Especialistas ouvidos pelo Estadão acreditam que a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) do Projeto de Lei n° 4566/2021, que equipara o crime de injúria ao de racismo e o torna inafiançável e imprescritível, pode trazer benefícios no combate aos casos de discriminação racial no futebol brasileiro, mas veem os possíveis efeitos com cautela. O crime realizado dentro dos estádios terá pena de dois a cinco anos (antes era de um a três anos) e proibição ao infrator de frequência, por três anos, a locais destinados a práticas esportivas.
O diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, avalia que a mudança legislativa dá mais mecanismos à Justiça para aplicar punição aos infratores. “Você tinha antes uma brecha aos agressores. Agora, dá um fim a isso. Mas precisamos ainda ver a aplicabilidade disso. Se não estiver sendo aplicado, não vamos ver mudanças. Precisa ver o movimento da Justiça comum para tratar desses casos. Se ela cumprir, a justiça desportiva vai ter de caminhar nesse sentido também”.
O advogado Eduardo Vargas, que atua no direito desportivo, considera a nova lei “necessária e tardia”. Ele acredita que ela pode ajudar no combate ao racismo no futebol brasileiro. “Na prática, eu sou cético do ponto de vista da Justiça comum de como isso será aplicado no curto prazo. Mas podemos esperar uma mudança na postura das autoridades que investigam, denunciam e julgam”, diz Vargas, que faz uma ressalva: “O problema é que estamos envoltos em um racismo estrutural e o próprio tribunal ainda está nessa estrutura racista que relativiza esses crimes”.
O presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, o primeiro negro na história do cargo, também vê com bons olhos a alteração na lei. “É um grande avanço na luta por um esporte e uma sociedade mais justa, mais humana e mais fraterna. A nova lei é um recado claro aos racistas”, disse ao site da entidade.
No esporte, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, conjunto de normas que regem a prática desportiva, prevê pena a jogadores e funcionários, com possibilidade de suspensão e multa, nos episódios de racismo. A pena é de suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se reserva, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de 120 a 360 dias, além de multa, de R$ 100 a R$ 100 mil. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), última instância da Justiça Desportiva, só considera perda de ponto, perda de mando e exclusão da competição, em casos que julga ser de extrema gravidade.
Em 2022, o Observatório levantou que foram mais de 80 denúncias de racismo no futebol brasileiro, superando os 70 casos registrados em 2021, ano com mais episódios. A previsão de publicação do novo relatório é no primeiro semestre deste ano ou começo do segundo e será lançado novamente em parceria com a CBF. Os levantamentos são produzidos anualmente desde 2014 e coletados através de súmulas das partidas, reportagens e registros de boletim de ocorrência.
CBF amplia discussão sobre combate ao racismo
No ano passado, a CBF realizou ações importantes e tem se mostrado mais combativa. Em 2022, o presidente Ednaldo Rodrigues disse que não concordava com multas aos times em casos de racismo e queria endurecer o regulamento dos torneios, sugerindo a perda de pontos. Questionada pela reportagem, a entidade informa que a proposta será apresentada aos clubes, antes do início dos campeonatos, em abril.
Para Marcelo Carvalho, a entidade está seguindo um caminho mais combativo e rígido no tema. “Quando não tem pessoas negras nos espaços, vão ser poucas as vezes em que nós vamos ser ouvidos como deveríamos, de entenderem o tamanho da dor que estamos relatando. O Ednaldo está entendendo. Muito disso é por ele ser negro e saber como é doloroso, mas não é só por isso. Ele tem feito diversas articulações e acreditamos que teremos mudanças importantes”, diz Carvalho.
Em agosto, a CBF sediou o Seminário de Combate ao Racismo e a Violência no Futebol, com a presença de Marcelo Carvalho, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, o assessor de diversidade e anti-discriminação da Fifa, Pavel Klymenko, além do cantor Gilberto Gil.
Já em outubro, um Grupo de Trabalho para tratar de combate ao racismo e violência no futebol foi criado pela entidade com o objetivo de “discutir os aspectos legais e operacionais relacionado ao aprimoramento do marco regulatório, das políticas públicas e dos procedimentos desportivos, bem como da coordenação das ações pelos diferentes agentes, públicos e privados, envolvidos no enfrentamento do racismo e da violência no futebol”.
Ele conta com representantes da CBF, Fifa, Conmebol, Ministério Público, federações, clubes, jogadores, forças de segurança pública como a Polícia Federal, entidades representativas da sociedade civil e acadêmicos. Ao final dos trabalhos, o grupo irá elaborar um documento único, com os pontos sensíveis e as propostas com foco nas soluções para estes problemas.
“Uma das propostas que fiz foi sobre um curso que tivesse efetivamente participação do grupo para os auditores no Brasil inteiro. Preciso de um braço educativo muito forte, que leve a informação e a educação para a sociedade. Caso contrário, isso não vai se resolver nunca”, afirmou o auditor Paulo Sérgio Feuz, do Pleno do STJD, ao site do órgão.
Neste mês, antes da Supercopa do Brasil, o presidente da CBF também se reuniu com o ministro da Justiça, Flávio Dino, para debater políticas de combate ao racismo e à violência no futebol.
A CBF informou ao Estadão que irá criar a Secretaria da Diversidade, que será responsável pelo combate ao racismo, homofobia e outras formas de discriminação no futebol. Ocorrências registradas por árbitros, dentro e fora dos campos, terão uma cópia da súmula encaminhada para o Ministério Público.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.