‘O futebol chegou ao limite técnico. É só correria’, diz Zagallo

Testemunho do Velho Lobo sobre sete décadas de dramas e conquistas do esporte mais popular

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RIO - Quando o alagoano Mário Jorge Lobo Zagallo começou a jogar futebol, no final da década de 1940, no infantil do América do Rio, a bola avermelhada era pintada de branco para os treinamentos noturnos. Ao comemorar 80 anos, na terça-feira, 9 de agosto de 2011, o único tetracampeão mundial da História (duas vezes como jogador, uma como treinador e outra como coordenador) vaticina o fim da evolução técnica no futebol. “Os espaços estão muito congestionados, como o trânsito de São Paulo. O futebol mundial chegou ao limite técnico. É uma correria só.”

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Testemunha ocular do “Maracanazo” de 1950 – servia o Exército e trabalhou no estádio durante a partida –, Zagallo jamais imaginou que oito anos depois estaria defendendo o Brasil em seu primeiro título na Suécia. Além de ter sido autor de um dos gols da final (5 a 2 sobre a Suécia), foi responsável por introduzir no País o sistema de jogo 4-3-3, substituindo o tradicional 4-2-4. Hoje, um atacante ajudar na marcação é corriqueiro. No Brasil, foi o primeiro a fazê-lo.

Em 2006, participou pela última vez da seleção brasileira, como auxiliar-técnico, repetindo a dobradinha campeã de 1994. Ele lamenta não ter colaborado com o treinador Carlos Alberto Parreira como gostaria. Um ano antes, havia passado por seriíssima cirurgia e, na concentração, ia de madrugada ao quarto dos médicos da delegação pedir remédios para depressão.

Zagallo, o único tetracampeão mundial. Foto: Antonio Scorza/AFP

Primeiro jogador do futebol brasileiro a ganhar passe livre e atleta de poucas camisas – atuou pelo América, Botafogo e Flamengo –, Zagallo passa em revista uma longa e vitoriosa carreira. Fala de craques que conviveu em diversas épocas e só não perdoa Romário. “Foi um grande jogador. E ponto.” Leia entrevista:

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Antes de marcar sua carreira como jogador do Flamengo e do Botafogo e da seleção brasileira, o senhor passou pelo América. Sempre falou muito bem dos três clubes. Mas, afinal, qual o seu o time de coração?

O Flamengo e o Botafogo me projetaram para o futebol. Tenho um carinho especial por tudo que os dois clubes fizeram por mim. Mas comecei no América em 1947, ainda no infantil. Nasci em Maceió e minha família se mudou para o Rio em 1932. Morávamos na Tijuca, bem perto da sede do América. Meu pai foi conselheiro e benemérito do clube. Eu vivia lá, onde disputei competições de tênis de mesa e natação. Então não tem como ser diferente. Torço pelo América. Assim fico bem com todo mundo.

Como era o futebol naquela época?

Muito amador. A gente jogava com uma bola meio avermelhada, pesada demais. Ela descascava e tinha de ser pintada para ser reaproveitada, principalmente nos treinos da noite.

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Na final da Copa de 1950, o senhor viu a derrota do Brasil para o Uruguai. Quais as suas recordações daquela tarde?

Eu prestava serviço militar no Exército. Meses antes da Copa, fui ao Maracanã com meu pelotão retirar madeira da arquibancada. No dia do jogo, estava lá de verde-oliva, cassetete, capacete, “bate-bute”. Na arquibancada, eu deveria ficar de costas para o campo, mas vi perfeitamente o gol fatal do Ghiggia (Uruguai venceu por 2 a 1). Aquele delírio, com 200 mil pessoas acenando lenços, acabou tudo ali.

Depois de assistir à final de 1950 na arquibancada, em 1958 o senhor foi um dos protagonistas...

Jamais poderia imaginar que oito anos depois eu estaria vestindo a amarelinha para ser campeão do mundo pela primeira vez. O Vicente Feola (técnico da equipe) introduziu uma mudança tática no futebol brasileiro, transformando o 4-2-4 num 4-3-3. Eu era a terceira opção na época, atrás de Canhoteiro e Pepe, para ocupar a posição de ponta-esquerda mais recuado. Na minha estreia pela seleção, no Maracanã, contra o Paraguai (em 4 de maio de 1958), ganhamos de 5 a 1, e eu fiz dois gols. Mas em outro amistoso com a Bulgária, no Pacaembu, eu olhei a escalação e não vi o meu nome. Fiquei preocupado, estávamos às vésperas da Copa do Mundo na Suécia. Então o médico Hilton Gosling me chamou num canto e disse: “Fica quieto, você já está escolhido. Agora o Pepe e o Canhoteiro vão disputar uma vaga.”

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O senhor viu em 1958 o nascimento de um craque, Pelé. Todos agora se espantam com Neymar. Mesmo com estilos diferentes, há termo de comparação entre os dois?

Eu já conhecia o Pelé, mas só o tinha visto jogar rapidamente uma vez no Maracanã pelo Torneio Rio-São Paulo. O Neymar é o Neymar. O Pelé foi e sempre será o melhor jogador do mundo. Não vai ter outro igual. Falam de Messi, Neymar, Maradona. Mas a distância desses para Pelé é brutal. Um jogador completo, que jogava muito bem com a perna esquerda e com a direita. Ele fez gol de tudo que é maneira, o único a fazer mais de1.200.

Nas Copas de 1958 e 1962 havia outro gênio na seleção. Como foi a experiência de jogar ao lado de Garrincha?

O meu técnico no Flamengo, Fleitas Solich, apitava falta toda vez que eu driblava. Só permitia o drible quando não havia alternativa. Na seleção, em 1955, o técnico era o Zezé Moreira. Ele colocava uma cadeira no campo, no lado direito do ataque, e mandava que o Garrincha cruzasse a bola quando chegasse naquele ponto. Evidentemente que o Garrincha não respeitava nada. Ele driblava a cadeira, voltava, repetia o drible e só depois cruzava. Eu queria ver o Fleitas ir lá em General Severiano (sede do Botafogo) para dizer ao Garrincha que marcaria falta a cada drible dele. Quem viu, viu, quem não viu, vai ficar na saudade. Era fantástico.

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Por que a escassez do drible hoje no futebol mundial?

O futebol está mudado. Futebol é um trânsito congestionado. Bota o trânsito de São Paulo no meio de campo e você imagina o que é o futebol atual. Dificilmente há jogos de beleza para se ver. É um tal de não deixar jogar.

Quando isso começou?

Em 1966, na Inglaterra. Já em 1970, no México, a altitude impediu um pouco isso e a própria técnica sobrepujava a condição física. A gente tinha mais valores técnicos que brucutus.

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Houve algum time superior ou equivalente ao do tricampeão mundial em 1970?

Nós tivemos um time praticamente idêntico, o de 1958, com Garrincha e Pelé. Mas não havia TV para mostrar. Em 1970 se deu o estouro. O Brasil jogou uma enormidade no México e a TV exibiu tudo para o mundo inteiro. Em 1958, só quem estava em Estocolmo viu aquela maravilha.

Em 1970, cinco anos depois de deixar os gramados, o senhor dirigiu a seleção do tri. Houve uma mudança de esquema tático para escalar um grande número de jogadores extraordinários?

Seria inadmissível que eu, então como técnico, não fizesse como Feola em 1958, que abriu mão do 4-2-4 para efetivar o 4-3-3. Minha ideia era usar o 4-3-3 com o Paulo Cesar Caju na ponta esquerda. As coisas se modificaram. Passei o Piazza para a zaga, e botei no time titular o Rivellino e o Clodoaldo, reservas de João Saldanha. Como o Paulo não vinha bem, conversei com o Rivellino e o escalei na ponta-esquerda, com a ordem de ajudar na marcação.

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O senhor não queria escalar Pelé e Tostão juntos...

A princípio, o Tostão seria reserva do Pelé. Convoquei o Roberto Miranda e o Dario, pois a ideia inicial era jogar com o Roberto na frente. Depois, mudei. Escalei o Tostão de centroavante e eu mesmo achei que essa mudança não daria certo. Mas a inteligência do Tostão se sobressaía. Só teve ali um momento de dúvida. Ele tinha um problema na vista e precisava evitar o choque. Por isso, eu questionei o oftalmologista que o atendeu: “Escuta, se o Rivellino der um chute forte e o Tostão ficar na frente, pode correr algum risco?” E ele me respondeu: “Não, ele andou até na montanha russa!” Mas eu não perguntei nada disso. Eu queria saber do impacto da bola na cabeça dele. A resposta me deixou mais confuso ainda.

Incomoda aquela associação de que o presidente Médici interferiu na saída de João Saldanha e na convocação de Dario?

Quem provocou essa onda toda foi o próprio Saldanha, como jornalista. Ele fez uma coluna na qual dizia que o Médici era um fã do Dario e que o jogador seria convocado por mim. Você acha que um presidente da República ia falar com um técnico de futebol para convocar esse ou aquele jogador? Você acha que o Dario não seria o titular da seleção brasileira se o Médici viesse falar comigo? Pois bem. Ele não foi titular nem quando houve necessidade de um substituto para o Tostão, por questões médicas. Foi o Roberto Miranda quem entrou. A resposta está dada. A verdade está clara. Quiseram falar que naquele momento eu peguei um time pronto, coisa e tal. Mentira! Mudei tudo. Se não fosse daquele modo, nós perderíamos a Copa do Mundo.

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Sempre se diz que o senhor mostrou desdém em relação à Holanda no Mundial de 1974 na Alemanha. É verdade?

Perfeitamente, foi intencional. Eu era o técnico da seleção brasileira, tínhamos perdido a base de 1970, e fomos enfrentar a coqueluche do futebol mundial daquela Copa: a Holanda (o Brasil perdeu por 2 a 0 e teve que se contentar com a disputa do terceiro lugar, quando perdeu para a Polônia por 1 a 0). O que eu ia fazer? Enaltecer o adversário? Não, eu queria diminuí-lo.

O Brasil ficou 24 anos sem um título mundial. Em 1994, o senhor estava de volta lá, como coordenador técnico. Seu trabalho era passar sua experiência para o Carlos Alberto Parreira?

A CBF apostou na mesma comissão técnica de 1970. O Parreira seria o técnico. Ele foi sempre meu assistente, acreditava em tudo o que eu falava. Eu estava ali como um técnico também, mas a palavra final era dele. Nos dávamos muito bem. Mas havia uma campanha muito grande contra nós. Diziam que não estávamos jogando o verdadeiro futebol brasileiro. Nosso time era aplicado, sabia o que fazer em campo. Tínhamos um time e mostramos que estávamos certos.

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Qual o peso do Romário na conquista?

Importante, era o jogador de área. Nós demos um castigo nele na fase de classificação, depois que ele não aceitou a decisão do Parreira de ter escalado Bebeto e Careca num treino em Porto Alegre. O Parreira veio falar comigo: “Olha, o Baixinho já fez m.” Então eu disse: “Deixa ele comigo”. Cheguei no hotel, chamei o Romário no quarto e o Parreira também e disse: “Aqui a ordem vem de cima para baixo. Quem determina a escalação do time é a comissão técnica. Não é você.” Tomei a atitude porque numa fração de segundos a gente poderia perder a liderança. Se a gente cede, o que ia acontecer? Ele ia lá na frente dos outros, conheço a criatura, e ia dizer: “Olha lá, peitei e vou jogar.” Só voltamos com o Romário no último jogo das Eliminatórias, contra o Uruguai, no Maracanã, quando ele fez dois gols.

Mas ele foi importante ou fundamental na conquista de 1994?

Fundamental, está bem, como você quiser. Mas não se pode esquecer o papel do Bebeto, que era quem dava as bolas para ele fazer os gols.

Sua relação com Romário é delicada...

Teve aquele Brasil x Peru (em 1997, semifinal da Copa América). A seleção ganhava por 5 a 0, e eu fiz a última substituição. Chamei o Edmundo. Eles não se davam bem. Na primeira bola em profundidade, o Romário saiu mancando, com a mão na virilha. Ficamos com 10 em campo. O jogo seguinte era em La Paz. Antes da preleção, eu chamei o Lídio Toledo (médico da equipe), e reuni a comissão técnica no meu quarto: “Você vai lá e pergunta ao Romário se ele está em condições ou não.” Aí o Lídio respondeu: “Ele disse que ainda vai fazer um teste dentro de campo.” Decidi na mesma hora: “Então ele não vai jogar e nem vai ficar no banco.” Tive peito, porque não é fácil tirar o Romário de uma final. Eu fiz isso porque eu não gosto de safadeza. E eu sempre o convoquei em todas as situações. Tenho com ele uma relação delicada. Ganhei processo contra o Romário pelas caricaturas no Café do Gol (no fim do Mundial de 1998, mandou pintar na porta de banheiros de seu bar imagens de Zico e Zagallo num vaso sanitário). Não cabe mais recurso. São R$ 800 mil.

Quem é o Romário para o senhor?

Ele foi um grande jogador. Ponto. Nada além disso. Não posso falar mais nada sobre ele.

O senhor escalaria de novo o Ronaldo (teve uma convulsão horas antes da decisão com a França) se pudesse voltar à final da Copa do Mundo de 1998?

Sem dúvida. Ele foi para uma clínica francesa. Fez todos os exames, não deu absolutamente nada. No vestiário (do Stade de France), o Ronaldo chegou já com meia, chuteira, calção e disse: “Eu quero jogar”. “Mas você não passou mal?” “Zagallo, eu não tenho nada. Tive um problema seis, sete horas atrás, o exame não acusou nada, estou me sentindo bem, não faça isso comigo, eu não sou criança, não me tire dessa.” O cara foi tão veemente, disse isso ao lado do Lídio e do Joaquim da Matta (outro médico da delegação) e ninguém falou nada. Tomei a atitude que caberia.

Existiu pressão de patrocinador?

Isso não existe, pô. Isso é balela, pô. Não tem nada a ver.

Antes da Copa de 1998, o senhor teve dois momentos importantes pela seleção. A perda da medalha de ouro nos Jogos de Atlanta, em 1996, e a vitória da Copa América, em 1997. Qual dos dois foi mais marcante?

Foi triste deixar escapar a medalha inédita na Olimpíada depois de estar vencendo por 3 a 1 (contra Nigéria) e o jogo acabar 4 a 3. Ficou um nó na garganta até hoje. Ficamos só com o bronze. Duro, muito duro mesmo. Já em 1997, a seleção estava sob muita pressão (na Copa América) e as críticas eram diárias. Foi quando eu disse a frase: “Vocês vão ter que me engolir!” Já ouvi isso até em casamento em que fui como convidado e acabei mais fotografado que a noiva. Foi um recado para quem só falava mal.

Um tumor benigno no abdômen levou o senhor a uma cirurgia grave em 2005. A recuperação foi lenta. Por causa disso não conseguiu auxiliar Parreira como imaginava no Mundial de 2006?

Exatamente isso. Eu saía de madrugada do meu quarto, lá na Alemanha, para procurar os médicos, para tomar injeção, remédios. Fiz uma operação que durou sete horas, retirei a vesícula, parte do estômago e do intestino e com reconstrução do pâncreas. Eu estava e não estava com a seleção. Estava perdidão.

O Maracanã passa por reformas e, segundo especialistas, vai ficar desfigurado. Como vê isso?

Do jeito que ficar, o Maracanã jamais vai ser esquecido. Agora, vem com outra tecnologia, vão aproveitá-lo de uma maneira diferente, mas nunca deixará de ser o Maracanã, com todo o seu glamour. Claro que a gente tem um impacto, de ver tudo quebrado. Mas foi assim que eu o vi pela primeira vez em 1949.

A Fifa sinalizou que os árbitros talvez possam recorrer a recursos eletrônicos na Copa de 2014 para tirar dúvidas durante o jogo. O senhor aprovaria essa medida?

Sou a favor desde que não se deturpe o que é certo e deixe o errado prevalecer. O exemplo mais claro da importância disso foi o episódio que levou a França a se classificar para o Mundial de 2010. Aquele lance em que o Henry pega a bola com a mão, ajeita e a França faz o gol da classificação é emblemático. A classificada tinha de ser a Irlanda. Se já tivesse a tecnologia ali, mudava tudo.

Qual o futuro do futebol, nas próximas décadas?

Não há uma maneira de evoluir mais. Todo mundo correndo onde está a bola, não querendo deixar o outro jogar. O futebol mundial chegou ao limite técnico. É uma correria só. Você diminui as condições para que se tenha grandes jogos. Os espaços estão muito congestionados, como o trânsito de São Paulo.

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