A janela de transferências do futebol brasileiro se encerrou nesta quarta-feira, dia 2 de agosto. Com isso, apenas jogadores livres no mercado poderão chegar para a disputa do Brasileirão a partir de agora. Na Europa, o prazo é mais extenso. Na maioria das ligas, a janela fecha no fim deste mês. Com as transferências, um debate se reacende no futebol: as regras do Fair Play Financeiro (FFP) em cada competição.
Com inúmeros reforços nas principais ligas do continente, clubes movimentaram bilhões de euros ao longo do último mês. Os valores, em certos casos, impressionam: Jude Bellingham custou 103 milhões de euros aos cofres do Real Madrid (R$ 540 milhões), enquanto o Liverpool desembolsou R$ 370 milhões por Szoboszlai. Reacendem também a discussão sobre os gastos com contratações, considerando as regras do fair play em cada torneio.
O fair play financeiro é um conceito amplo e cada liga nacional na Europa adota suas próprias medidas para “regulamentar” a competição. A Bundesliga, da Alemanha, foi a primeira a regular os gastos dos clubes a fim de nivelar a competitividade entre as equipes. Fez isso na década de 1960. Dessa forma, a medida tenta fazer com que cada time só gaste aquela quantia referente ao que tem em seus cofres, sem comprometer suas contas durante a temporada.
O mais famoso destes mecanismos é o que foi instituído pela Uefa, em 2010. Um ano antes, a entidade criou uma comissão que tinha como objetivo analisar as finanças de mais de 700 equipes do futebol europeu. Desde então, quando foi aprovado, os clubes que se qualificam para as competições da Uefa têm de provar que não têm dívidas em atraso em relação a outros clubes, jogadores, segurança social e autoridades fiscais.
“Eles (os sistemas de fair play) são controles que visam evitar que os clubes de futebol venham à falência. Mas raramente eles vão evitar que um time quebre, porque são medições que acontecem após os números já serem apresentados, mas é uma forma de controlar os gastos”, aponta o economista Cesar Grafietti ao Estadão.
Para avaliar estas questões, a Uefa institui o Comitê de Controle Financeiro dos Clubes (CFCB), que analisa as contas consolidadas, a cada ano, dos participantes das competições europeias. Em 2022, após esforços do presidente da entidade Aleksander Ceferin, foi aprovada novas regras que restringem e controlam ainda mais os gastos das equipes.
O novo sistema passou a valer em junho de 2022 e tem um período de três anos para adaptação. A partir da temporada 2024/2025 em diante, apenas 70% da receita poderá ser utilizada com contratações e salários de atletas. Ceferin debateu por pelo menos cinco anos a imposição de tetos salariais como forma de lidar com a crescente diferença de riqueza do futebol europeu. Mas, diante das complexidades da legislação trabalhista europeia e da forte oposição, abandonou o conceito em prol do novo modelo de gastos, que já está em vigor.
“As primeiras regulamentações financeiras da Uefa serviram aos propósitos iniciais. Ajudaram a levantar as finanças do futebol europeu e revolucionaram a maneira de os clubes serem geridos. Porém, a evolução da indústria e os inevitáveis efeitos da pandemia mostraram a necessidade de uma grande reforma, com novas regras de sustentabilidade financeira”, afirmou o presidente da Uefa.
Punições
Cada liga tem sua própria punição caso os clubes infrinjam o fair play financeiro. Em Portugal e na Holanda, os times podem ser excluídos das competições se não apresentarem um balanço positivo ao final do ano. No caso da Uefa, muito por causa da pandemia, há a possibilidade de registrar um déficit de até 60 milhões de euros (R$ 315 milhões) em três anos.
Caso não consiga equilibrar suas contas, um clube pode sofrer uma série de punições. Elas vão desde uma advertência até a retirada de um título ou de um prêmio, em casos mais graves. O mais comum é a aplicação de multas, quando clubes infringem os códigos da Uefa. No último mês, Manchester United e Barcelona foram multados em 300 mil e 500 mil euros, respectivamente (R$ 1,575 milhão e R$ 2,675 milhões), em análise dos anos fiscais de 2019 a 2022.
No último ano, outros oitos clubes também já haviam sido multados pela entidade. Foram eles: Paris Saint-Germain, Olympique de Marselha, Monaco, Inter de Milão, Milan, Roma, Besiktas e Istanbul Basaksehir. Destes, sete atingiram as metas fiscais em 2023, exceto o Basaksehir.
“A Uefa serve como uma reguladora de um padrão para ser seguido, mas, em teoria, cada liga tem sua autonomia. Uma punição na Champions League não se aplica, obrigatoriamente, nos campeonatos nacionais, e vice-versa”, aponta Marco Sirangelo, mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Loughborough, na Inglaterra, bacharel em Administração de Empresas pela FGV-SP e responsável pelo pilar de negócios e projetos da OutField.
Confira as outras possíveis punições:
- advertência
- repreensão
- multa
- dedução de pontos
- retenção das receitas de uma competição da Uefa
- proibição de inscrição de novos jogadores nas competições da Uefa
- restrição ao número de jogadores que um clube pode inscrever para a participação em competições da Uefa, incluindo um limite financeiro sobre o custo total das despesas com salários dos jogadores inscritos na lista principal (A) para a participação nas competições europeias
- desqualificação das competições a decorrer e/ou exclusão de futuras competições
- retirada de um título ou prêmio
Como ‘burlar’ o fair play
Em meio a essas regulações, os clubes encontram brechas no código para excederem os seus gastos nas temporadas. Uma destas formas é amortizar suas dívidas – isto é, estender o prazo de pagamento – pelos anos. Recentemente, o Chelsea foi um dos clubes que mais se valeu desta tática.
Ao todo, o clube londrino gastou mais de R$ 2,5 bilhões com contratações nas últimas duas janelas de transferências. Para “driblar” as regras da Uefa e do fair play financeiro, o clube utiliza uma estratégia semelhante à das ligas americanas: espalhar o valor pago para os jogadores ao longo dos anos de contrato. Mykhaylo Mudryk, por exemplo, assinou um contrato de oito anos com o Chelsea, até junho de 2031. Os 100 milhões de euros, acertados no momento de sua contratação, serão pagos pelo clube ao longo das próximas temporadas – cerca de 12,5 milhões por ano.
Dessa forma, na revisão das contas ao final de cada ano o fiscal, o impacto será “parcelado”, possibilitando que o Chelsea contratasse mais jogadores – Mykhaylo Mudryk, Wesley Fofana e Marc Cucurella foram contratados segundo este formato. No entanto, para conciliar este modelo, é preciso obter um sucesso esportivo: em 2022/2023, o time londrino terminou na 12ª colocação da Premier League e sem nenhum título nas demais competições.
“Estende o contrato por nove anos e os clubes conseguem amortizar isso de uma maneira mais lenta, impactando menos no balanço financeiro. Estão sempre prontos a encontrar estratégias”, aponta Grafietti. Da mesma forma, a venda de atletas dá uma “injeção extra” nas finanças para que os clubes consigam sanar suas dívidas. O mesmo Chelsea, só nesta janela de transferências, embolsou mais de 260 milhões de euros (R$ 1,3 bilhão) com vendas. Havertz, Mendy, Mount e Pullisic foram alguns dos jogadores vendidos pelo clube nesta janela.
A renda extra entra em consideração no montante que os clubes podem gastar por temporada – 80% em 2023/2024. Juventus foi justamente punida por criar lucros, considerados pela Uefa e pela Serie A, artificiais com a vendas de atletas. O clube foi punido com a perda de pontos no Campeonato Italiano e eliminado da disputa da Conference League nesta temporada.
E no Brasil?
Não há ainda um modelo de fair play financeiro em vigor no Brasil, que regule os gastos dos clubes com salários e contratações. No entanto, a nova Lei Geral do Esporte impõe a criação de um fair play financeiro para a CBF e quaisquer outras ligas do País, conforme consta nos artigos 187 e 188 da Lei.
- Art. 187. As organizações esportivas promoverão a prática esportiva com base em padrões éticos e morais que garantam o fair play ou jogo limpo nas competições.
- Art. 188. Cada organização esportiva de abrangência nacional que administra e regula a respectiva modalidade esportiva deverá criar regulamento de fair play financeiro aplicável no âmbito das competições que promover e ao qual se submeterão as organizações esportivas associadas ou filiadas.
Apesar de obrigatório, esse modelo ainda tem que percorrer caminhos para ser implmentado no País, segundo especialistas. “No Brasil, temos nossos principais clubes, de maior arrecadação e número de torcedores, ainda configurados como associações. São palcos de disputas que acontecem a cada dois ou três anos por um cargo que dá a alguém o poder de ‘mudar tudo e trocar todos’, gerando uma busca insana e por vezes irresponsável de títulos. Até que duas das três, ou três das quatro maiores forças do nosso futebol tenham um acionista majoritário, não acredito que exista qualquer chance de implantação de um modelo razoável ou decente de ‘Fair Play Financeiro’ no Brasil”, afirma Thiago Freitas, COO da Roc Nation, empresa de entretenimento norte-americana, comandada pelo cantor Jay-Z, que se tornou acionista majoritária e controladora da TFM Agency, companhia com mais de vinte anos de experiência no futebol mundial e que gerencia as carreiras de Vini Jr, Paquetá, Endrick e Gabriel Martinelli.
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