Bairros tomados por gangues, massacres em presídios e uma Polícia subjugada pelo poder de fogo dos criminosos: o tráfico de drogas transformou o porto equatoriano de Guayaquil em mais uma capital do crime na América Latina. A cidade de 2,8 milhões de habitantes, que sediará neste sábado (29) a final entre Flamengo e Athetico Paranaense da Copa Libertadores 2022, enfrenta uma violência que nasce nas ruas e se reproduz nos presídios com corpos baleados, queimados e mutilados.
Até agora, este ano foram 1.200 homicídios, 60% a mais que no mesmo período de 2021, segundo dados oficiais. Também foi em Guayaquil onde ocorreu a maior parte das 392 mortes de presidiários nos massacres carcerários registrados desde 2021. Nessa espiral, um promotor foi morto por pistoleiros e houve ataques com carros-bomba e explosivos, como o ocorrido em agosto que matou cinco pessoas em frente a um restaurante popular.
Localizado entre Colômbia e Peru, os maiores produtores mundiais de cocaína, o Equador já era rota de trânsito das drogas para os portos. O tráfico de drogas se instalou à vontade, criou um mercado interno e, de Guayaquil, envia centenas de toneladas para a Europa e para os Estados Unidos. Em 2021, as autoridades apreenderam 210 toneladas de drogas e, este ano, já foram 160.
GANGUES
Forças militares e policiais ocupam a entrada de Socio Vivienda II, o ponto mais perigoso de “Guayakill”, o neologismo que se popularizou nas redes. Na favela, 20 homens uniformizados de preto, com coletes à prova de balas, balaclavas e pistolas, avançam em motocicletas. Cerca de 24.000 pessoas vivem ali. As disputas entre gangues, que começaram em 2019, são mais frequentes e forçaram o fechamento temporário de escolas no último mês e meio.
Antes eram conhecidos como gangues, mas depois “começaram a se identificar como Lobos e Tiguerones, e a situação piorou”, diz uma líder comunitária de 45 anos que preferiu não se identificar. Os Águilas operam mais acima, no morro.
As quadrilhas criminosas estão mais armadas do que a própria polícia
major Robinson Sánchez, chefe de operações do setor
É uma “guerra” de pistolas contra fuzis. Quando eclodiu a disputa pelo controle territorial, as famílias ergueram portões de metal em cada extremidade das ruas para impedir a entrada de criminosos, mas a polícia derrubou-os em suas intervenções. Agora, conta a líder, as balas zumbem de um canto para o outro.
CRIME DESIGUAL
Durante a patrulha, os agentes param em frente a uma casa e entram à força. Não encontram armas, nem drogas, mas há três jovens com tatuagens nos braços com o nome “Tiguerón” em letra cursiva - o que é insuficiente para detê-los. O crime organizado usa “crianças de 10, 12 anos” como sentinelas, ou informantes. À medida que “crescem” na organização ganham o direito à tatuagem, não sem antes ter cometido um crime.
Aqui e ali, vê-se os “zumbis”, ou consumidores de H, um resíduo de heroína que é vendido a 25 centavos de dólar por grama, embora carros de luxo também entrem para carregar, ou deixar drogas, debaixo do nariz da polícia, comenta a líder de bairro. Temendo que seus filhos sejam recrutados, as famílias abandonam suas casas e, assim que saem, as gangues “já se instalam” nelas, acrescenta.
Desde o início do ano, em Socio Vivienda II, foram registrados 252 homicídios contra 66 em 2021, enquanto em Samborondón, setor murado e rico, foram 14 casos. Esses números revelam uma violência tão desigual quanto a própria cidade, onde 26% da população vive na pobreza.
No fim de semana antes da final da Libertadores - que atrairá cerca de 50 mil turistas estrangeiros -, houve 21 assassinatos na cidade, a maioria cometida por pistoleiros. O governo do conservador Guillermo Lasso mobilizou tropas, reforçou a polícia e lançou milhares de operações para desmantelar as organizações criminosas. O tráfico continua de pé.
AS VÍTIMAS
Em 29 de setembro de 2021, Tyrone Paredes, o filho mais velho dos quatro de Myrta Preciado, morreu no pior massacre já ocorrido em uma prisão equatoriana. Estava detido há um ano por roubo na penitenciária de Guayas 1. Seu corpo estava entre os 122 mortos em um confronto que durou horas.
Myrta, uma dona de casa de 44 anos que mora na cidade de Durán, perto de Guayaquil, não imaginava que seu filho estivesse entre as vítimas, porque ele não fazia parte das “gangues”. O corpo do jovem de 27 anos foi um dos últimos a ser identificado: as pernas e a mão esquerda ficaram mutiladas, e ele também foi queimado em partes.
Meu filho não teve a cabeça arrancada como os outros, e tinha uma cicatriz na sobrancelha e uma bola de carne atrás da orelha
Esses sinais, mais um teste de DNA, confirmaram que era ele. A mãe nunca recebeu explicações oficiais, ou mesmo ajuda psicológica. Sentada no sofá de sua casa, Myrta estende uma foto colorida de Tyrone. “Filho, por que mataram você?”, pergunta-se. Para as autoridades forenses, o desafio não foi pequeno.
“Antes não enfrentávamos a crueldade (...) a desfiguração das vítimas (...) Víamos o uso de armas pequenas (...) revólveres. Mas agora enfrentamos fuzis, granadas, explosivos. A violência cresceu muito”, descreve o chefe da Medicina Legal, major de polícia Luis Alfonso Merino.
PRISÕES
Os presos notificam o que está para acontecer via WhatsApp, diz Billy Navarrete, do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos. “Finalmente chega o dia, e começam a ouvir tiros e detonações. Famílias se reúnem em frente às prisões, e a força pública não para os ataques entre um pavilhão e outro (...) Lá eles se matam”, relata. Segundo este ativista, os presos são “reféns das gangues” que tomaram as prisões para transformá-las em centros de operações “seguros”.
Os detentos devem pagar entre US$ 400 e US$ 500 por mês para essas organizações: “Eles pagam pela vida, pela comida, pelos remédios, por tudo”. Mesmo quando um deles é morto, a família deve continuar pagando a “dívida”. “O dinheiro é depositado em uma conta, ou seja, entra no sistema financeiro, é toda uma rede sem nenhuma investigação”, denuncia Navarrete.
Sua ONG registra 600 presos assassinados desde 2019 e 3.000 menores e adolescentes órfãos como resultado. A população carcerária chega a 32.400 pessoas em todo país. “O Estado não governa as prisões”, diz ele. Os centros de detenção estão sob o controle de “organizações criminosas com a cumplicidade de agentes da força pública que permitem, toleram e se enriquecem com o tráfico de armas”.
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