O Juizado Especial de Defesa do Torcedor do Tribunal de Justiça de São Paulo tem o desejo de estender a imposição de torcida única para clássicos do futebol nacional. A medida, em vigor desde 2016, vale atualmente para clássicos paulistas. Agora, o TJ-SP quer propor que também seja aplicada em Palmeiras x Flamengo e Palmeiras x Cruzeiro sempre quando o time alviverde for o mandante e esses jogos ocorrerem na capital paulista.
Na avaliação do Juizado do Torcedor, a torcida única em São Paulo tem sido bem-sucedida, uma vez que não tem havido brigas de torcida no estádio. No entanto, longe deles, proliferam os confrontos entre as organizadas. O mais recente foi uma emboscada da Mancha Alviverde contra a Máfia Azul, do Cruzeiro, que resultou na morte de um torcedor, além de 17 feridos.
Três dias depois do episódio, a Justiça acatou o pedido da Polícia Civil e do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e decretou a prisão do presidente da Mancha, Jorge Luís Sampaio, e outros cinco integrantes da organizada, que está proibida de entrar em estádios em São Paulo sem período determinado. Os seis acusados seguem foragidos e um sétimo integrante da uniformizada palmeirense foi preso.
“Seria uma ampliação gradual para confrontos problemáticos, e havíamos identificado o Flamengo e Palmeiras. Agora a discussão poderá abranger também o Palmeiras e Cruzeiro”, diz ao Estadão o Promotor de Justiça Roberto Bacal, membro do Juizado do Torcedor. Conforme o promotor, a ideia é aplicar a medida “diante do histórico de violência envolvido”. Nesses casos, estudam estender para os dois jogos porque houve morte em confrontos recentes entre as torcidas das equipes em questão.
“Trata-se de uma medida restritiva excepcional, a ser aplicada em casos pontuais, com recomendação própria para os jogos dessas duas torcidas nos campeonatos que virão, observadas as regras desportivas”, afirmou o juiz José Fernando Steinberg, também integrante do Juizado do Torcedor.
Segundo o desembargador Sérgio Antonio Ribas, coordenador da comissão do Juizado, a implementação da torcida única trouxe “segurança para as famílias e para os torcedores”, embora proliferem os casos de violência longe dos estádios.
Nós temos evitado com a torcida única brigas em estações de trem e metrô. Nos dias de jogos não estamos tendo conflitos. Muitos incidentes são evitados, mas não é solução para toda a violência entre as torcidas
Roberto Bacal, promotor de Justiça
Bacal acredita que a existência de uma torcida só em clássicos em São Paulo “tem salvado muitas vidas”. Em setembro, Roberto Bacal, José Fernando Steinberg e Sergio Antonio Ribas participaram de uma reunião com outros magistrados no Fórum da Barra Funda para discutir o assunto. O encontrou também contou com a presença de representantes da Federação Paulista de Futebol (FPF), das polícias Civil e Militar, da Defensoria Pública e do MP-SP.
No dia 2 de dezembro, eles vão se reunir novamente. Desse encontro deve ser formalizada a proposta que enviarão à CBF, que deve representantes nessa reunião. “Prosseguiremos em reuniões para formalizar nosso posicionamento”, limitou-se a dizer ao Estadão o desembargador Sérgio Ribas, que não quis responder se, em sua avaliação, a torcida única estendida a outros Estados reduziria episódios violentos no futebol.
Torcida única é solução?
Desde abril de 2016, o MP-SP, em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP) e a FPF, definiram que as principais rivalidades de São Paulo passariam a ser disputadas com torcida única do mandante. A decisão está em vigor no Estado para partidas de Corinthians, Santos, São Paulo, Palmeiras, Guarani e Ponte Preta. Mas a medida tem ganhado terreno em outros Estados, de modo que clássicos entre times de Rio Grande do Norte, Goiás, Bahia, Paraná e Minas Gerais também ocorreram sem visitantes nas arquibancadas. Atlético-MG e Cruzeiro, por exemplo, se enfrentaram cinco vezes neste ano, sempre somente com a presença dos torcedores do time mandante.
Leia também
Para Sílvio Ricardo, coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida (GEFuT) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Estudos do Futebol Brasileiro, a adoção da torcida única é prejudicial ao futebol e não diminui a violência entre os torcedores.
“A torcida única não funciona, tanto que há muitos casos de violência em cidades onde há a torcida única. O problema não é dentro do estádio, todos sabemos disso. Quase não tem brigas dentro do estádio. Essas torcidas acabam fazendo enfrentamento em diversos locais da cidade, atestando que há falha no sistema de segurança”, opina.
O caminho para reduzir a insegurança fora das arenas, de acordo com o pesquisador, passa por, primeiro, “estabelecer um pacto” e um diálogo com as torcidas. “Existe a necessidade do envolvimento dos vários setores da sociedade, mas antes de tudo, chamar as torcidas para o diálogo”.
‘Torcida única é falência do Estado em assegurar a segurança’
Ao Estadão, o Ministério do Esporte diz ser contrário à imposição da torcida única pois “compromete o espetáculo esportivo e não resolve, de maneira eficaz, os conflitos entre torcidas organizadas” e afeta “profundamente o espírito esportivo, uma vez que a essência do futebol reside na confraternização entre os amantes da bola”. Na avaliação do ministro André Fufuca, a medida pode ser interpretada como “um reconhecimento da falência do Estado em assegurar a segurança nos eventos esportivos”.
É fundamental reforçar que não se deve penalizar todos os torcedores em decorrência de atos isolados, perpetrados por indivíduos que se disfarçam de torcedores, mas que, na verdade, agem como criminosos
Ministério do Esporte
Segundo relatório divulgado pelo Observatório Social do Futebol nesta segunda-feira, 4, episódios violentos no futebol envolvendo torcedores e forças de segurança ocorrem com maior incidência nos arredores do estádio, enquanto brigas de torcida são vistas distantes do local onde o jogo está sendo disputado.
“Se pensarmos nesses dados e refletirmos sobre a política de torcida única, entendemos que essa medida não é eficaz e efetiva. Impossibilitar duas torcidas de estarem no estádio, ou punições à uniformizadas, são políticas públicas que não são baseadas em evidências, e que não trazem reflexos para a redução da violência nesses espaços como um todo”, reflete Raquel Sousa, Mestre em Ciências Sociais e especialista em Policiamento e Segurança em Eventos Esportivos pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
“Seria muito limitado pensar que só torcedores organizados fazem parte de confrontos de violência física. As torcidas organizadas são movimentos sociais e, por isso, são complexos. Eles são essenciais para a festa na arquibancada. Todo o traço cultural do futebol que fica gravado na nossa memória, como faixas, músicas, instrumentos, eles são proporcionados pelas organizadas.”
Organizadas: as origens
As torcidas organizadas se consolidaram no País na década de 1940, com fãs aderindo às camisas e uniformes dos clubes de coração nas arquibancadas em vez do tradicional paletó e gravata, vestimentas comuns da época para ir a espetáculos, como o teatro e o próprio futebol. O processo de institucionalização das uniformizadas no Brasil caminhou junto com a profissionalização e o desenvolvimento do esporte como entretenimento, com estes grupos adotando, posteriormente, as próprias cores e camisas.
Segundo o pesquisador e sociólogo Bernardo Buarque de Hollanda, referência no tema das organizadas, há registros de transgressão no futebol desde o início do século 20, com relatos de invasões de campo, pessoas armadas e o surgimento da necessidade do policiamento nos estádios. De modo geral, os primeiros agrupamentos organizados, especialmente as charangas, tinham caráter apaziguador, e ironicamente, eram alvo de intimidação por parte de torcedores “comuns”. Ele explica que o estigma negativo associado à determinadas uniformizadas surge a partir dos anos 1960, quando há também os primeiros incidentes de ações deliberadas de violência, e fica evidente nas décadas seguintes.
“O enfrentamento entre esses grupos se autonomiza e surgem as as alianças entre torcidas de diferentes Estados nos anos 1980. A conotação mais criminal a esses grupos ocorre após uma morte premeditada, em 1988, o que vai se cristalizar na Batalha do Pacaembu, quando a opinião pública e as autoridades passam a usar essas lentes da estigmatização para perceber esses grupos”, diz o especialista.
Em 1988, Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, fundador da Mancha Alviverde, foi morto a tiros em emboscada premeditada de rivais. A autoria do crime nunca foi elucidado pela Polícia Civil. À época, organizadas de Santos, Corinthians e São Paulo trataram de lamentar o episódio. Ele foi homenageado com cantos e uma queima de fogos em jogo do Palmeiras seguinte ao crime, contra o Cruzeiro, na capital paulista. Os cruzeirenses que estavam na arquibancada provocaram a torcida adversária ofendendo o fundador e desencadeando uma briga generalizada no setor visitante. Desde então, as duas torcidas mantêm uma relação marcada pela violência.
O futebol foi criado por homens e para homens. A questão do exercício da masculinidade é uma característica desse esporte, se dá campo e se espalha para as torcidas na medida em que esses grupos veem uma possibilidade de pertencimento. Eles se unem em função de uma causa.
Silvio Ricardo, pesquisador sobre violência no futebol
Outro episódio emblemático que contribuiu para a imagem negativa das organizadas foi a Batalha do Pacaembu, que causou a morte de um torcedor e deixou 102 feridos durante a decisão da Supercopa São Paulo de Juniores, vencida pelo Palmeiras diante do São Paulo (1 a 0), em 20 de agosto de 1995.
“Entre 1988 e 1995, esse estigma foi sendo construído, enraizado e potencializado, mas reciprocamente alimentado também. Os meios de comunicação deram visibilidade a esses grupos, oferecendo troféus, com lideranças transitando pelos clubes. Uma nova geração de líderes passa a ser mal vista a partir de quando a imprensa passa a promover a imagem desses grupos como promotoras desses confrontos”, diz Bernardo de Hollanda.
“É difícil quebrar esse estigma porque temos uma radicalização ainda maior entre frações e subgrupos dessas torcidas que se avolumaram demograficamente. A sensação de que os confrontos estão escalando também está ligada diretamente à economia do futebol, com jogos de segunda a segunda, e consequentemente o deslocamento nacional desses agrupamentos. Esses grupos continuam fortes e pautando comportamentos de um parte da torcida, e a repercussão midiática torna isso em um efeito cascata, pois o público tem a pré-disposição de acreditar que ali estão pessoas violentas.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.