Palco do Mundial e da Copa-22, mundo árabe teve brasileiros como desbravadores; conheça as histórias

Costumes, excentricidade dos sheiks e falta de estrutura foram obstáculos superados pelos profissionais que se aventuraram no Oriente Médio por meio do futebol

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Por Toni Assis
Atualização:

A temporada de 2022 sinaliza que o mundo árabe vai estar em evidência no cenário do futebol. Além do Mundial de Clubes a ser realizado no início deste mês e que vai contar com a presença do Palmeiras, o Oriente Médio ganha notoriedade também por causa da realização da Copa do Mundo, que terá o Catar como país-sede. Abastecido pelo dinheiro do petróleo, a região sempre teve um perfil atraente e também excêntrico para jogadores e treinadores de futebol. As curiosidades são muitas. Vão desde leões que passeavam tranquilamente pelas dependências dos palácios dos sheiks à obrigatoriedade de usar barba e bigode a pedido dos patrões a fim de passar mais autoridade à beira do campo.

Cercado de peculiaridades, o histórico de investimentos no futebol por parte de sheiks e príncipes se arrasta ao longo dos tempos. Um exemplo recente foi a aquisição do Newcastle United por um Fundo de Investimentos Público ligado ao governo da Arábia Saudita. O valor da transação beirou a casa dos R$ 2,2 bilhões.

Silas, ex-meia do São Paulo nos anos 80, se aventurou no mundo árabe como treinador entre 2011 e 2012. Foto: Paulo Silas/Acervo Pessoal

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 Em meio a um universo envolvendo costumes e tradições diferentes, o Estadão ouviu profissionais que migraram para a região para contar um pouco desse ambiente. Um dos desbravadores dessa empreitada foi o ex-ponta-esquerda Pepe, do Santos. Após um bom trabalho à frente da Inter de Limeira, ele partiu para o Oriente em busca de uma internacionalização na carreira de treinador. Foi assim que o Al-Sadd, do Catar, entrou na sua vida profissional em 1983.

"Conversei em casa e fomos de mala e cuia. A família chegou mais tarde por causa do calendário escolar e eu preparei o terreno. Ao chegar, tivemos de nos adaptar. Minhas filhas e a mulher não usavam burka (veste feminina que cobre todo o corpo além do rosto). Apesar de liberadas do traje tradicional, elas não podiam usar shorts. Só saias compridas e nada de decote. Não podiam vestir nada que mostrasse as formas da mulher."

Um outro pedido, logo acatado pelo técnico brasileiro, foi a mudança no visual. "Eles alegavam que com barba e bigode, eu teria mais respeito junto aos jogadores. Era um sinal de masculinidade. Não vi problemas, mas a Lélia, minha esposa, reclamou demais. Tanto é que, quando voltamos ao Brasil, rapidinho eu tirei", disse Pepe em entrevista ao Estadão.

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Um dos desbravadores dessa empreitada foi o ex-ponta-esquerda Pepe. Foto: Gisa Macia/Acervo Pessoal

Convites para assistir corridas de camelos fizeram parte da rotina de Pepe. Mas foi no mundo árabe que ele doutrinou aquele que viria a ser um dos maiores técnicos da atualidade: Pep Guardiola. "Quando me perguntaram da possibilidade de contratá-lo, aceitei na hora. E o Guardiola se mostrou um atleta já voltado para questões de estratégia. Adorava conversar sobre o futebol brasileiro, perguntava muito sobre o Santos dos anos 1960. Como era volante, tinha curiosidade em saber muito do Zito e do Clodoaldo. Era meu capitão. Agora, uma curiosidade é que ele não gostava de disputar as bolas de cabeça. Dizia: 'mister, cabeça é feita apenas para pensar'". Seus times jogam com a bola nos pés. Outro desbravador que também conversou com a reportagem do Estadão foi Sebastião Lazaroni, técnico da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1990, na Itália. Sua primeira passagem aconteceu na segunda metade da década de 1980. E o cenário lá era bem diferente.

"Muitos campos havia só uma cerca separando os jogadores da torcida. Você tinha de subir no carro para poder ver o jogo. Nada de estádio como vemos hoje . O piso, em sua maioria, era de terra batida. Poucos campos eram gramados", afirmou o treinador, que trabalhou em países como Arábia Saudita, Kwait e Catar.

Muito desse desenvolvimento no Oriente Médio, ele credita a nomes como Didi (ex-Botafogo e seleção brasileira), Zagallo, Rubens Minelli, Evaristo de Macedo e Parreira. "As dificuldades eram grandes. Muitos jogadores locais trabalhavam o dia inteiro para depois ir ao treino. Tínhamos de ter uma postura de transparência e respeito por eles."

Silas, ex-meia do São Paulo nos anos 80, também se aventurou no mundo árabe como treinador entre 2011 e 2012. Foto: Paulo Silas/Acervo Pessoal

Mas foi no Kwait, dirigindo o Al-Arabi, que Lazaroni viveu uma fase mais tensa da carreira. "Era o período pós-guerra do Kwait com o Iraque. De reconstrução. Muitos prédios demolidos. Você estava treinando e, de repente, helicópteros desciam nos campos. Era complicado e tínhamos de interromper e às vezes até encerrar os trabalhos", comentou.

IRMÃO DE ZICO PEITOU FILHO DE SADDAM HUSSEIN

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Edu Coimbra, irmão de Zico, era um treinador em início de carreira em 1985 quando aceitou o desafio de comandar o Al Rasheed, time de Uday Hussein, filho do ditador iraquiano Saddam Hussein. Com um perfil carrancudo e um temperamento bipolar, Uday tinha quase dois metros de altura e carregava fama de punir severamente os jogadores que o desagradassem em campo. Apesar do tratamento cordial com o técnico brasileiro, a política de boa vizinhança entre as duas partes foi por água abaixo numa partida armada pelo dirigente iraquiano na tentativa de aumentar o prestígio da sua equipe na cidade.

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O fim do campeonato local terminou com o Al-Rasheed em segundo lugar. Uday armou uma partida extra contra o campeão legítimo do torneio para colocar novamente o título em disputa. O local do embate, claro, foi no estádio da sua equipe. "Ele (Uday) chegou com uma comitiva de mais de 30 carros e um batalhão de seguranças. Vencíamos a partida por 1 a 0 quando veio o pedido de cima para tirar o nosso camisa 10. Não acatei a ordem e, para a minha sorte, o tal jogador aumentou o placar para 2 a 0. Foi quando um dos nossos atletas levou o cartão vermelho e o Uday entrou em cena para tirar o time de campo", afirmou Edu ao Estadão.

O irmão de Zico bateu de frente com o patrão e o jogo foiaté o fim. "Aquilo não estava certo. Ele ficou com medo de o adversário virar o jogo e brigamos feio. Só que eu não sabia a forma de agir do Uday. Quase que me ferro. Ele costumava raspar a cabeça dos jogadores e fazer outras coisas com eles. Dizem até que tinha um paredão onde os atletas eram expostos a agressões. Mas isso só ouvi falar."

Segundo Edu, a partir daquele dia, ele nunca mais foi recebido pelo príncipe iraquiano. De treinador que classificou a seleção iraquiana para a Copa de 86, ele foi rebaixado a auxiliar. "Não aceitei e pedi demissão."

LEÃO NO QUINTAL

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Silas, ex-meia do São Paulo nos anos 1980, também se aventurou no mundo árabe como treinador entre 2011 e 2012. Ele dirigiu o Al-Arabi e depois o Al-Gharafa, ambos do Catar. Ele conta que, numa ocasião, recebeu um recado do sheik para se apresentar nopalácio às 7h da manhã. "Deixei os filhos na escola e fui até lá um pouco apreensivo. Não é comum uma reunião nesse horário. Ao entrar, cercado por vários seguranças, tinha um leão enorme andando tranquilamente numa jaula no quintal. Ele não parava quieto. A gente não está acostumado com isso", contou Silas, que atualmente é comentarista dos canais ESPN.

Entre as excentricidades, ele destacou também a idolatria que as lideranças políticas têm pelos profissionais de futebol. No comando do Al-Gharafa, ele venceu a Qatar Emir Cup em 2012 e dois dos brasileiros que estavam no seu time foram decisivos para a conquista. "Após empate no tempo normal em 0 a 0 contra o Al- Sadd, fomos para os pênaltis. O Diego Tardelli e o Zé Roberto converteram as cobranças finais e ficamos com o título. No dia seguinte, todo o plantel teve direito a um banquete no Palácio Imperial."

DE OLHO NO PALMEIRAS

O Mundial de Clubes que terá o Palmeiras como candidato também esteve na ordem da conversa. Silas disse que o time paulista chega mais fortalecido para buscar o título este ano. "O Abel Ferreira trouxe uma mentalidade mais europeia. A equipe está encaixada e a frustração pelo quarto lugar no ano passado parece superada. Vencer a Libertadores em cima de um time forte como o Flamengo deu moral ao time."

Já Sebastião Lazzaroni acha que a força do conjunto precisa prevalecer para o time brasileiro ter mais chances de superar uma provável final contra o Chelsea. "No futebol, o imponderável também existe. São 90 minutos. Não vejo um destaque individual no Palmeiras, mas taticamente, o grupo evoluiu. Uma boa marcação e uma transição rápida podem ser decisivas. O importante é manter o foco."

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O calor foi o principal problema apontado pelo ex-ponta Pepe. "No mundo ideal, o correto seria chegar com 20 dias de antecedência para se aclimatar. O Palmeiras precisa estar compacto para não dar brechas e evitar a correria desnecessária. O fôlego pode ser o diferencial no final da partida."