LONDRES - Daniele Orsato chamou a atenção de Harry Kane, capitão da equipe da Inglaterra e apontou para o campo. Kane não entendeu bem, talvez - o atacante estava fazendo os alongamentos finais - mas acenou com a cabeça para consentir. Orsato, o árbitro italiano, colocou o apito na boca e deu início a uma guerra cultural de seis segundos.
Não é algo inusitado a Inglaterra dar retoques finais na sua preparação para um torneio importante diante de um pano de fundo de ansiedade e acrimônia. Sempre acontece alguma coisa com o time: um jogador importante sofre uma lesão, desfruta de um grande período de popularidade que acaba, a preocupação quanto a se o time está sendo tratado com muita, ou pouca, disciplina.
As últimas semanas não foram particularmente férteis para essa inquietação tradicional. Uma disputa fabricada sobre se o técnico Gareth Southgate tinha errado ao nomear os quatro laterais direitos especialistas - muitos laterais para os padrões de qualquer pessoa - na sua lista, dava a expectativa de uma boa e velha controvérsia. Que acabou quando um deles, Trent Alexander-Arnold, sofreu uma lesão que o tirou do torneio. No fundo, ninguém achou que três laterais direitos são um excesso.
Em vez disso, Southgate e seus jogadores se viram na frente e no centro de algo muito mais sério. Como a vasta maioria dos seus colegas na Premier League, os jogadores da equipe da Inglaterra, no ano passado, se ajoelharam antes dos jogos, gesto copiado dos atletas ativistas nos Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd nas mãos de um policial, no ano passado.
Quando o time entrou em campo para seus dois jogos finais de preparação para o torneio - ambos realizados em Middlesbrough - os jogadores agiram do mesmo modo. Desta vez, contudo, eles foram zombados por uma grande parte dos seus próprios torcedores.
Durante uma semana o gesto e a sua recepção pareciam ter colocado os jogadores e funcionários da equipe inglesa contra a base do seu apoio. O ato de se ajoelharem, foi dito aos jogadores, era um ato que provoca desunião, um ato político, sem sentido que tirava atenção da ação de fato, embora nenhum dos críticos jamais tenha esclarecido o que seria uma ação de fato.
Diversos parlamentares conservadores criticaram o apoio dos jogadores ao que consideram ser um movimento marxista para erradicar a família nuclear e atacar Israel. Um deles, Lee Anderson, revelou que não mais assistiria a um jogo da sua amada equipe. Boris Johnson, primeiro-ministro, inicialmente não condenou os que se opuseram a um ato racista, embora posteriormente tenha pedido aos fãs para apoiarem o time, “não vaiarem”.
Mesmo pressionado, os jogadores mantiveram sua posição. Southgate não só deu seu apoio, mas também cobertura. Ele havia consultado seus jogadores, sabia da opinião deles e os apresentaria, independentemente de qualquer crítica que viesse a surgir. A Football Association da Inglaterra, emitiu um comunicado surpreendentemente brusco dizendo que não considerava o ato de se ajoelhar dos jogadores como um gesto político e que as hostilidades não mudariam isso.
Mas então veio o teste: no momento em que Orsato usou seu apito, mas antes do início do jogo de abertura da equipe inglesa na Eurocopa 2020, contra a Croácia, os que contestavam o ato de se ajoelhar dos jogadores, que acham que os atletas representam o seu país precisam fazer o que é mandado, se defrontaram com o que, agora, se tornou um ato de desafio.
E tudo se verificou num abrir e fechar de olhos. Os críticos que zombaram dos atletas iniciaram o ataque. Quando a música acabou, ouviu-se um identificável coro de desaprovação. Mas eles rapidamente foram rechaçados. Uma parte bem maior do público começou a vaiar, aplaudir, abafar as vozes dos zombeteiros. Em questão de seis segundos tudo acabou. Orsato se levantou, seguido por Kane e o resto do time. O jogo teve início. Todo mundo aplaudiu.
Este é o mito, naturalmente. Southgate disse, enquanto ruminava sobre o problema na semana passada, que sabia que sua equipe contaria com o apoio dos seus torcedores durante o jogo. E é verdade: as pessoas que estavam vaiando queriam que a Inglaterra vencesse. E comemoraram quando Raheem Sterling, se ajoelhou e marcou o único gol do jogo.
É um pequeno passo a partir daqui acreditar que, caso esta seja a primeira de sete vitórias no próximo mês e que a Inglaterra deverá terminar este verão como campeã da Europa pela primeira vez na sua história, quando então uma espécie de vitória social também estará assegurada.
Naturalmente é uma fantasia. Todos aplaudiram no final do jogo quando a Inglaterra despachou a equipe croata, uma vitória digna de nota não pelo espetáculo, mas por sua eficiência e calma. A Inglaterra mal engatou a segunda marcha porque não precisou muito; melhor poupar as energias para testes mais duros que estão à espera.
Mas isso não significa que alguma coisa mudou. Ainda existe a possibilidade de que, quando a Escócia chegar no próximo fim de semana, os jogadores serem vaiados por outra pequena parte da multidão.
Será uma minoria, novamente, como ocorreu aqui, e existe o perigo de imaginar que os mais turbulentos devem automaticamente falar em nome de uma grande plateia. Mas eles estarão lá, a grande vanguarda antimarxista, irredutível, imutável e intransigente.
Nenhuma vitória no campo de futebol mudará isto. Ver Sterling levantando um troféu em 11 de julho neste mesmo estádio não vai mudar a opinião de ninguém. O futebol é o palco em que temos esse tipo de conversa - e a Europa, como escreveu Henry Mance no Financial Times na semana passada, com frequência é o único lugar em que muitos de nós interagimos com nossa nação como um conceito - mas uma conversa imperfeita.
Queremos um time que reflita o nosso país, afirmamos, mas não significa que queremos um time que nos reflita e também nossa percepção do que o país é. A Inglaterra pode vencer, ou perder, no próximo mês, mas isso não fará nenhuma diferença no contexto mais amplo. É pedir muito para uma única equipe esportiva refletir o que um país significa para 55 milhões de indivíduos. E é demasiado esperar que ela consiga sanar todas as nossas discórdias com uma simples vitória, não importa o quão forte for aclamada. / Tradução de Terezinha Martino
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