SAF na Argentina: governo, clubes e AFA travam batalha que pode definir futuro do esporte no país

Maioria dos clubes rechaça a ideia, apontada por defensores como solução para o futebol argentino voltar a ser competitivo

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Foto do author Leonardo Catto
Atualização:

A Libertadores será decidida entre duas SAFs pela primeira vez na história. Atlético Mineiro, de Rubens Menin, e Botafogo, de John Textor, disputam a final em 30 de novembro. O que não é novidade é a recente hegemonia brasileira. Desde que a decisão virou jogo único, em 2019, somente times do Brasil foram campeões e em apenas duas ocasiões houve equipes de fora, River Plate (2019) e Boca Juniors (2023).

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Curioso é que, mesmo com mais um título brasileiro garantido, o País fica com dois a menos que a Argentina, que soma 25. O cenário macroeconômico dos vizinhos interfere no futebol, ao passo que o Brasil conta com recentes aportes tanto por patrocínios inflacionados quanto por compras de clubes.

Enquanto no Brasil as SAFs são regulamentadas desde 2021, a Argentina vive um controverso debate sobre as Sociedades Anônimas Desportivas (SADs). A maioria dos clubes rechaça a ideia, enquanto há ícones do futebol que a apoiam. O maior entusiasta Mauricio Macri, ex-presidente do país e do Boca Juniors e aliado do atual presidente Javier Milei, que pauta o tema desde a campanha, em 2023.

Riquelme foi eleito presidente do Boca Juniors, derrotando candidato de Milei e Macri, que são favoráveis a SADs. Foto: @todosobreroman10 via Instagram

A atual gestão da Associação do Futebol Argentino (AFA), comandada pelo reeleito Claudio ‘Chiqui’ Tapia, é contrária às SADs. A AFA, que tem Tapia como presidente desde 2017, havia adiantado o pleito que estendeu o mandato atual até 2029 e chegou a ter a eleição suspensa pela Inspeção-Geral da Justiça (IGJ).

O pedido foi feito pelo presidente do Talleres, Andrés Fassi. O mandatário é crítico de Tapia. Entre tantas divergências dos dois, está o assunto das SADs. Quando o IGJ suspendeu eleições, a AFA falou que se tratava de uma “perseguição política”. Há, ainda, questionamentos sobre a política da associação.

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Discussão é atravessada por Milei e tem apoio de Macri, mas é vista como impopular

Uma das primeiras vezes que uma proposta de SAFs foi apresentada à AFA foi em 1999, por Mauricio Macri. Na época, ele presidia o Boca Juniors. A ideia teve apenas um voto a favor, o dele próprio. Aliado de Milei, Macri conseguiu levar a pauta para o governo argentino.

Quando assumiu, o atual presidente argentino publicou um decreto que permitia a transformação de clubes de futebol argentinos em SADs. Uma medida cautelar solicitada pela AFA derrubou a autorização, sob questionamento do futuro da gestão dos clubes no país.

“Há pessoas que apoiam essa perspectiva de SADs, mas não é muito popular. Parece que é um acordo político com Macri, que desde que entrou ao mundo do futebol, no Boca, tentou converter clubes em empresas. É contraditório que ele jogue isso de querer converter algo que já é privado em outra empresa. É uma medida impopular e não cabe a ele”, avalia a antropóloga e pesquisadora de política e esporte da Universidade de Buenos Aires (UBA), Verónica Moreira.

Javier Milei pauta no governo federal a autorização de SADs, interesse do seu aliado Mauricio Macri. Foto: Handout/AFP

O decreto do governo havia sido emitido em agosto e concedia 1 ano para a AFA adaptar seus estatutos para permitir a conversão dos clubes em SAFs, alterando o atual modelo de associações civis. A pesquisadora aponta contradição, porque Milei defende a ideia de que um Estado menos intervencionista.

Consoante com este pensamento e também impactando os clubes, ele revogou, no fim de outubro, benefícios fiscais concedidos às equipes. O decreto era válido há pouco mais de um ano, assinado pelo então presidente Alberto Fernández. Antes, ele já havia sido derrubado no governo Macri.

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Riquelme, ídolo e presidente do Boca, é voz contrária a SADs

Milei, que já afirmou que deixara de torcer para o Boca para virar torcedor do River, teve papel importante na eleição do clube xeneize, em 2023. Ele apoiou Andrés Ibarra, candidato de Macri e rival de Riquelme.

O ex-camisa 10 do Boca conquistou 30.318 votos, o que representou 68% do total. A eleição foi um recado de oposição a uma possível SAD do Boca Juniors.

“O torcedor precisa saber que estamos diante das eleições mais fáceis da história. Esses senhores, quando voltarem, vão privatizar o clube, vão dá-lo aos três amigos que têm por aqui, e não se vota nunca mais. Isso não pode acontecer. Essa gente não pode pisar no nosso clube nunca mais. Não são torcedores, querem usá-lo para outra coisa” acusou Riquelme, em uma coletiva de imprensa.

A questão social dos clubes argentinos tem uma relação de pertencimento maior e mais popular do que no Brasil. “O processo político eleitoral dos clubes é muito importante. É uma noção de que os sócios são donos dos clubes. Eles votam nos candidatos. Não é um assunto transparente e perfeito, mas há a oportunidade de votar”, explica Verónica Moraes.

“Essas sedes sociais são onde se desenvolvem atividades, algo que tem a ver com socialização. Entrar no clube, tomar um café, conversar, ocupar um espaço que é próprio. Isso se mantém como tradição. Estar nos espaços que pertencem”, exemplifica.

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Verónica teme uma elitização do esporte, caso o modelo de SADs seja implementado. Ela também comenta que os clubes argentinos são mais ativos na prática de esportes amadores e para crianças, com objetivo até mesmo da formação de atletas de alto rendimentos em esportes como basquete, boxe, taekwondo e ginástica artística. Essa parte, segundo ela, poderia ser ignorada por uma SAD que buscara o lucro do futebol.

“O futebol tem algo mais popular na Argentina, é algo que permanece. Não digo seguramente sobre estádios de River e Boca. Mas, pelo avanço da lógica empresarial, o futebol se tornaria para poucas pessoas, um corte social. Há um limite de acesso e práticas de esportes. Vai ser proibitivo para mais pessoas”, avalia.

Riquelme tem mandato até o fim de 2027. Após ter sido eleito, o Boca Juniors emitiu uma nota contrária a SADs. “A vida do Boca Juniors está intrinsecamente ligada ao lugar onde nasceu, cresceu e assumiu a dimensão que hoje o tornou um movimento popular reconhecido no mundo”, dizia um trecho.

A pesquisa Radiografia do torcedor de futebol argentino feita pelo grupo Kantar e divulgada ao final de 2022 aponta que quase 30% dos argentinos é torcedor do Boca Juniors. O percentual de quem se identificava com o River Plate variava de 24% a 30%.

“Há figuras que apoiam (as SADs). Empresários de outros clubes, como Talleres e Deportivo Riestra. Não são os clubes mais emblemáticos. A dúvida é o que aconteceria se River ou Boca, ou ambos, estivessem de acordo”, fala Verónica.

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Sem o decreto de Milei, há formas de driblar a desregulamentação das SADs, como é feito na Alemanha, em que não é permitido uma empresa ser dona de mais de 50% de um clube, assumindo até 49%. Outra possibilidade é o adotado por Belgrano, Defensa y Justicia e Talleres, em que a gestão é repassada para uma empresa, que paga ao clube.

Favorável ao modelo, o ex-jogador Verón, atual presidente do Estudiantes, quase fechou um aporte de R$ 650 milhões para o clube, vindo de um empresário norte-americano. Crítico da AFA, ele questionou os valores pagos pela associação para campeões, citando o que o Flamengo faturou com a Copa do Brasil.

“E aqui (na Argentina) entre o Torneio dos Campeões do Mundo e a Copa da Argentina, não dá nem para cobrir os ônibus dos torcedores... mas o clube pertence aos sócios”, ironizou, fazendo menção indireta à discussão das SADs

Presidente do Estudiantes, Verón é voz a favor das SADs entre os clubes. Foto: Divulgação/Estudiantes de la Plata

O Flamengo acumulou R$ 93,1 milhões na campanha do título da Copa do Brasil. O clube arrecadou R$ 19,6 milhões da terceira fase até a semifinal, e foi premiado com mais R$ 73,5 milhões pelo troféu. O mata-mata nacional é considerado o torneio mais rentável do futebol nacional.

Atual campeão da Copa da Liga Argentina, o Estudiantes foi premiado pela Conmebol, juntamente com a Associação de Futebol Argentino (AFA), com US$ 500 mil (aproximadamente R$ 2,9 milhões). Segundo a imprensa do país vizinho, 70% da receita da final com o Vélez Sarsfield, no estádio Madre de las Ciudades, ficou com a entidade sul-americana.

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“A ideia de associação civil tem a ver com esse projeto coletiva que impacta a comunidade. A lógica empresarial entende que isso é de um grupo. E o lucro vá para o bolso deste grupo, empresa. A ideia de uma associação civil é ganhar dinheiro, mas que o lucro pode gerar benefícios dos sócios e sócias”, considera Verónica.

Recentemente, o presidente do Santos, Marcelo Teixeira, falou ao Estadão sobre a possibilidade de SAF. Para ele, isso deve ser decisão do quadro de associados. “Meu compromisso com o quadro associativo é gestão. Então, não é o Marcelo, nem o Conselho. É o quadro associativo, que são os verdadeiros proprietários do Santos, que vão decidir se querem ou não fazer a opção de avançar nessa etapa (sobre SAF)”, disse.