“Não é suficiente não ser racista, deve-se ser antirracista”. A frase que intitula a capa desta terça-feira do jornal Marca, mais importante periódico esportivo da Espanha, dá o tom do impacto da repercussão mundial sobre os recorrentes insultos racistas direcionados ao atacante brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, ao longo da atual edição do Campeonato Espanhol. O novo episódio de preconceito e discriminação em jogo com o Valencia, no domingo, abalou o mundo do esporte, obrigou o país ibérico a refletir sobre seu posicionamento e chamou a política e a diplomacia de Espanha e Brasil à ação.
A Espanha tem em seu território cerca de 5,5 milhões de estrangeiros, sendo a maioria de marroquinos (776 mil), além de 91 mil brasileiros. O país ibérico, que espalhou o castelhano especialmente na América na época das Grandes Navegações e possui 2,8 milhões de cidadãos e seus descendentes residentes em outros países - muitos deles no Brasil (136,6 mil) -, se depara no esporte com um problema social que se agravou com os novos fluxos migratórios e pode fazer emergir do futebol uma resposta para o racismo e a xenofobia.
O governo espanhol, em nome do presidente do governo Pedro Sánchez, pediu “tolerância zero para o racismo no futebol. O esporte é baseado nos valores de tolerância e respeito. O ódio e a xenofobia não deveriam ter lugar no nosso futebol ou na nossa sociedade”. A resposta do líder do país ganha contexto em meio a um eleitorado.
A publicação veio acompanhada de uma nota do Conselho Superior de Esportes da Espanha, que repudiou os ataques a Vinícius Júnior, se disse engajado na luta contra o racismo e a xenofobia com a realização de reuniões periódicas para debater o tema e propôs à Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) e à La Liga, organizadora do Campeonato Espanhol, a realização de uma campanha de conscientização junto às torcidas.
O Itamaraty cobrou explicações à embaixadora da Espanha no Brasil, Mar Fernández-Palacios, em ligação telefônica. A embaixada da Espanha no Brasil, em nota oficial, condenou os ataques racistas a Vini Jr. “A Embaixada condena com veemência as manifestações e atitudes racistas e expressa total solidariedade ao jogador Vini Jr. pelos ataques intoleráveis e covardes sofridos, que, de nenhuma maneira, refletem as posições antirracistas da absoluta maioria da população espanhola.”
Como o futebol espanhol vai reagir aos insultos contra Vini Jr
Na Liga Espanhola, o presidente Javier Tebas, se manteve em oposição aos argumentos apresentados por Vinícius Júnior, especialmente nas publicações nas redes sociais. “Omitir-se só faz com que você se iguale a racistas. Não sou seu amigo para conversar sobre racismo. Quero ações e punições. Hashtag não me comove”, publicou o brasileiro, e Tebas respondeu que é “injusto dizer que a Espanha e La Liga são racistas.”
O mandatário ainda apontou que os infratores foram identificados e levados às autoridades e disse que os casos de racismo foram pontuais, apesar de que das nove denúncias feitas ao longo da temporada 2022-23, oito delas partiram de Vini Jr. “Não podemos permitir que se manche a imagem de uma competição que é sobre o símbolo de união de povos, onde mais de 200 jogadores são de origem negra em 42 clubes que recebem em cada rodada o respeito e o carinho da torcida, sendo o racismo um caso extremamente pontual (nove denúncias) que vamos eliminar”, escreveu Tebas.
Em outra ponta, o presidente da RFEF, Luis Rubiales, foi mais duro quanto aos ataques racistas e criticou a postura de Tebas. “Quero mandar um recado ao presidente da CBF para vir à RFEF ou vou viajar ao Brasil para ver o que a Federação faz com isso (caso de racismo contra Vini Jr.). Peço que ele ignore o comportamento do presidente de LaLiga. Não era o momento de entrar para debater isso no Twitter. Temos um problema em nosso país de educação, de racismo. Temos um problema sério que mancha todo um time, torcedores e um país inteiro. Vini ou qualquer jogador que receber insulto tem meu apoio e da Federação”, afirmou Rubiales.
Real Madrid cobra firmeza de autoridades para combater racismo contra Vini Jr.
Apesar do posicionamento de Rubiales, o Real Madrid reafirmou em nota seu descontentamento com a postura das entidades que lideram o futebol espanhol. “Estamos surpresos com as declarações do presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, porque sendo o maior responsável do futebol espanhol e da área de arbitragem, permitiu que não fossem tomadas medidas contundentes, de acordo com os protocolos da Fifa, para evitar a situação a que se chega. A imagem do nosso futebol está seriamente danificada e deteriorada aos olhos de todo o mundo. Através da sua passividade, (Luis Rubiales) tem contribuído para a impotência e a indefesa do nosso jogador”, escreveu o clube.
O presidente da equipe merengue, Florentino Pérez, se reuniu na tarde desta segunda-feira com Vini Jr. Diante das câmeras e em meio aos cliques de fotógrafos, o cartola prestou sua solidariedade e apoio ao brasileiro e disse que irá até as últimas consequência em oposição ao que ocorreu no Estádio Mestalla. O Real Madrid apresentou uma denúncia à Promotoria contra crimes de ódio e discriminação da Procuradoria-Geral do Estado.
Jornais espanhóis afirmam que a RFEF demitirá Nacho Iglesias Villanueva, árbitro responsável por operar o VAR no jogo entre Real Madrid e Valencia. O corte de imagem que o árbitro apresentou ao juiz principal no momento da análise do vídeo que culminou na expulsão de Vini Jr. foi o divisor de águas para a tomada de tal decisão. Outros profissionais do apito devem ser desligados ao término da atual temporada.
A Federação Internacional de Futebol (Fifa) e seu presidente, Gianni Infantino, cobraram da organização do futebol espanhol que as medidas em vigor no Código Disciplinar desde 2019 para casos de racismo sejam colocadas em prática com efetividade na presença de discriminação durante as partidas.
“Primeiro, você para o jogo e o anuncia. Em segundo lugar, os jogadores saem de campo e o alto-falante anuncia que, se os ataques continuarem, o jogo será suspenso. O jogo recomeça e, em terceiro lugar, se os ataques continuarem, a partida vai parar e os três pontos vão para o adversário. Estas são as regras que devem ser implementadas em todos os países e em todas as ligas. Claramente, é mais fácil falar do que fazer, mas precisamos fazer e precisamos dar apoio a isso com base na educação”, disse Infantino.
Nesta noite, o Cristo Redentor, no Rio, apagou suas luzes. “Preto e imponente”, disse Vini Jr. em suas redes sociais. “O Cristo Redentor ficou assim há pouco. Uma ação de solidariedade que me emociona. Mas quero, sobretudo, inspirar e trazer mais luz à nossa luta. Tenho um propósito na vida e, se eu tiver que sofrer mais e mais para que futuras gerações não passem por situações parecidas, estou pronto e preparado.” Vini Jr. não esteve sozinho em nenhum momento, ganhou apoio de jogadores e clubes mundo afora, mas sua expressão de alegria deu lugar à seriedade na Ciudad Deportiva de Valvebebas.
Como os jornais espanhóis refletem as discussões sobre o caso Vini Jr.
O caso Vinícius Júnior não está restrito à mídia da capital, especialmente vinculada ao Real. O Mundo Deportivo, de Barcelona, destaca na sua capa: “Basta já. O futebol espanhol se une contra o racismo depois do último episódio com Vinícius no Mestalla”. O diário As usa do mesmo tom. “O mundo está com Vinícius.” O Sport, da Catalunha, não leva o caso à manchete, mas destaca “apoio total ao Vinícius”.
Entenda o caso Vinícius Júnior
O brasileiro Vinicius Júnior foi mais uma vez vítima de racismo na Espanha. Parte da torcida do Valencia, que enfrentou e venceu o Real Madrid no domingo por 1 a 0, gritou insultos racistas direcionados ao jogador brasileiro no segundo tempo da partida, que foi paralisada e depois retomada pelo árbitro por causa das ofensas.
Nos acréscimos da partida, o brasileiro, revoltado e desestabilizado pelos rivais, foi expulso depois de se desentender com o atacante Hugo Duro, em quem acertou o braço. Ele levou cartão amarelo, mas após revisão do lance pelo VAR, foi expulso pela arbitragem.
O episódio gerou revolta no Real Madrid, cujo técnico Carlo Ancelotti dedicou sua entrevista coletiva inteira para falar sobre o caso de racismo ao fim da partida. A polêmica aumentou em seguida quando o presidente da La Liga, Javier Tebas, criticou Vinicius por ter reclamado da postura da entidade diante dos casos de racismo.
São muitos os episódios de preconceito racial contra Vini Jr. Recentemente, o brasileiro depôs na Justiça espanhola no âmbito do caso em que foi xingado de “macaco” por um torcedor do Mallorca em fevereiro deste ano. “Não foi a primeira vez nem a segunda nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi hoje é dos racistas”, afirmou o atleta em seu perfil no Twitter.
O brasileiro ainda alertou para a imagem que a Espanha passa para o exterior ao permitir que tais ataques aconteçam na maior competição esportiva da nação. “Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas.”
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