A ex-jogadora Marcia Taffarel acompanha a evolução do futebol feminino desde o início de sua carreira, quando a modalidade carecia de investimento e infraestrutura adequados. Natural de Bento Gonçalves (RS), a veterana começou no profissional ainda na adolescência, quando o esporte se popularizou entre as brasileiras. O futebol entre as mulheres foi proibido de ser praticado por quase 40 anos devido a um decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937/1945).
“No passado, diziam que o futebol não era para meninas. A lei afirmava que não era adequado para elas por ser um esporte de contato físico, por desenvolver certos músculos nas meninas e por, supostamente, afetar a gravidez e a reprodução”, relembra Taffarel, que agora mora na Califórnia, onde atua como treinadora da seleção feminina de futsal dos Estados Unidos.
Márcia defendeu a seleção brasileira nas Copas do Mundo de 1991 e 1995, além dos Jogos Olímpicos disputados em 1996, em Atlanta, EUA. Em entrevista ao Estadão, ela compartilhou detalhes da sua trajetória, opinou sobre as mudanças ocorridas no futebol e comentou sobre suas expectativas para a Copa Feminina deste ano, que será disputada na Austrália e Nova Zelândia, entre os dias 20 de julho e 20 de agosto. Márcia é prima do goleiro Cláudio Taffarel, campeão do mundo em 1994, também nos EUA.
Como você começou a jogar bola?
A minha geração aprendeu a jogar na rua. Nós jogávamos contra os meninos. A minha família toda morava na cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e a gente tinha uma vizinhança com muitas crianças. As meninas brincavam de escritório e de boneca, mas eu sempre me identifiquei mais com as brincadeiras de menino. Eu gostava de me superar e superá-los, e o futebol era uma brincadeira em que eu via a concepção da palavra “competir”.
Houve apoio da sua família?
Era muito difícil ter total apoio da família, porque estamos falando da década de 1970 e 80, quando o futebol feminino havia sido recentemente regulamentado. Eu tinha que, às vezes, brigar com parte da família para poder brincar de futebol na rua. As pessoas que mais me apoiaram foram meu avô, que sentava na muretinha de casa e ficava assistindo, e minha mãe, que nunca viu nenhum tipo de empecilho para que eu jogasse futebol. Ela se envolveu com o futebol e passou a me acompanhar. Quando eu tinha 13 anos, foi ela que me levou para fazer uma peneira no Bento Atlético Clube Feminino, que estava se formando na cidade. A partir dali, comecei a encarar o futebol mais seriamente.
Você se lembra do momento em que descobriu que havia sido convocada para a Copa Feminina?
Eu lembro vagamente que quem me avisou foi um dirigente do Saad. Eu sabia que existia uma seleção porque houve uma convocação em 1988, quando fui convocada pela primeira vez para o Torneio Experimental da China. Porém, não pude aceitar a convocação naquela ocasião. Havia acabado de conseguir um emprego na Fundação Bradesco. Estava trabalhando lá havia apenas dois meses. Então, optei por abrir mão da seleção naquele momento, porque precisava me sustentar. Mas tive uma segunda chance em 1991. Graças a Deus, me destaquei na equipe do Saad e recebi uma segunda convocação para o Sul-Americano. Nessa ocasião, já estava há três anos na empresa e consegui pedir uma dispensa para participar do torneio. Eles me deram e continuaram pagando meu salário. Como fomos campeãs e nos classificamos para o Mundial, tive de sair do emprego, pois o período de preparação seria longo.
Você ainda não ganhava dinheiro com o futebol?
Eu tinha uma ajuda de custo do Saad logo que mudei para Campinas, mas não dava para pagar todas as contas para morar lá. Quando consegui esse emprego, fui morar com uma ex-atleta do Saad, dividindo o aluguel. Com isso, consegui continuar jogando no Saad e me sustentar com o emprego que tinha.
A CBF oferecia uma estrutura adequada para as jogadoras?
Não havia estrutura nem competições adequadas. Havia uma escassez de campeonatos específicos para mulheres, o que nos obrigava a nos preparar durante longos períodos para poder competir em torneios internacionais, como a Copa do Mundo. Não tínhamos uma liga profissional para jogar regularmente, então éramos restritas a participar de um ou dois torneios por ano. Além disso, as competições de futsal para mulheres estavam mais desenvolvidas do que as do futebol de campo. Por isso, muitas vezes, tínhamos de jogar nas duas modalidades para manter um nível competitivo adequado.
Mas o que a CBF dava para vocês?
A CBF nos fornecia o que tinha disponível do futebol masculino. Isso incluía uniformes, que eram geralmente cortes masculinos, muitas vezes não eram novos e eram repassados da seleção masculina para a feminina. Tivemos de passar por um processo de luta, enfrentando obstáculos, para que as gerações futuras tivessem uma estrutura melhor. A gente cobrava por uma estrutura adequada.
Quais as barreiras você enfrentou no futebol por ser mulher?
Todo aquele tabu de quebrar a barreira e a cultura machista que a gente tinha e que ainda existe porque está enraizado. Diziam que o futebol não era para menina. A lei falava que não era apropriado para menina porque é um esporte de contato físico, porque criaria certos músculos nas meninas, porque poderia afetar a gestação, a procriação. Isso não era científico, era uma mentalidade machista que alguém falou que não podia, que os médicos falavam que não podia. Havia o preconceito dentro de casa. Uma parte da família aceitava e outra não. Depois você ia para fora e enfrentava o preconceito de fora. No estádio, tinham pessoas que iam assistir e te chamavam de um monte de nomes feios. Então, era comprar briga mesmo. Bem diferente de agora.
Como foi pendurar as chuteiras?
O processo não foi doloroso, porque eu já vinha imaginando isso. No Brasil, quando você passa dos 30 anos, já é considerada veterana. Aos 32 anos, parei de jogar, mas achava que tinha muito mais anos para contribuir no futebol. Precisei parar porque cheguei em uma idade em que não tinha mais como manter a performance. Isso está mudando. Temos o exemplo da Marta, com 37 anos, ainda jogando.
O que você passou a fazer?
A estrutura era muito precária em 2001. Começou uma comercialização do futebol feminino visando atrair mais espectadores, mas começaram a sexualizá-lo demais. Em vez de atletas, traziam modelos para o esporte de alto rendimento. Foi nesse momento que comecei a me decepcionar e a buscar outras formas de estar envolvida na modalidade. Quando parei de jogar futebol de campo, já havia feito vários cursos para me tornar treinadora de futsal. Eu ainda jogava futebol de salão na Associação Sabesp e comecei a treinar as equipes de base lá.
E hoje você treina a seleção feminina de futsal dos EUA…
Eu vim para os Estados Unidos para aprender inglês. Mas ao ver a quantidade de meninas jogando futebol aqui, desde os oito anos de idade em competições menores, percebi que estava no paraíso do futebol feminino. Se o Brasil é considerado o país do futebol masculino, os Estados Unidos deveriam ser considerados o país do futebol feminino. Então, por que eu voltaria se é isso que quero para minha vida? Decidi solicitar um novo visto, continuei aqui e comecei a estudar e a dar treinamentos de futebol. Aqui a mentalidade é diferente. Se você diz “eu fiz parte da seleção brasileira”, você é tratada como uma deusa. É respeitada e valorizada.
Como a seleção brasileira é vista nos Estados Unidos?
A seleção brasileira sempre foi muito respeitada pela técnica e pela qualidade das jogadoras. Hoje, o futebol obviamente mudou em todo o mundo. Ainda mantemos a qualidade técnica, mas também desenvolvemos o potencial físico e a qualidade tática. Por isso, conseguimos nos equiparar a várias outras seleções que se destacavam anteriormente. Se você conversar com as jogadoras americanas e perguntar o que elas acham do futebol brasileiro, elas vão te dizer que não conseguem entender como o Brasil ainda não conquistou uma Copa do Mundo, porque temos qualidade. É na parte mental que falhamos. Quando conseguirmos manter essa estrutura mental durante o jogo, seremos mais difíceis de sermos vencidos. Portanto, acredito que isso é o que a Pia também está trazendo para a seleção.
Qual é a sua opinião sobre o Brasil ser comandado por uma treinadora estrangeira?
Convidaram a Pia Sundhage porque ela sabia o que estava fazendo. Ela treinou a seleção americana e a sueca, e o Brasil obviamente precisava de um treinador ou treinadora que tivesse o conhecimento, e é bom que tenham escolhido uma mulher estrangeira nesse perfil. Ela sabia o que era necessário para a seleção brasileira se aprimorar, se desenvolver e começar a se destacar. Depois deste ciclo, podemos rever e analisar. Hoje, no Brasil, há treinadores que podem assumir a seleção e garantir um processo contínuo. Tudo é uma questão de etapa, mas a vinda dela foi de suma importância.
O quanto o futebol feminino brasileiro mudou desde a sua geração?
Mudou muito. Eu vejo as meninas vestidas todas com aquele uniforme bonito de viagem, em voo fretado. Quando a gente iria imaginar que teria voo fretado para o futebol feminino? Demorou nove Copas para a gente ter um voo fretado só para as meninas poderem viajar e descansar durante o voo. É a qualidade da preparação. Pensar no futebol das mulheres para as mulheres, com todo o respeito que os homens também têm, fará com que as meninas e as famílias delas vejam isso e acreditem que elas também podem chegar lá. Uma preparação, melhores salários, estrutura de treinamento melhor, respeito: é isso que faz com que tudo melhore.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.