Campeão brasileiro em 1978, o Guarani já foi uma das potências do futebol paulista, berço de bons jogadores como Neto, Luizão e Careca. É, até hoje, a única equipe do interior do Estado a conquistar o principal título nacional. Quarenta e cinco anos depois, o clube disputa a Série B do Brasileiro, mas alcança novos patamares em sua história por acaso na cultura sul-coreana.
A 18 mil km de Campinas, em Seul, o clube se tornou sinônimo de estilo e moda – assim como são Paris Saint-Germain, Los Angeles Lakers e Las Vegas Raiders para a cultura ocidental. Em lojas virtuais, nas ruas do país asiático e nas redes sociais é possível observar cidadãos comuns com a camisa do time campineiro – muitos nem sabem do que se trata.
A origem da popularidade da camisa do Guarani na Ásia é incerta. Uma das possibilidades, defendida pelo próprio clube, é de uma excursão na década de 1990 pelo Japão. A delegação bugrina venceu o Verdy Kawasaki, por 2 a 1, e depois perdeu para o Kashima Antlers, por 3 a 1. A passagem durou dez dias, mas os uniformes foram o grande destaque nas partidas. O problema dessa versão é que isso aconteceu há muito tempo.
Produzida pela Dellerba, marca de artigos esportivos de São Paulo que dominou o futebol brasileiro no passado, a estética conquistou apaixonados no Brasil e na Ásia. Alexandre Gaúcho, um dos jogadores na delegação do Guarani daquele ano, confirma a turnê do clube pelo continente e o sucesso que ele fez. Em contato com a reportagem do Estadão, porém, ele não se lembra de muitos detalhes. “Já fui quatro vezes ao Japão também, não me recordo de momentos específicos pelo time.”
Quase 30 anos depois, os modelos do Guarani, com a marca Dellerba, são vendidos em sites e aplicativos de moda da Coreia do Sul. Não são réplicas idênticas, mas adaptações dos uniformes da equipe no período. Escudo e patrocínios se mantêm da época, mas com leves alterações, a principal sendo as cores e tecido dos produtos. Modelos nas cores rosa, azul e preta – algo impensável, já que é usado pela rival Ponte Preta. Os modelos têm cortes modernos e folgados, assim como o dos anos 1990.
No Brasil, a história do produto ganhou repercussão nas redes após Rio, artista do grupo NiziU, vestir o moletom do Guarani, em outubro do ano passado. No mês seguinte, Gaeul, do IVE, grupo de k-pop – termo usado para descrever uma forma moderna da música pop sul-coreana –, utilizou um modelo da cor rosa. A artista IU também apareceu na última semana com um moletom, desta vez em tons azulados, enquanto autografava itens de fãs.
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“Diretamente de Tóquio para Campinas. É uma honra ver a Rio, do grupo japonês NiziU, com o nosso manto. É o Guarani até do outro lado do mundo! Quem sabe depois não atualizamos a camisa?”, escreveu o perfil oficial do clube em suas redes sociais no ano passado. Ao Estadão, o Guarani, assim como os torcedores, se mostrou “surpreso” pela repercussão. O clube não ganha nada com os modelos fabricados e vendidos na Ásia.
“Essa repercussão foi totalmente inesperada para nós, do Guarani. Um alcance gigantesco, e uma conexão cultural até então impensável. Tivemos uma exposição imensa da marca, uma visibilidade muito grande no cenário internacional”, afirma Adriano Hintze, do Conselho de Administração e responsável pelo departamento de marketing do clube de Campinas. Na última semana, o clube lançou seu novo uniforme para a temporada de 2024, com referências ao título brasileiro de 1978. O time disputa o Paulistão.
Em breve, o torcedor do Guarani terá mais novidades dentro desse universo k-pop
Adriano Hintze, do Conselho de Administração e responsável pelo departamento de marketing do Guarani
“Agora, já trabalhamos para fazer mais barulho em cima disso. Em breve, o torcedor terá mais novidades dentro desse universo k-pop”, garante Hintze, que quer de imediato resolver essa questão das camisas alvinegras. “Eles desconhecem a história do clube e toda rivalidade existente em Campinas. Queremos mostrar ao universo K-pop que jamais um torcedor do Guarani usaria esta cor como manto (o preto da Ponte). A camisa do Guarani tem uma história grandiosa em todo cenário nacional e até mesmo internacional no meio do futebol, e as tradições precisam ser respeitadas.”
Repercussão nas redes sociais brasileiras
O caso do Guarani é inusitado – em especial pelos “Idols”, termo dado aos artistas do k-pop – não saberem, de fato, a origem do time. No entanto, ele não é único: nas redes sociais, há diversas comunidades de amantes do futebol e da cultura sul-coreana, autointitulados “Futkpop” – junção do nome do esporte e do estilo musical.
O perfil no X (antigo Twitter) “Bugre do Kpop” foi um dos primeiros a encontrar a fonte dessas camisas. O site ABLY, da Coreia do Sul, vende diversos modelos do uniforme do Guarani com a marca Dellerba. Cada item é vendido por 47 mil wons – equivalente a R$ 173. “Comprei na cor preta, mas ficou tão lindo que comprei outro modelo verde”, diz uma das reviews no site. Durante a produção desta reportagem, 22 pessoas estavam na página do anúncio simultaneamente.
Além do Guarani, outro caso recente, entre k-pop e Brasil, ‘empolgou’ torcedores nas redes sociais. Ningning, do grupo sul-coreano Aespa, durante turnê no País, recebeu uma camisa do Flamengo com seu nome. O show ocorreu em setembro, no Espaço Unimed, em São Paulo. No mesmo ano, o grupo Ateez usou uniformes do Palmeiras no Allianz Parque.
Para o marketing, essa relação é importante para divulgar as marcas dos clubes e dos grupos musicais. O Manchester City promoveu um encontro entre Erling Haaland e a artista Jisoo, do Blackpink, em julho: somados, eles acumulam quase 110 milhões de seguidores no Instagram.
Marlon Victor, de 18 anos, é fundador do perfil FLA-IVE, que junta as suas paixões pelo Flamengo e o grupo IVE. Ele é um dos milhares que navegam pelos dois mundos, futebol e música. Em sua conta, já compartilhou uma série de momentos em que os dois ‘mundos’ se combinam. “É muito legal ver as reações das pessoas ao saberem que esses mundos não só podem existir como existem diariamente. Minha conta tem sete mil posts, mas uns bons três mil são sobre futkpop”, conta.
A origem da página partiu de uma brincadeira com sua namorada. “Hoje ela é muito ligada ao Flamengo e eu ao k-pop”, brinca. “A bolha de futkpop existir por si só já é um ato de carinho e resistência muito grande. É um dos poucos lugares da Internet que veremos homens e mulheres, de todas as sexualidades e idades, interagindo com respeito, páginas enormes que acabam influenciando pessoas a desmistificar visões ruins sobre o estilo. Meninas que tinham uma visão sobre futebol ser só sobre violência e xingamentos encontram pessoas de paz.”
Uma destas “páginas enormes” é a Central do Braga. Ainda que não tenha seu conteúdo voltado para a música, utiliza de sua influência para divulgar conteúdo sobre k-pop para um público diferente do usual. “Já recebi mensagens de pessoas que tinham vergonha de falar que ouviam k-pop, ou postar sobre, e quando eu comecei a postar isso na página, elas criaram coragem para falar sobre isso também”, afirma Andrade, 19 anos, administrador e manager da Central do Braga, perfil dedicado ao Red Bull Bragantino.
Marketing dos clubes
“Não vejo tantos grupos visitando clubes ou tendo interação pessoal com jogadores. Se acontecesse com mais frequência seria algo incrível que só renderia frutos para ambos os lados”, aponta Andrade. No último ano, além do caso de Haaland e do Manchester City, o grupo sul-coreano Stayc é outro que visitou instalações de times europeus – no caso Rangers, da Escócia, e Atletico de Madrid, da Espanha.
Clipes e performances das artistas também são repletas de referências à cultura do futebol. Em Baddie, do grupo IVE, Liz, uma das cantoras, utilizou uma camisa do Newcastle no clipe. O mesmo ocorreu com Jennie, do Blackpink, na gravação de Pink Venom, na qual usou um uniforme do Manchester United. Já na visita do City à Coreia do Sul, além do encontro, Haaland e Jisoo gravaram um programa no qual, entre perguntas e respostas, a artista ensinou coreografias ao atacante.
Jisoo é uma das quatro integrantes do Blackpink, formado pela YG Entertainment em 2016 e um dos principais grupos de k-pop, estilo musical com origem na Coreia do Sul. Em 2023, a artista lançou duas novas músicas solo: FLOWER e All Eyes On Me. Além dela, Lisa, Jennie e Rosé completam o quarteto.
“Os torcedores adoram quando isso acontece, na verdade, algumas instituições usam essas ações para buscar a internacionalização da marca. Vale lembrar que hoje a briga por audiência é grande e, obviamente, é uma forma de consumo e de receita. Vale um estudo das culturas de ambas as partes para ter uma conexão, uma história, e assim virar algo forte e recorrente”, aponta Renê Salviano, CEO da Heatmap e especialista em marketing esportivo. Em 2023, o Botafogo publicava edições, após suas vitórias no Campeonato Brasileiro, ao som de músicas de k-pop.
Ainda não houve um clube brasileiro lembrado por algum grupo musical de k-pop em clipes. Com o sucesso do Guarani, no entanto, isso pode ser uma tendência para o futuro – inclusive com o time bugrino. “O futebol está cada vez mais conectado com o universo streetwear. Apesar de ser uma camisa antiga, este caso do Guarani pode exemplificar um pouco dessa aproximação dos nichos. O Barcelona, por exemplo, realizou diversas ativações no uniforme para explorar a indústria musical e conseguiu grande visibilidade”, comenta Fernando Kleimmann, sócio-diretor da Volt Sport.
O exemplo citado por Kleimmann refere-se ao grupo Le Sserafim, que visitou as instalações do Barcelona no último ano, em parceria com o Spotify, patrocinador máster do clube espanhol. “No processo de criação dos uniformes da Volt, sempre buscamos nos atualizar das tendências para criar produtos que podem ir além das arquibancadas, potencializando as receitas do projeto e expandindo a divulgação da marca”, reforça Kleimmann.
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