A Copa do Mundo transformou uma rua sem saída, com pouco mais de 100 metros de extensão, em um dos locais mais importantes da Cidade Tiradentes, na zona leste. A rua Catar recebe visitantes que buscam o melhor ângulo para selfies, atrai investimentos da iniciativa privada e dá novas cores a uma região carente de políticas públicas de desenvolvimento. Para os moradores, é um orgulho morar no local que homenageia a sede do Mundial.
Se não dá para ir ao Oriente Médio, basta seguir pela Avenida Jacu-Pêssego e, em seguida, uma das travessas da avenida dos Têxteis. Estamos perto do Parque da Consciência Negra. Do jeito próprio da periferia, a Copa está ali. Tiras de plástico fazem um céu verde e amarelo; no chão, a bandeira do Brasil e estrelas com as datas do pentacampeonato da seleção brasileira dão as boas-vindas. A placa com o nome da rua no poste já está desgastada - uma nova foi colocada e agora são duas. Esse é o pano de fundo das fotos que os visitantes publicam nas redes sociais.
Embora fique no meio de dois conjuntos residenciais, são pequenos bares e um salão de cabeleireiros que tomam dos CEPs da rua.
Mais importante que as construções são as pessoas que moram e trabalham ali, testemunhas da evolução - lenta - dos bairros periféricos da cidade. Da janela de seu apartamento de 43 metros quadrados, localizado no 3º andar do edifício Gamboa, a aposentada Elane Cardoso acompanhava a pelada dos filhos quando eram crianças. Gols demarcados com pedaços de blocos de concreto. “Chorei muito quando vim para cá. Não tinha nada. Gostava muito de dançar, mas ia dançar onde?”, recorda-se a senhora de 72 anos, metade deles vividos ali.
Elane é simpática, despachada, boa de histórias. Ela gosta de crochê - fez as roupas de suas bonecas negras -, e está sempre nas redes sociais. É daquelas pessoas que merecem uma tarde de prosa. Sobre a rua Catar e sobre a vida. Ela é a mãezona da rua, aquela que chama a ambulância quando alguém está passando mal.
Mas não deu tempo do café com a dona Elane porque o cabeleireiro Valberto Batista Silva, de 48 anos, teve uma pausa entre um cliente e outro. O movimento cresceu com a notoriedade do local. No único salão da rua, ele faz entre 10 e 15 cortes por dia a 20 reais cada. Diante da concorrência, os clientes fixos salvam o faturamento. Um deles é o motorista de ônibus Kléber Alexandre, de 35 anos, que frequenta o local há duas décadas - sempre máquina zero nas laterais e um pouco mais alto em cima. “É bom ver a rua cheia”, diz o motorista.
É claro que a rua Catar respira futebol. E já era antes assim da Copa. Ali é a sede do time de várzea Amigos da Rua Catar, criado em 2005. É um time de veteranos, acima de 35 anos, que disputa os torneios da região. Emílio Gimenez, técnico do time e motoboy, conta com a concorrência é desigual, mas o time está bem. “A gente depende só de nós. Hoje, o que fala mais alto é o dinheiro. Os jogadores ganham para jogar. A gente joga pela amizade”, diz o morador de 41 anos.
Mas o time não é só futebol. O presidente Marcos Ricardo, o Neguinho, lista as ações sociais que o grupo organiza, como doação de cestas básicas e festas como o Dia das Crianças. Ações necessárias. De acordo com a Prefeitura, das 52 mil famílias da região, pelo menos oito mil encontram-se em situação de alta ou muito alta vulnerabilidade.
Quando os primeiros moradores chegaram ali, não existiam os prédios. Ali era apenas o Morro da Macumba. Naquela época, as ruas tinham nomes e letras. A Catar era a 9F. Hoje, o bairro abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com cerca de 40 mil unidades, a maioria construída na década de 1980. Muitas pessoas foram em busca da realização do sonho da casa própria. O local é um grande “bairro dormitório”, lugar de passagem, não de destino. Emprego? Só nas áreas centrais.
Além dos conjuntos habitacionais, existe uma cidade informal de favelas e loteamentos clandestinos. A Cidade Tiradentes é um bairro com cara de cidade, símbolo de uma cidade que cresceu de forma desordenada. E a rua Catar é um microcosmo da periferia. Os moradores cobram mais espaços de lazer.
A líder comunitária Adriana Chávez conhece de perto essa realidade. Ela é uma das lideranças da associação Persistência que luta por moradia na região. “A periferia consegue ser vista na dificuldade e também na melhoria. Temos o orgulho da rua Catar”, diz a comerciante de 38 anos.
O endereço chamou a atenção da iniciativa privada. A Pepsi reformou a quadra, instalando novas traves e pintando os muros com a identidade visual da marca. O gerente de Marketing da empresa, Diego Bastian, explica que foi um trabalho em conjunto com a comunidade com o objetivo de deixar um legado de lazer e esporte para a comunidade. Torneios com meninos e meninas da comunidade são realizados aos finais de semana. Em um deles, jogadores de hoje e de ontem lideraram times da região. Participaram do evento Cristiane Rozeira, Andressa Alves, Léo Moura e Cicinho. As finais serão em dezembro, com premiação para os destaques.
“A união com a comunidade e as crianças mostram o que o futebol tem de melhor”, disse Cicinho, ex-lateral do São Paulo. “Se vocês me perguntarem onde eu fico mais arrepiada de entrar para jogar, se é aqui ou em um campo profissional, vou te dizer que, com certeza, é aqui. Parece que estou voltando às origens, com a galera da rua vibrando, foi muito lindo. Principalmente porque a gente sabe o corre de todo mundo daqui para ser algo, se tornar algo”, afirma a jogadora Andressa Alves.
É um sentimento que espalha pela região e pretende ir além da duração do Mundial. O professor Michel Aparecido, técnico do Colorado, conta que alunos das escolinhas de futebol de outros bairros perguntam quando vão poder jogar na rua Catar.
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