô com contato no campeonato, cearense”, diz, por mensagem de áudio, Thiago Chambó, em 4 de janeiro. Ele é apontado como um dos líderes do esquema. “Não, é isso que eu ia te falar. Eu tenho aqui no mineiro, tenho no carioca, tenho no paulista, tenho nesse sergipano, tá ligado? E tenho no goiano”, responde Bruno Lopez, outro ‘liderança’ das fraudes das apostas, de acordo com o Ministério Público de Goiás. Ambos foram presos. Bruno agia com sua mulher Camilla Motta.
O advogado de Bruno Lopez e Camilla Motta, Ralph Fraga, afirmou ao Estadão que “ainda precisa conhecer a íntegra do processo para se manifestar a respeito”. A defesa de Thiago Chambó, conduzida pelo advogado William Albuquerque de Sousa Faria, “lamenta a devassa feita na vida do seu cliente e reafirma que esclarecerá todos os pontos da acusação do Ministério Público”.
Também em Goiás, de acordo com a documentação a que o Estadão teve acesso, ocorreu um jogo manipulado. Foi no Campeonato Goiano deste ano. O esquema aconteceu na partida entre Goiás e Goiânia. No dia 12 de fevereiro, Denner Barbosa, ex-jogador do Corinthians e à época atleta do Operário-MT, combinou com Bruno Lopez Moura para que o jogo fosse manipulado em seu fator mais crucial: o resultado. O Goiânia entregaria o jogo no primeiro tempo. Toda a sua linha defensiva, de acordo com as conversas, formada por cinco atletas, estava vendida. O time foi para o intervalo perdendo de 2 a 0, resultado suficiente para que a trama fosse paga pelas casas de apostas.
Na ocasião, a zaga do Goiânia foi composta por Eduardo Leite, Gabriel Alves e Marcelo Xavier. Nenhum dos nomes está entre os citados no documento. Antes mesmo da partida, Bruno Lopez fez uma transferência bancária na conta de Denner no valor de R$ 25 mil. Cada jogador receberia R$ 10 mil. Ao fim do jogo, foi transferido mais R$ 100 mil para Denner.
Os participantes do esquema aliciavam jogadores para que eles realizassem determinadas ações durante as partidas. Em paralelo, colocavam dinheiro por meio de contas falsas em sites de apostas à espera de que essas ações, às vezes improváveis, ocorressem. Com os eventos combinados e a certeza de que as apostas seriam bem sucedidas, lucraram centenas de milhares de reais em rodadas das séries A e B do Campeonato Brasileiro de 2022 e de torneios estaduais de 2023. Até agora, há indícios de fraude em 13 jogos, sendo oito da principal competição.
Em fevereiro, Bruno Lopez, apontado como o principal nome do esquema, indicou aos investigadores que não é o único a operar dessa forma. O Estadão teve acesso ao depoimento prestado por ele, que se apresenta como jogador de futebol de salão e empresário. “(Jogadores me) procuraram para colocar dinheiro neles e dividir os lucros. Acredito que desta mesma forma deva ter um monte de outros”, disse.
Outra frente de investigação aberta se deu a partir da informação de que havia grupos de Telegram onde jogadores e apostadores indicavam quais atletas estavam dispostos a realizar ações para beneficiar apostadores.
Parte dos pagamentos aos jogadores foi realizada por meio de uma empresa aberta em 2022 com a mulher dele, Camila da Silva Mattos, também denunciada por envolvimento no esquema. No papel, a BC Sports Management agenciava jovens jogadores que pretendiam carreira no exterior. Contudo, Lopez demonstrou não dominar dados como o total de atletas e de faturamento.
A firma está registrada em um endereço de Camila em Jardim Guairaca, Zona Leste de São Paulo. Com capital social de R$ 1 mil, a BC Sports movimentou altas cifras em pouco tempo. Alguns dos “sinais” a jogadores, pagamentos antecipados para que entrassem na manipulação, saíram da empresa.
Camila movimentou mais de R$ 2 milhões em pouco mais de seis meses, de março e setembro de 2022, entre entradas e saídas. Um relatório de inteligência registrou operações em dinheiro vivo, depósitos fracionados, burla de limites a serem reportados e movimentação atípica para a renda declarada por ela, de R$ 4,5 mil. No nome dela também constam três carros, inclusive o utilitário esportivo que Bruno Lopez disse em depoimento pertencer a ele.
O empresário delegou à mulher a tarefa de fazer pagamentos pela BC Sports e também a de gerenciar cadastros usados para fazer entradas de apostas fraudulentas em sites como Bet365 e Betano, duas das principais casas que operam no Brasil.
Só na segunda quinzena de setembro do ano passado, Bruno Lopez é aconselhado por Thiago Chambó a evitar contas bancárias atreladas a ele. “Nem transfere mais da sua mulher nem do seu CNPJ para ninguém nas próximas, entendeu? Pega umas contas laranja para mandar”, disse, conforme gravações recuperadas pelos investigadores.
A versão de Bruno Lopez é a de que se trata de uma prática que nasceu por acaso entre colegas da “boleiragem” e que não seria algo sistematizado. Também não indicou responder a alguém como financiador ou líder de uma rede maior. Segundo ele, jogadores de clubes que aparecem no mercado de apostas são procurados por apostadores ou se oferecem por meio de intermediários.
Em agosto passado, durante um período de recuperação de lesão, Lopez teria sido procurado por um deles. “Os caras chegam e contam: ‘Bruno, pode colocar no meu nome (na aposta) que vou tomar amarelo”, disse no depoimento. Embora tenha admitido envolvimento com as ofertas, manifestou uma suposta preocupação ética. Disse que se limitava a manipular cartões amarelos e vermelhos “pois não prejudica a partida”, diferentemente do que seria se manipulasse gols e resultados de jogos.
Das nove pessoas apontadas como apostadores e financiadores do esquema, sete recorreram ao auxílio emergencial na pandemia de covid-19. Receberam, entre 2020 e 2021, juntos, R$ 39 mil. Alguns indevidamente, pois relataram renda superior a R$ 10 mil e tinham trabalho, bens e empresas.
Esquema de apostas
Saiba como MP dividiu membros de organização criminosa envolvida em fraude
O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPGO dividiu os membros da organização em quatro núcleos: de financiadores, de apostadores, de intermediadores e administrativo. Os responsáveis pela apuração sinalizam que o tamanho dessa rede pode ser maior do que a conhecida hoje. Por isso, as apurações seguem para esgotar o tamanho e o alcance do grupo.
Na primeira fase da operação, focada em apostadores e administrativo, 14 pessoas foram denunciadas. Na segunda, dedicada aos financiadores, 16 nomes – alguns aparecem nas duas acusações.
Os apostadores são os que entram em contato e aliciam jogadores, além de fazer pagamentos a eles e nas apostas nos sites especializados. Os financiadores são os responsáveis por garantir que haja dinheiro para pagar atletas que aceitavam a manipulação e para dar entrada nas apostas. Os adiantamentos giram em torno de R$ 40 mil a R$ 60 mil.
Os intermediadores indicam contatos e facilitam a aproximação entre apostadores e jogadores. Já o núcleo administrativo é o responsável pelas transferências financeiras a integrantes do grupo e jogadores.
Caso ganha repercussão em Ministérios Públicos de outros Estados
Com a repercussão nacional do esquema e das suspeitas ainda não confirmadas de manipulação em diversos times de ao menos oito Estados brasileiros, os Ministérios Públicos de outras unidades da federação ligaram o alerta e se preparam para aprofundar as apurações. Clubes também anunciaram providências.
Promotores de Justiça do Ceará já realizaram os primeiros contatos com investigadores de Goiás. O órgão, porém, aguarda confirmação de envolvimento de atletas do futebol cearense para que proceda a uma investigação própria.
Suspeitas de manipulação de resultados rondam clubes do Ceará desde 2021. O caso chegou a mobilizar o Tribunal de Justiça Desportiva de Futebol do Estado do Ceará em âmbito disciplinar e ainda é analisado pelo Ministério Público local. Outros MPs, como da Bahia e do Paraná, ainda não têm procedimentos de investigação sobre o tema.
Em paralelo às investigações estaduais, há uma expectativa de que as investigações cheguem a crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Com isso, poderiam ser centralizadas pela Polícia Federal. O ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou que a PF abra um inquérito para tratar do tema. A instituição já realiza apurações preliminares. Alguns investigadores defendem a centralização por causa da característica interestadual do grupo descoberto pelo MP de Goiás.
Nota de esclarecimento da defesa de Thiago Chambó
Em contato com a reportagem do Estadão, a defesa de Thiago Chambó se manifestou por meio de nota. Leia a íntegra:
“A defesa de Thiago Chambó, patrocinada pelo advogado William Albuquerque de Sousa Faria, lamenta a devassa feita na vida do seu cliente e reafirma que esclarecerá todos os pontos da acusação do Ministério Público. Ressalte-se que não há qualquer denúncia formal sobre Thiago Chambó dar ou prometer vantagem com o fim de alterar ou falsear o resultado de uma competição esportiva porque inexistem indícios de qualquer ilegalidade. A bem da verdade, as conversas selecionadas pela acusação não têm o condão de condenar ou afirmar que seu cliente praticava ilícitos penais.”
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