PUBLICIDADE

Futebol feminino no Brasil vive onda de cortes após País ser anunciado como sede da Copa de 2027

Flamengo, Atlético-MG, Santos, Internacional e Ceará são alguns clubes com polêmicas na modalidade

PUBLICIDADE

Foto do author Leticia Quadros
Foto do author Laryssa Campos
Por Leticia Quadros e Laryssa Campos

Desmonte das categorias de base, cortes no investimento, abandono de competição e casos de assédio. Essa é uma parte da realidade do futebol feminino no Brasil. Os acontecimentos trazem questionamentos sobre o futuro da modalidade, considerando que o País foi escolhido como sede da Copa do Mundo Feminina de 2027.

Para a historiadora do esporte Aira Bonfim, a 3 anos do evento, a situação revela a falta de comprometimento dos clubes e da própria CBF, que não é uma novidade. “Desde a década de 90, são notícias corriqueiras, projetos que surgem e são encerrados de forma precoce. As mulheres que quiseram viver do futebol dentro e fora do campo sempre cobraram muito das entidades esportivas esse exercício de fazer projetos de médio e longo prazo”, lembra.

Flamengo e Santos viveram turbulências recentes no futebol feminino. Foto: Staff/CBF

PUBLICIDADE

Dentre esses projetos, as categorias de base sempre foram uma reivindicação histórica da modalidade, entendendo que esta é uma parte importante da formação das atletas, algo que já acontece de forma natural no futebol masculino.

Por causa disso, os eventos recentes, como o fechamento da base de Flamengo e Atlético Mineiro, podem ser encarados como um retrocesso. “É um País que, mesmo se candidatando para receber o maior evento da modalidade no seu país, não consegue perceber o buraco que é de uma decisão como essa, de encerramento de projetos de futuro. Não me surpreende, mas fico feliz pelo barulho que é feito pelas pessoas e meios de comunicação”, completa Aira.

Para a professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Coletivo Marta, grupo de pesquisa de culturas esportivas,Ana Carolina Vimieiro, o fato da comunicação do fechamento das categorias de base ser feita pela imprensa e não pelos clubes é algo significativo. “Os clubes se pronunciam apenas quando as informações vazam. Além de ser um desincentivo, é um desrespeito com essas pessoas, com as atletas, os profissionais envolvidos que, de alguma forma, são quase informados pelos sites de notícia. É uma sensação muito ruim de todo o processo”, afirma.

Desde 2019, todos os clubes que disputam a Série A do Campeonato Brasileiro são obrigados a ter um time feminino, por isso esses clubes ainda mantêm a equipe sub-20. Para Ana Carolina, a postura de Atlético e Flamengo mostra que, apesar de haver um time, não há investimento. “Eles estão interessados em cumprir a regra para colocar dinheiro no futebol masculino. Mas eles não conseguem ter o mesmo tipo de retorno que um time como o Corinthians começa a ter, porque para você ter retorno você precisa investir. Eles nunca fizeram investimento. São um conjunto de pequenas decisões para cumprir essa regra, mas nunca fizeram investimento efetivo na modalidade”.

Veja abaixo a situação de alguns clubes

Flamengo

Atual campeão da primeira edição da Copa São Paulo de Futebol Júnior Feminina, um dos torneios mais importantes do futebol de base, o Flamengo anunciou na última semana o encerramento dos times sub-15 e sub-17.

Publicidade

As categorias existiam desde 2001, começando pelo sub-13, passando pelo sub-14, sub-16 e chegando ao sub-20. As primeiras foram fechadas ao longo dos últimos anos. A última é a única categoria que permanece ativa no clube carioca. Algumas jogadoras mais jovens foram integradas ao time sub-20, mas a maior parte foi dispensada.

A decisão não foi comunicada previamente a pais e atletas, que descobriram o que acontecia quando foram levar as filhas para o treino, causando surpresa e revolta. O Flamengo é o clube que mais arrecada no Brasil, com um orçamento superior a R$1 bilhão de reais. A diretoria rubro-negra não se pronunciou sobre o caso.

Atlético-MG

Outro clube que encerrou as atividades da base foi o Atlético Mineiro. No início de 2024, a equipe responsável pelas atletas foi comunicada do fim do trabalho. O treinador Eduardo Serafim e alguns outros profissionais foram desligados das atividades.

À época, Serafim fez uma publicação nas redes sociais afirmando que não lamentaria a falta de apoio à modalidade, mas exaltando o trabalho que tinha sido feito com as atletas. Com o técnico, as vingadoras tiveram as melhores campanhas do Brasileirão sub-20 e sub-17, além de conquistar o vice-campeonato da Copa Nike Sub-17.

PUBLICIDADE

Com o trabalho, o Clube ainda teve as jogadoras Alícia, do sub-15, e Tay, do sub-17, convocadas para a base da Seleção Brasileira. O Atlético afirmou que a medida faz parte do processo de reestruturação das equipes femininas. Em nota, a coordenadora Luiza Duarte disse que o clube vai fazer uma parceria com um projeto social para a disputa do Brasileirão sub-20 deste ano, e que o objetivo é retornar com o projeto interno para 2025.

Santos

Vivendo a pior temporada da história da equipe feminina até o momento, o Santos corre o risco de sofrer um rebaixamento inédito no Campeonato Brasileiro. O desempenho ruim acontece depois do escândalo envolvendo o treinador Kleiton Lima.

A polêmica teve início em setembro de 2023, quando 19 jogadoras do clube enviaram cartas manuscritas ao então presidente Andrés Rueda denunciando Lima por assédio moral e sexual.

Publicidade

O técnico, que nega as acusações, foi afastado do cargo, mas em abril deste ano o Santos anunciou o retorno de Lima ao comando da equipe. A notícia do retorno causou desconforto e revolta, não apenas nas Sereias da Vila, mas em jogadoras de outros clubes, que organizaram um protesto antes de alguns jogos do Brasileirão Feminino.

Com a polêmica, o treinador pediu afastamento do clube. Na última semana, Lima foi suspenso por 18 jogos pelo Tribunal de Justiça Desportiva de São Paulo (TJD-SP), por causa das denúncias. A decisão cabe recurso.

Outro aspecto que explica a situação da equipe é o corte no orçamento da modalidade. Com o rebaixamento da equipe masculina, o Santos reduziu o investimento no Futebol Feminino em 12,76%.

Ceará

O rebaixamento também afetou a realidade do Ceará. Desde 2022, ano da queda do time masculino, o clube abandonou o futebol feminino. Este ano a equipe anunciou a desistência da Série A2 para focar apenas no time masculino.

A situação é reflexo da não renovação de contrato com as jogadoras e a comissão técnica para a temporada de 2023. No primeiro ano na série A do Brasileirão Feminino, o time viveu dificuldades, e sofreu uma goleada histórica de 10 a 0 para o Flamengo. Na ocasião, a jogadora mais velha tinha 22 anos, e a mais nova, 14.

A falta de investimento freou a evolução da equipe, que tinha sido campeã da série A2 do Brasileirão feminino, em 2022, conquistando, assim, o acesso inédito à primeira divisão. Os gastos com a equipe comprometiam menos de 1% do orçamento do clube.

Internacional

Em 2022, o Internacional anunciou cortes no orçamento destinado à equipe feminina. O planejamento orçamentário para 2023 foi de R$7,7 milhões, valor que representa uma redução de cerca de R$1,5 milhões. Mesmo com a redução, as atletas conquistaram o Gauchão Feminino e a Ladies Cup.

Publicidade

A redução da verba fez com que o clube perdesse sua maior artilheira, Fabi Simões. O Inter propôs uma diminuição de 25% a 30% no pagamento da atleta. A saída da atacante foi negociada, mas ela acabou indo para o Flamengo.

Para 2024, no entanto, o cenário teve melhora. O Clube anunciou o investimento um pouco maior que R$9,5 milhões. Ainda assim, as jogadoras têm enfrentado desafios para trabalhar. A equipe enfrentou a Ferroviária pelo Campeonato Brasileiro Feminino no SESC em Porto Alegre. O campo, no entanto, estava em condições precárias com muita lama e buracos.

Por conta das fortes chuvas na cidade, o local está desgastado. As atletas pediram que o jogo fosse realizado em outro local, mas não foram atendidas.

Caso Corinthians: o investimento no futebol feminino

O Corinthians, maior campeão de todos os torneios da modalidade feminina, tem obtido sucesso não é à toa. O clube começou a investir na categoria antes de se tornar uma medida obrigatória.

Em 2023, as brabas venceram todos os campeonatos que disputaram, chegando a levantar mais taças na temporada do que perder partidas.

A expectativa para este ano é de gastar R$16,7 milhões em salários. O Clube também espera tornar a equipe feminina autossustentável e arrecadar R$10,4 milhões em patrocínio.

Corinthians é a principal referência do futebol feminino no País. Foto: Mauro Horita/CBF

O Corinthians tem sido um caso de sucesso também com o público. Em junho, a equipe quebrou o recorde de público durante a partida contra o São Paulo, na Neo Química Arena, em 2024. O estádio recebeu 45.747 pagantes para assistir ao jogo válido pela nona rodada do Campeonato Brasileiro.

Publicidade

O maior público tinha sido durante o jogo entre Santos e Bragantino, na semifinal do Campeonato Paulista, com 44.804 torcedores.

Para Aira, a torcida é parte indispensável do futebol e o Corinthians já entendeu isso. “Esse projeto bem-sucedido (do Corinthians), já revelou a possibilidade de uma maneira sustentável de vender esses ingressos, de cobrar dentro dessas ocasiões onde você tem um engajamento muito maior da torcida com o produto futebol feminino”, define.

Impactos para além dos gramados

Considerada a “razão de ser do futebol”, a torcida também é impactada pelo descaso dos clubes com a modalidade. Colecionando números expressivos de público no campeonato nacional e nos estaduais, o futebol feminino já provou que pode ser vantajoso.

A logística, porém, para que as pessoas acompanhem os jogos nem sempre é fácil, como sinaliza Ana Carolina. “Você tem um desincentivo, tem um contexto que vai dificultando o consumo do jogo. São lugares de difícil acesso, não é muito bem divulgado, jogos com portões fechados”, alerta.

A torcedora do Atlético Mineiro Aline Medeiros relembra que por diversas vezes os jogos eram realizados às segundas-feiras, praticamente impossibilitando a presença do público. Em contrapartida, ela também rememora várias partidas emocionantes, como o jogo de acesso do clube à série A do Brasileiro. Para ela, porém, o que faz com que as pessoas acompanhem é o bom futebol. “O time feminino era competitivo. Você via o jogo, você via as meninas jogando bem, você via um time competitivo”, conta, lamentando a situação atual da equipe.

Essas lembranças mostram como o futebol feminino tem condições de atrair o público. Para Ana Carolina, a descontinuação das bases dos clubes têm impactos que vão além das questões técnicas. “A decisão dos dois clubes de maior poder financeiro do futebol (Atlético Mineiro e Flamengo) impactam, sobretudo, no crescimento do público e do interesse em torno do futebol de mulheres”, afirma.

Com a confirmação do Brasil como sede da Copa do Mundo Feminina de Futebol, as torcedoras têm a expectativa de que a modalidade seja mais valorizada. A presidente da Força Feminina Colorada, Daiana Scatena, está empolgada com o evento. “Em 2027 o Beira Rio será sede da Copa do Mundo e com certeza precisamos aproveitar o momento de visibilidade para valorizar ainda mais a modalidade. Essa já é uma exigência da nossa torcida organizada”, afirma.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.