Com a saída de Cleber Machado do quadro de narradores da TV Globo após 35 anos, a emissora perde seu terceiro profissional da área em três meses. Jota Júnior, que participava das transmissões no SporTV (canal fechado do grupo), teve seu contrato encerrado após 24 anos na casa; Galvão Bueno, uma das principais vozes do esporte no País nas últimas décadas, também teve um destino semelhante após a Copa do Mundo do Catar.
O momento indica um cenário que já havia sendo observado nos últimos anos: a expansão do mercado de transmissões esportivas no Brasil, em especial pelo surgimento do streaming e novas oportunidades, faz com que narradores e comentaristas busquem alternativas para além das oligarquias na TV aberta e fechada. Além disso, profissionais com muito tempo de casa, não estão “seguros” de demissões inesperadas ou imprevistas - Cleber estava na Globo havia 35 anos e Galvão cobriu 12 Copas in loco. Esses profissionais trazem aos canais alternativos uma vasta experiência e já nascem no streaming com um público garantido. Segundo especialistas, a idade desses narradores não interfere em nada. Basta acompanhar Galvão e seus vídeos na mídia que mais tem a cara da molecada, o TikTok.
“Existe uma troca de guarda que é natural e que já vinha acontecendo com a presença do Gustavo Villani e do Everaldo Marques nas transmissões da Copa”, analisa Bruno Maia, especialista em inovação e novas tecnologias do esporte e entretenimento, e sócio da Feel The Match. No último Mundial, apenas Galvão e Luís Roberto foram ao Catar; Cleber Machado, presença constante nas últimas edições, fez as transmissões do Brasil.
“Galvão, Cleber e Luís Roberto ficaram durante décadas dominando as transmissões do maior canal do Brasil, a Globo. Apesar de o Galvão ser um pouco mais velho, são pessoas de uma idade relativamente parecida, que representam uma geração, mas é natural que novas cheguem”, complementa Maia.
Após deixar a emissora, Galvão Bueno já anunciou uma nova empreitada em sua longeva carreira: aos 72 anos, começará sua jornada no YouTube com o “Canal GB”, uma parceria com a plataforma de criação de conteúdos em vídeo Play9, que tem o influenciador Felipe Neto como um dos sócios. A estreia será no sábado, com a transmissão do amistoso entre Marrocos e Brasil, às 19h. Ele contará com a participação de Casagrande e Tino Marcos, parceiros nos tempo de Globo, além de outros nomes, como os ex-jogadores Cristiane e Zico. Arnaldo Cezar Coelho, ex-árbitro e comentarista, chegou a ser anunciado, mas teve sua participação vetada pela emissora carioca.
Comentaristas também sofreram com demissões em tempos recentes. Um dos mais impactantes foi o encerramento da Central do Apito, quadro da TV Globo no qual ex-árbitros discutiam, nas transmissões e na programação do SporTV, as decisões da arbitragem nas rodadas das competições nacionais. Sandro Meira Ricci e Fernando Colombo foram demitidos na última segunda-feira.
Esse cenário não é exclusivo da emissora carioca. Recentemente, a Cazé TV, canal no YouTube e na Twitch do influenciador e apresentador Casimiro Miguel, contratou ex-jornalistas da TNT Sports para compor a sua grade, como Guilherme Beltrão e Luis Felipe Freitas. Diferentemente das transmissões tradicionais, o canal buscou alterar sua linguagem para atrair uma audiência mais jovem.
“Percebemos que o tempo de domínio de uma mídia sobre outras é cada vez mais curto. As redes sociais, por maiores que tenham sido ou sejam, por exemplo, não chegaram a se confirmar como alternativas às TVs e já foram atropeladas pelas plataformas focadas em streaming”, afirma Maia. “Ele (Cleber Machado) poderia continuar, estava performando bem, mas é natural a mudança, que por coincidência acontece muito porque o modelo está sendo transformado.”
No último domingo, a equipe de Casimiro sofreu críticas pela transmissão do clássico entre Flamengo e Vasco, pelas semifinais do Campeonato Carioca. O apresentador defendeu o formato do canal nas redes. “A nossa transmissão é assim. Conversa e brincadeira. Ambos (os repórteres) brincaram durante o jogo inteiro, como de costume. Vou seguir meu trabalho”, escreveu em seu Twitter.
“Naturalmente, essa gama de estilos tem forçado um processo de transição nas transmissões de um modo global. A própria Globo, através de seu ecossistema, tem tentado se adaptar às novas tendências desses estilos, e vimos isso de forma muito clara na cobertura da Copa do Mundo no Catar”, afirma Renê Salviano, CEO da Heatmap e especialista em marketing esportivo. Na cobertura do último Mundial, o grupo contou com a presença de Tiago Leifert para narrações no SporTV.
“Creio que a tendência a curto e médio prazo será uma solução híbrida entre a linguagem mais informativa de antes com a informal, que é aplicada por agora, tendo a CazéTV como principal referência”, explica o especialista. “As duas se complementam e o importante é que os canais, seja a Globo ou as plataformas de streaming, detectem os tipos de públicos que estão consumindo os conteúdos.”
Além da CazéTV, outras alternativas surgiram à Globo, Band e outras emissoras mais tradicionais. O HBO Max e os canais do Paulistão no YouTube são alguns dos exemplos. “Acredito que a distribuição customizada do streaming tem, por característica nativa, ser nichada. Pode ser um nicho grande, mas ainda assim será para diversos nichos”, reflete Maia. “A TV ficará com consumidores menos exigentes, mais generalistas, que seguirão sendo bastante expressivos em quantidade de pessoas.” Na Copa, as narrações de Casimiro chegaram a ultrapassar 4 milhões de pessoas ligadas ao mesmo tempo. Isso não chega ao tamanho dos 170 milhões sintonizados nas plataformas da Globo.
Ao Estadão, Cleber Machado já afirma que pensa em “projetos futuros” após sua demissão da Globo. Neste sábado, às 19h, Galvão Bueno estreia seu novo projeto com o amistoso da seleção brasileira com o Marrocos. Estreia em grande estilo, portanto. A tendência é que, cada vez mais, narradores e comentaristas explorem alternativas aos meios de comunicação tidos como tradicionais. Nessa linha, o comentarista Paulo Vinícius Coelho, o PVC, resolveu deixar Globo/SporTV para firmar contrato com a Paramount Plus por quatro anos para fazer, principalmente, jogos da Libertadores. O canal está na TV fechada e no streaming.
“O tempo já ensinou que não existe ‘uma mídia acabar com a outra’, ou tomar o lugar da outra. Elas se somam. Não há dúvidas que o sucesso do Casimiro confirma que existe uma nova janela relevante, um novo formato de alto alcance, para distribuição de conteúdo esportivo e para investimento dos patrocinadores. Isso diminui a força das mídias antigas, mas não acaba com elas”, explica Maia. Rádio, TV e cinema viveram essa condição no passado.
Estreia de Galvão no YouTube
O sucesso da transmissão deste sábado, no amistoso entre Brasil e Marrocos, pode abrir o caminho para esses narradores explorarem mídias além da TV tradicional. “A imagem do Galvão como um grande narrador foi construída ao longo dos anos, desde quando a internet como a conhecemos nem existia. Vejo essa parceria como uma oportunidade de atrair um público novo, que conhece o narrador, mas que também consome os conteúdos produzidos pelo Felipe Neto, que além de influenciador é um grande empreendedor”, analisa Renê Salviano.
A ideia é trazer um grupo de comentaristas com o qual o grande público já está familiarizado, mas em um formato de mídia alternativo. “É um desafio que conectará história e inovação. E ver o Galvão narrando um jogo da seleção em seu próprio canal, longe da TV, será um evento interessante para acompanharmos de perto”, acredita.
Além de Casagrande e Tino Marcos, o intervalo da partida também contará com figuras familiares a um público mais jovem. Valentina Bandeira, Samanta Lima, Daniel Braune e Duda Garbi totalizam 80 milhões de seguidores nas redes, quase metade do tamanho do Brasil.
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