Como países árabes usam a Copa do Mundo como uma campanha de apoio à Palestina

Torcedores e jogadores marroquinos comemoram classificação às quartas de final com manifestações pró-Palestina; território está sob domínio de Israel

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Foto do author Pedro Ramos

A classificação de Marrocos às quartas de final da Copa do Mundo foi histórica por si só. É o melhor resultado da seleção em sua história e também iguala os feitos de Gana, Camarões e Senegal ao se tornar a quarta seleção africana a atingir as quartas do Mundial. Em meio a essa conquista, jogadores marroquinos aproveitaram o momento e celebraram, ainda em campo, com uma bandeira da Palestina. “É a vitória de todos os marroquinos, todos os povos árabes e todos os povos muçulmanos do mundo”, disse o atacante marroquino Sofiane Boufal.

Cenas semelhantes já haviam sido registradas na fase de grupos da Copa. Na partida entre Tunísia e França, um torcedor invadiu o gramado do Estádio Cidade da Educação com uma bandeira palestina. Nas arquibancadas, bandeiras com os dizeres “Free Palestine” (“libertem a Palestina”, em tradução livre) foram carregadas pelos tunisianos e músicas de apoio ao povo palestino foram entoadas nos estádios e ruas.

Torcedor tunisiano invade o Estádio Cidade da Educação com uma bandeira da Palestina, durante partida entre Tunísia e França.  Foto: Noushad Thekkayil/EFE

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Manifestações solidárias à Palestina de países árabes e do Norte da África foram vistas em vários outros jogos da Copa do Mundo, das arquibancadas aos gramados. Jogos do Catar, Marrocos, Tunísia e Arábia Saudita tiveram torcedores e jogadores carregando bandeiras, vestindo camisas e braçadeias, além de cantarem músicas de apoio ao povo palestino.

Para especialistas, esse movimento de torcedores árabes evidencia uma questão que não foi solucionada. Danny Zahreddine, professor de Relações Internacionais da PUC-MG, afirma que há um apoio da população árabe a favor da Palestina, mas que perde força na relação com Israel. “Até hoje milhões de palestinos, desde a fundação do Estado de Israel, em 1948, passam por dificuldades na região. Apesar das manifestações do povo árabe a favor da Palestina, as nações árabes colocam esta questão em um lugar muito marginal em suas agendas políticas.”

Outros episódios comuns de torcedores árabes nesta Copa do Mundo são o boicote à imprensa israelense. Muitos fãs tem se recusado a dar entrevistas ou tem interrompido suas interações com repórteres de Israel em apoio à causa palestina. Nenhum caso de violência foi registrado.

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Apesar dessas posições do governo do Marrocos, a ação dos atletas, após a vitória sobre a Espanha, evidencia a posição do povo árabe. “Essas políticas nas nações árabes mostram um choque com a população, com a falta de agenda e uma política clara com relação à Palestina”, afirma Zahreddine.

“Quando Marrocos leva a campo uma bandeira palestina, após vencer uma nação colonizadora como a Espanha, os jogadores deixam uma mensagem clara: ‘independentemente do reconhecimento de Israel por parte do Estado, apoiamos o lado da Palestina”, diz. “Isso tem um impacto positivo porque acontece em um momento de visibilidade para a Palestina.”

Jogadores marroquinos comemoram classificação às quartas de final com uma bandeira da Palestina. Foto: Martin Meissner/AP

“Existe um sentimento de arabismo que é comum a todos esses países, que une esses povos”, explica Arlene Clemesha, professora doutora de História Árabe do Curso de Árabe do Departamento de Letras Orientais da USP. “Não é fácil de explicar, mas se expressa de forma cultural, tanto na ideia de passado e como visão de futuro, nas suas origens, nas suas trocas culturais. Esse sentimento é forte, antigo e tem raízes em toda a história árabe. Não se acaba com esse sentimento quando a região é dividida em estados nacionais. O momento é de descrença nos governos árabes, mas as pessoas mantêm esse sentimento. Não é exagerado dizer que eles são irmãos”.

O regulamento da Copa do Mundo proíbe a “exibição de mensagens políticas, religiosas ou pessoais ou slogans em qualquer idioma por jogadores e membros das seleções”. “A Fifa tenta diminuir essas arestas, tornando o esporte o mais inclusivo possível, mas os seres humanos são autônomos, têm seus próprios sentimentos”, relata Zahreddine. “Para o árabe comum, as imagens pró-Palestina e da seleção marroquina tem poder social e popular. Resta saber como as forças políticas podem utilizar isso a seu favor.”

Bandeiras de Marrocos e da Palestina são vistas nas arquibancadas do estádios da Copa do Mundo do Catar.  Foto: Mohamed Messara/EFE

A Palestina passa por conflitos com Israel há décadas. O território não é reconhecido pela ONU como um Estado, mas a Fifa tem a seleção como uma de suas 211 federações associadas.

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Os Acordos de Abraão

Marrocos é um dos países signatários dos Acordos de Abraão, assinado em 2020 e considerado um tratado histórico na região, representando um avanço diplomático. Ele significa a aproximação das relações dos governos de Israel com Marrocos, Bahrein e Emirados Árabes Unidos, ampliando a cooperação econômica entre essas nações. “O momento é de descrença nos governos árabes, mas as pessoas mantêm esse sentimento”, diz Arlene.

A própria Palestina foi subjugada antes da criação do Estado de Israel, explica Samuel Feldberg, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade de Tel Aviv. “A Cisjordânia e a Faixa de Gaza estiveram ocupadas pela Jordânia e o Egito. Durante este período, nenhum dos países árabes sugeriu a criação de um Estado da Palestina.” Além de semelhanças culturais, uma certa “simpatia” pelo lado mais fraco ajudaria a explicar este apoio da população árabe.

Sabiri, jogador da seleção de Marrocos, comemora a classificação às quartas de final da Copa do Mundo ao lado de uma bandeira da Palestina. Foto: Petr David Josek/AP

Uma união dos povos árabes já havia tido uma tentativa frustrada com o Pan-arabismo. Com origens no Nasserismo, ideologia política nacionalista árabe baseada nos pensamentos do antigo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, ele defendeu que os povos do mundo árabe constituíam uma só nação unida por características linguísticas e culturais em comum. O movimento perde sua força com a morte do próprio Nasser, em 1970.

“O Pan-arabismo e o Nasserismo são praticamente enterrados com a derrota árabe na Guerra dos Sete Dias e a morte de Nasser, força maior no movimento”, conta Zahreddine. A morte da jornalista Shireen Abu Akleh, repórter palestino-americana que cobria o conflito na Cisjordânia, e as violências no território reinvidicado pela Palestina são exemplos da origem da manifestações contemporâneas favoráveis ao povo palestino.

“Estes casos mexem com o povo árabe mais do que uma ideologia pan-arábica em si. As manifestações pró-Palestina são movimentos de solidariedade com os palestinos, que buscam compreender sua realidade e acessar o seu mundo”, afirma. “Apesar da Copa do Mundo acontecer, não dá para esquecer dos conflitos que ocorrem na Palestina e no Oriente Médio.”

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Questão sarauí

Por outro lado, apesar da defesa do povo marroquino à questão palestina, Marrocos tem um problema interno com o Saara Ocidental. A questão foi lembrada nas redes sociais em meio à viralização do apoio marroquino à Palestina.

Durante 45 anos, o povo saarauí do Saara Ocidental vive em um assentamento no deserto da Argélia. Em 1975, fugiu durante a Guerra do Saara Ocidental, em que a Frente Polisário, uma organização militar saarauí, lutou pela independência do país. O conflito continua sem solução até os dias atuais e a maior parte do seu território segue sob domínio marroquino.

“Esta questão (do Saara Ocidental) evidencia a complexidade da organização do Estado moderno atual. Cada população vai buscar argumentos para justificar suas políticas. É algo contraditório, mas provavelmente na cabeça dos marroquinos eles entendem que a região era, originalmente, ocupada por Marrocos”, afirma o professor.

A República Árabe Saaraui Democrática busca, desde 1975, reivindicar a soberania sobre o território do Saara Ocidental. Atualmente, mais de 80 países já reconheceram a independência do povo saarauí - o Brasil é o único país da América do Sul que não o fez. Sem território, os refugiados se concentram no sudoeste da Argélia, que reúne mais de 200 mil pessoas.

Região do Saara Ocidental busca independência do domínio do Estado de Marrocos. Foto: Javier Barbancho/Reuters