O futebol mundial hoje se configura dentro de uma nova realidade. A emergência de grandes grupos que mantêm uma rede de clubes espalhada pelos mais diferentes países e continentes é um fenômeno recente e começa a chegar no Brasil. O modelo de multipropriedade de clubes (Multi-Club Ownership, em inglês) segue desembarcando em solo brasileiro.
Hoje, há pelo menos 78 casos de conglomerados de times no futebol mundial envolvendo pouco menos de 200 equipes, segundo levantamento do centro de pesquisas de esportes CIES Sports Intelligence divulgado em setembro.
storyVários motivos explicam o desejo de criar uma rede global de equipes, desde buscar uma melhor eficiência na captação e desenvolvimento de jovens talentos a custos menores, a possibilidade de intercâmbio de jogadores e a internacionalização da marca. As gestões dos grupos também se utilizam da padronização de operações de negócio e o compartilhamento de dados, tecnologias e metodologias, promovendo uma sinergia interna que seja benéfica a todos os envolvidos.
Em alguns casos, há também uniformização do estilo de jogo e da identidade visual dos times em seus escudos e uniformes, por exemplo. Controlar clubes em países diferentes também permite que os investidores “diversifiquem o risco”, apostando em mercados diferentes. Mas é preciso criar um projeto esportivo sólido e com diretrizes e expectativas bem definidas, avisam especialistas.
Montar uma rede global de clubes para recrutar e desenvolver jovens jogadores também serve para diminuir as quantias milionárias investidas em grandes contratações, como também reduzir os valores de comissões pagos a empresários. A Fifa tem se mostrado preocupada nos últimos anos com os valores crescentes pagos a agentes em transferências.
O controle também dá mais poder no desenvolvimento de atletas. O Chelsea, que com o novo dono Todd Boehly busca entrar nessa onda, tem acordo há vários anos para emprestar jovens atletas ao Vitesse, da Holanda, mas mesmo a proximidade da relação não evita possíveis problemas pelo caminho. Caso haja mudança no clube holandês quanto à demissão de técnico e mudança de estilo de jogo e esquema tático, por exemplo, a utilização e evolução desses jogadores pode ser prejudicada. No modelo de multipropriedade de clubes, o risco de fracasso nesse aspecto é menor.
Críticas
O modelo de multipropriedade de clubes não é unanimidade. Há críticas de que a rede de times serve para abrigar equipes apenas para formar atletas ao clube mais importante do grupo, como franquias que servem a um carro-chefe (flagship, em inglês). Outros questionam porquê diversificar recursos se é possível concentrá-los em um só time. A preocupação com a perda de valores tradicionais dos clubes nos seus símbolos e uniformes também se faz presente aos críticos do modelo.
O mais novo integrante do grupo de multipropriedade de clubes é a Qatar Sports Investments, dona do Paris Saint-Germain, que depois de uma década no futebol resolveu migrar parte de seus investimentos para outro mercado. A QSI comprou 21,67% das ações do Braga, de Portugal, neste mês. No jogo seguinte ao anúncio, torcedores do time português levaram uma faixa ao estádio com a mensagem: “Traficantes de escravos do Catar não são bem-vindos”.
Multipropriedade de clubes e regulação
Esse novo modelo também pode ser um desafio às entidades esportivas e federações nacionais por conta da falta de regulação. Especialistas alertam que é preciso evitar conflito de interesses na possibilidade de dois times de um mesmo conglomerado se enfrentarem em uma competição, o que pode trazer questionamentos quanto à integridade desportiva.
“A CBF está deixando rolar, mas deve vir uma regulação que outras entidades, como a Conmebol, ainda estão esperando acontecer”, analisa João Ricardo Pisani, formado em Relações Internacionais, mestre em gestão esportiva pela Georgetown University e pesquisador da multipropriedade de clubes.
A Uefa limita cada grupo de proprietários a um clube nas competições europeias, mas permitiu que RB Leipzig, da Alemanha, e Red Bull Salzburg, da Áustria, se enfrentassem pela Liga dos Campeões em 2017. Ambos times pertencem ao grupo Red Bull, mas a entidade considerou que o confronto não infringia o regulamento da competição por entender que a gestão das equipes era separada.
O artigo 5 das regras de integridade da Uefa permite que um grupo ou pessoa tenha 100% de participação em um clube e uma participação de “influência não decisiva” em outro que participe do mesmo torneio.
Na Itália, a federação local precisou agir após o acesso da Salernitana à primeira divisão na temporada passada, já que o dono Claudio Lotito também controlava a Lazio. Lotito precisou colocar sua participação na equipe recém-promovida à venda. O futebol italiano já lidou no passado com escândalos de manipulação de resultados.
“Na América do Sul, esse modelo é algo novo, pois o número de clubes com dono ainda é baixo, já que a maioria dos países segue o sistema associativo de constituição de times. Desta forma, no âmbito regulamentar, ainda não foi necessário a Conmebol atuar especificamente em um caso. Contudo, na medida em que a compra de clubes avança no Brasil, deve haver alguma movimentação neste sentido”, avalia Eduardo Carlezzo, advogado especializado em direito desportivo.
A nova indústria do futebol
O modelo de multipropriedade de clubes teve um esboço na década de 1990. A empresa de investimento ENIC tinha ações (minoritárias ou majoritárias) em vários clubes europeus como Tottenham, da Inglaterra, além de Slavia Praga, da República Checa, AEK Athens, da Grécia, dentre outros. Mas a companhia não controlava o futebol desses times, nem adotava uma estratégia focada dentro de campo. O objetivo era ter ações para posteriormente revendê-las obtendo lucro.
Mas o início dessa nova tendência está também ligada ao livro A bola não entra por acaso, do CEO do Manchester City, Ferran Soriano, que se destacou como vice-presidente de operações no Barcelona e trocou o time espanhol pelo inglês há uma década. Para ele, várias outras indústrias já atuam dentro da lógica da multipropriedade de ativos e somente agora o futebol assumiu esse papel.
Foi Soriano quem orquestrou a criação do City Football Group (Grupo City). Em 2005, ainda no Barcelona, ele liderou conversas para gerir um time na liga americana que pudesse abrigar talentos emergentes do mercado sul-americano e também explorar de forma consistente a marca Barça para o público dos Estados Unidos.
O emergente mercado da MLS precisava ser melhor explorado, indo muito além da realização esporádica de amistosos e escolinhas em solo americano. A ideia não saiu do papel por divergências internas, mas foi colocada em prática quando Soriano trocou o time espanhol pela equipe inglesa.
O Soriano entendeu as dores do Barcelona no novo mundo. A capacidade de revelar e contratar talentos cada vez mais vai se perdendo. Isso fica cada vez mais caro porque a concorrência aumenta e, em paralelo, começou a ser inundada pelos petrodólares
, avalia Pisani.
O City Football Group (ou Grupo City) é o maior expoente desse modelo. O grupo tem em sua rede global de clubes Manchester City (Inglaterra), New York City (EUA), Melbourne City (Austrália), Girona (Espanha), Palermo (Itália), Yokohama Marinos (Japão), Sichuan Jiuniu (China), Lommel (Bélgica), Troyes (França), Montevideo Torque (Uruguai) e Mumbai City (Índia). O grupo conquistou títulos este ano na liga inglesa, americana, australiana e indiana.
Chegada ao futebol brasileiro
O Grupo City também tem um pré-acordo para comprar o Bahia. Os dois formalizaram um acordo para a aquisição de 90% da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) da equipe.
“No Bahia – e essa é uma opinião controversa que tenho – tem vários interesses ali, mas há também uma questão política, que não está sozinha. O ‘Bahia City’ tem um componente político, eu acredito. Recentemente, a Mubadala Capital, estatal dos Emirados Árabes, comprou refinarias na Bahia. Não consigo desassociar uma coisa da outra, de que também há um olhar geopolítico e estratégico”, opina Pisani. O principal investidor do Grupo City é o Abu Dhabi United Group, que pertence ao governo dos Emirados Árabes.
O futebol brasileiro aos poucos vai recebendo a atenção de grandes conglomerados internacionais, após a criação da Lei da SAF. Além do Bragantino que fechou parceria com a Red Bull nos últimos anos, outros times integram essa tendência.
O Vasco virou SAF e foi comprado neste ano pela empresa americana 777 Partners, que recentemente adquiriu clubes na Itália (Genoa), Bélgica (Standard Liege), Red Star (França) e Austrália (Melbourne Victory), além de ter uma participação minoritária do Sevilla, da Espanha.
O diretor da 777 Partners, uma empresa de investimento privado, Juan Arciniegas, explicou os pilares de trabalho do grupo americano, que é um novato no mundo do futebol. “Nós queremos ter clubes que compartilham características semelhantes, como estar situados em grandes cidades, com grandes populações, com muitos torcedores e é isso que vai ser o que vai sustentar esses times para sempre, contanto que você respeite a tradição e os torcedores. (Olhamos) times de mercados que têm possibilidade de crescimento. Até agora, nós investimos em lugares que acreditamos”, disse, em entrevista ao Estadão, em março.
O Botafogo é outro exemplo. Dono do clube carioca desde o início do ano, o empresário americano John Textor, da Eagle Holdings, também comprou 66,5% das ações do Lyon, da França, em junho e já possuía parte no Crystal Palace, da Inglaterra, e no RWD Molenbeek, da Bélgica. Ele também já havia tentado adquirir ações em clubes de Portugal.
Desde o ano passado, o Flamengo sinalizou interesse em comprar o Tondela, de Portugal, mas o rebaixamento do time na liga lusa atrapalhou os planos. O objetivo do clube é a internacionalização da marca, crescimento de receitas em moeda estrangeira e abrir uma porta de entrada para o futebol europeu.
Era Parmalat
Compartilhando muitas semelhanças com o modelo de multipropriedade de clubes, a “era Parmalat” deixou seu nome na história do futebolnos anos 1990. No Brasil, acertou acordos para uma cogestão na administração do futebol de Palmeiras e Juventude. A empresa levou o time paulista a vários títulos e também ajudou a equipe gaúcha a conquistar resultados expressivos, como a Copa do Brasil de 1999.
Além da cogestão, também havia intercâmbio de jogadores, como em 1995 quando a Parmalat comprou o lateral Cafu, que estava no Zaragoza, da Espanha, e cedeu ao Juventude por alguns jogos para, em seguida, ele se transferir para o Palmeiras. Isso se deu para driblar uma cláusula imposta quando o São Paulo vendeu o defensor para o time espanhol um ano antes. Entre 1993 e 1998, foi disputada a Copa Parmalat entre os times que tinham acordo com a empresa.
Na Itália, a Parmalat turbinou a ascensão do Parma em solo nacional e europeu. A empresa italiana também investiu fortemente em times do Chile, Argentina, Uruguai, México, além de outros países. Em 2000, até foi criado o Parmalat FC, na Nicarágua, extinto quatro anos depois.
Novos mercados
A busca por mercados sub-explorados e com grande potencial de crescimento também ajuda a explicar as escolhas de times e ligas. Um deles é a Austrália. O City Football Group comprou o Melbourne City em 2014, enquanto a 777 Partners adquiriu o Melbourne Victory neste mês.
“O futebol está preparado para um tremendo crescimento na Austrália e, com base nisso, é estrategicamente importante que nosso grupo esteja presente”, disse o fundador da 777 Partners, Josh Wander, ao site do Melbourne Victory.
Enquanto o modelo se espalha por ligas em todo o mundo e se adequa a diferentes mercados, ainda convive com mudanças ao longo dos últimos anos. “A multipropriedade de clubes veio para ficar. Mas o futuro ainda é difícil de traçar. “Esse é um modelo que ainda está sendo escrito”, reflete Pisani.
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