Legado de Pia Sundhage tem Brasil renovado, mas inacabado e necessidade de melhor estrutura

Metódica e organizada, quatro anos depois de sua chegada, a técnica sueca ajudou a mudar – para melhor – o futebol feminino brasileiro e da seleção

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Por Fernando Valeika de Barros

Desde que a sueca Pia Sundhage surgiu na sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), no dia 29 de julho de 2019, com uma vistosa camisa xadrez, para assinar seu contrato e se tornar a primeira treinadora estrangeira no comando da seleção brasileira, muita coisa mudou: para ela e para o futebol feminino no Brasil. O fracasso da seleção diante da Jamaica e sua eliminação precoce da Copa do Mundo é apenas um capítulo (ruim) dessa trajetória.

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Ao contratar a sueca de 63 anos, três vezes medalhista olímpica, como técnica (duas vezes com os Estados Unidos, em 2008 e 2012, uma vez prata, com a Suécia), a intenção dos cartolas da CBF foi dar um novo rumo para o time nacional antes mesmo de a entidade abrir as portas para Carlo Ancelotti no time masculino. Tudo isso aconteceu dias depois de uma campanha apagada na Copa do Mundo Feminina, na França, quando o Brasil foi eliminado pelas donas da casa, nas oitavas.

Naquele Mundial, o comando técnico do time era Oswaldo Alvarez, o Vadão. Apesar de ter experiência no futebol, até então ele tinha trabalhado apenas uma vez com jogadoras. Ao contrário de Pia, que foi atleta da seleção sueca por 21 anos, é técnica desde 1992 e conhece como poucas as equipes femininas. “Pia exercerá um trabalho de revolução no futebol do Brasil”, disse, naquele dia, o então presidente da CBF, Rogério Caboclo. “Sua escolha reflete a nova dimensão que queremos dar ao futebol feminino brasileiro”.

Pia conquistou uma Copa América como comandante da seleção brasileira. Foto: William West/AFP

O fato é que, desde que assumiu o cargo, a sueca simpática e quase sempre sorridente cumpriu o que se esperava dela. Ela foi presença constante nos estádios, observando jogadoras do Campeonato Brasileiro e de outras competições. Ela sabia que tinha de fazer uma reformulação do elenco, carregado de atletas veteranas que precisavam ser aposentadas, ao contrário do time que volta para casa nesta semana.

Com Pia no comando, a seleção conseguiu títulos, como a Copa América, ganhando da Colômbia, na casa do adversário, que é a sensação do Mundial da Austrália e da Nova Zelândia. Também obteve bons resultados em amistosos, como a vitória contra a Alemanha, em jogo disputado em Nuremberg, e um empate no tempo normal diante da Inglaterra, no Estádio de Wembley, pela Finalíssima, que coloca frente à frente as seleções campeãs da Europa e da América do Sul (o Brasil acabou perdendo o título na disputa por pênaltis).

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“A minha chegada foi apenas o começo de uma mudança no futebol feminino do Brasil, há muitas outras mudanças acontecendo.”

Em busca de caras novas para a seleção, em seu ciclo Pia convocou 92 jogadoras. Apesar de na sua lista ter reservado espaço no grupo para atletas mais rodadas, como a atacante Bia Zaneratto e a meia Andressa, das 23 convocadas, quase metade do grupo (onze jogadoras) nunca tinham jogado uma Copa. “Temos uma geração de jovens querendo mostrar que podem representar bem o seu país”, diz.

Ela admite que seu português não é fluente (limita-se a palavras como “juntas”, que ela adora mencionar em suas entrevistas, ou ainda “compactaçao” – sem o som nasal -, “mais rápido” ou “paciença”, como ela pronuncia “paciência”, entre outras poucas). Por isso suas preleções e contatos com as jogadoras são sempre feitos em Inglês e traduzidos para as outras atletas por Antonia e Ana Vitória.

Para ajudá-la em suas decisões, a técnica conta com três auxiliares: os suecos Anders Johansson e Lilie Peterson, que trabalharam com ela na seleção feminina da Suécia, e a brasileira Beatriz Vaz, que já fazia parte da comissão de Vadão. Nos treinamentos, cabe a Anders posicionar a defesa. Um exemplo foi o período de treinamentos que envolveu quinze jogadoras durante sete dias, na Granja Comary.

Brasil foi eliminado na fase de grupos da Copa do Mundo pela primeira vez desde 1995. Foto: William West/AFP

“Serviu para que jogadoras que atuam na Europa e Estados Unidos (onde os campeonatos terminaram antes) chegassem a um nível físico parecido com o das jogadoras que estavam em atividade no Campeonato Brasileiro: são detalhes que podem fazer a diferença em um jogo de Copa”, diz a zagueira Rafaelle, que jogará no Orlando Pride, da Flórida, e disputou o Mundial de 2015.

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Apesar de continuar organizada e metódica, como boa sueca, pode-se dizer, sem exagero, que Pia Sundhage ganhou alma de brasileira. Curte o Rio, onde mora a poucos minutos da sede da CBF, na Barra. Adora caminhar pelo Jardim Botânico. Alegre, quando está com as jogadoras adora tocar violão (aprendeu criança e chegou a participar de uma apresentação, como a que fez em um concurso amador, o Talent-71, quando tinha 11 anos). Uma das músicas que mais gosta de dedilhar nas cordas é “Anunciação”, de Alceu Valença.

À frente da seleção brasileira, o principal desafio de Pia foi dominar a impulsividade e a parte emocional das jogadoras. “Às vezes, gostaria que tivessem a mentalidade fria das suecas”, disse uma entrevista ao jornal francês L’Équipe. “Eu sempre digo às nossas jogadoras para desfrutarem o jogo e fazermos uma equipe capaz de atacar rapidamente e ter uma defesa sólida, com atitude e organização”. Segundo ela, se seguir este plano, o Brasil pode ir longe. Na Copa 2023 não deu certo após os quatro anos que está no comando. No jogo derradeiro, diante das jamaicanas, nada deu certo, como não havia dado também diante da França.

Na opinião de Marta, com seis Copas do Mundo no currículo, o trabalho da sueca é muito bom. Disse isso antes da eliminação do Brasil nesta quarta. “É nítido que a atitude do nosso time mudou, não só por parte das atletas, mas de todo mundo que faz parte do futebol feminino”, disse a camisa 10 do Brasil. “Mas é preciso avançar e fazer cada vez mais e melhor para evoluir: esse trabalho tem de continuar.”