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Saiba como torcidas planejam viagens para seguir seus clubes e quais os desafios da fiscalização

Corintianos morreram em trajeto de Minas Gerais para São Paulo após acompanharem duelo pelo Brasileirão com o Cruzeiro: ônibus com 43 pessoas perdeu o freio e capotou na Fernão Dias

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Por Sergio Neto
Atualização:

O desastre que vitimou sete torcedores do Corinthians, que voltavam de Belo Horizonte de ônibus após o jogo com o Cruzeiro no último domingo, jogou luz num problema no futebol brasileiro. A precariedade das estradas, dos serviços prestados e, especialmente, da qualidade de vida dos funcionários, compromete drasticamente o que deveria ser uma viagem de diversão ao acompanhar o clube do coração em outras localidades.

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Junto do episódio trágico, muitos questionamentos surgiram para tentar explicar ou, ao menos, entender o que aconteceu naquela fatalidade. O Estadão procurou especialistas e autoridades que pudessem contribuir para um melhor esclarecimento dos fatos e sobre como funcionam essas viagens dos torcedores de futebol pelo Brasil.

As caravanas para acompanhar as equipes do futebol brasileiro são bastante comuns. E não apenas barreiras geográficas são superadas para demonstrar o apoio ao time. Muitos torcedores enfrentam distância, cansaço, condições financeiras precárias e outras questões só para estar junto do clube que amam, como aqueles corintianos mortos na rodovia Fernão Dias no último domingo.

Ônibus que transportava torcedores do Corinthians ficou destruído. Foto: Corpo de Bombeiros de MG

É o caso de Jorge Luís Sampaio Santos, presidente da torcida palmeirense Mancha Alvi Verde, que falou com o Estadão enquanto esteve em viagem para a Colômbia. O Palmeiras enfrentou o Deportivo Pereira, na quarta-feira, pelo jogo de ida das quartas de final da Copa Libertadores. A equipe brasileira venceu com facilidade por 4 a 0. “Quando existe uma caravana, vai jogar Palmeiras e Flamengo no Rio, por exemplo, a gente aluga com a mesma pessoa já há anos”, explicou. “Na verdade, no mercado no mundo das torcidas organizadas existem duas ou três pessoas que alugam esses ônibus, mas que interagem entre si. Todas as torcidas aqui de São Paulo pegam praticamente com as mesmas pessoas, os mesmos ônibus que viajam com uma, viajam com outra.”

O presidente da organizada explica que, quando acontece um jogo importante, é normal que a torcida alugue de 10 a 15 ônibus para acompanhar o time longe do Allianz Parque. Mas nem toda companhia tem essa frota à disposição. Então, os donos das empresas de ônibus contratam uns aos outros para dar conta da demanda. E, por mais que já seja difícil realizar a fiscalização dos seus próprios veículos, verificar os demais é tarefa praticamente impossível.

“Os ônibus que estão acostumados a serem alugados para torcida, normalmente o motorista, o proprietário dá uma olhada antes nas condições. Já tem uma exigência maior. Já essas excursões, essas caravanas fora das sedes, já são um pouco mais precárias”, afirmou o presidente da Mancha.

Ônibus precários

Foi o que, provavelmente, ocorreu com o acidente do ônibus com corintianos em Belo Horizonte, visto que não deve ter sido uma empresa contratada pela sede oficial da organizada, segundo Jorge. “Por exemplo, no interior, como foi o caso do ônibus da Gaviões que sofreu acidente, provavelmente este ônibus, eu não sei se foi a sede da organizada que alugou. Provavelmente, às vezes, foi o pessoal do Vale do Paraíba mesmo, que às vezes não está nem acostumado com torcida.”

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As organizadas, por optarem por empresas menores e alternativas, acabam sendo prejudicadas na qualidade do serviço prestado. Segundo Jorge, isso ocorre também, em parte, por causa do próprio comportamento de certos torcedores, que acabam por influenciar uma visão negativa da torcida. “Os ônibus têm vários problemas. Infelizmente, nem todo mundo aluga para torcida de futebol. A torcida também tem parte da culpa nisso”, diz.

Para ele, os problemas não são apenas as condições de serviços prestadas pelas empresas. O dirigente da Mancha critica a conservação das rodovias brasileiras, bem como a forma com que as organizadas são vistas perante a sociedade. “As autoridades também precisam parar de olhar as torcidas organizadas como um problema, como marginais. Eu sei que muitas coisas são culpa de parte da torcida, mas não do todo. Nem todo mundo pratica atos de violência. E a violência está na sociedade. As autoridades têm de olhar para nós como torcedores apaixonados que viajam para acompanhar seu time, apoiar seu time. Somos clientes de um negócio chamado futebol.”

PROBLEMA AINDA MAIOR

Fato é que a precariedade dos veículos, a negligência das empresas e o comportamento de certos torcedores são apenas algumas das partes de uma fórmula cujo resultado é ainda mais dramático. Dentre as questões que envolvem o extracampo, a violência acaba por ser fator que influencia diretamente na tomada de decisões quando uma viagem é feita.

O Estadão ouviu autoridades que pudessem esclarecer o porquê de motoristas de ônibus não fazerem tantas pausas, como forma de descanso a fim de evitar desastres. As respostas foram diversas. Desde o medo de saques nos comércios locais até a falta de estrutura e fiscalização por parte das entidades responsáveis pelas estradas no Brasil.

“Como é fiscalizado isso? (risos)”, disse Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, em uma de suas primeiras frases à reportagem. “É totalmente precário. Fica evidente não só neste acidente do Corinthians. Se você observar, os passageiros são obrigados, teoricamente, a fazer o uso de cinto de segurança. Não o fazem. Qualquer ônibus de torcida, eu não vou dizer que são todos, mas 99% estão sem cinto”, explicou.

Torcedores do Corinthians viajam de Minas Gerais para São Paulo após apoiarem o time no jogo com o Cruzeiro. Foto: Divulgação/ Corpo de Bombeiros de MG

Para o especialista, o que ocorre é uma somatória de fatores negativos. Desde o valor cobrado por empresas menores, a falta de estrutura de fiscalização, a negligência para com os condutores de veículos e as condições dos mesmos e ainda o comportamento de torcedores dentro e fora dos ônibus. “Os organizadores dessas viagens vão checar se a empresa está regular, se está com autorização? Se o motorista não vai ser submetido a um excesso de jornada? Se o motorista está com o exame toxicológico em dia? Qual torcida organizada que se preocupa em checar isso?”, analisou.

350 KM DIRETO

Sobre a questão das paradas obrigatórias, Rizzotto explica que existe uma lei que rege este tipo de descanso, mas que dificilmente é seguida à risca e que, recentemente, passou por alterações sem a menor validação científica.

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“A portaria da Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) mudou de 170 para 350 (o limite de quilômetros percorridos de uma só vez). Ou seja, viagens acima de 170 km, você tinha de ter uma parada. Hoje são 350″, diz. “Aí você pergunta: baseado em quê? Eles não têm nenhuma informação. Eles não têm nenhuma fundamentação técnica. E essa portaria dos 170 km foi baseada em acidentes com 32 mortos de dois ônibus de uma empresa, investigação do Ministério Público sobre a Artesp. É orientado por médicos de tráfego e especialistas em medicina do sono. A Artesp tem de explicar como funciona isso no caso de linhas intermunicipais. No caso de viagens interestaduais, a previsão da lei é de no máximo 4 horas e meia de direção contínua, o que já é um absurdo.”

A reportagem do Estadão entrou em contato com a Artesp para apurar sobre a portaria 61 de 2022, que alterou o limite de distância máxima de condução de 170 para 350 quilômetros. A entidade conta que essa portaria não se encaixa no caso envolvendo torcedores do Corinthians, pois a mesma se aplica apenas a viagens de ônibus dentro do Estados de São Paulo que seja feita por empresas que prestam o serviço intermunicipal. Empresas que são contratadas particularmente, como foi o caso, não entram nessa regra. Ou seja, a distância máxima que um motorista pode dirigir sem parar é definida entre as partes: contratante e contratado. Ônibus fretados não entram na fiscalização.

Segundo a Artesp, esta ampliação no limite permitido foi para atender a necessidade dos usuários, que em muitos casos preferem por viagem direta a fim de chegar mais cedo ao destino. Outro fator a ser observado é se os direitos trabalhistas estão sendo respeitados. Segundo a Lei 13.103, Lei do Motorista, o tempo de direção contínua não pode ultrapassar 5 horas e 30 minutos.

Outro ponto esclarecido pela entidade foi sobre a fiscalização. A Artesp não se responsabiliza pela verificação de ônibus em viagens interestaduais. Ou seja, toda a parte de liberação e fiscalização das condições de viagem envolvendo o acidente com corintianos é responsabilidade da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Aliado a isso, ocorre o segundo ponto destacado por Rizzotto: o medo da violência. O Estadão entrou em contato com um proprietário de um estabelecimento na estrada que fica entre São Paulo e Rio. Ele não quis se identificar a fim de proteger o seu comércio. “Não que a gente não permita (a entrada de torcedores). A gente não pode proibir o direito de ir e vir das pessoas. O problema é que as torcidas organizadas, quando vão ou voltam do Rio, na maioria das vezes, dão problema”, comentou o lojista.

“Na ida, nem tanto, senão eles perdem o jogo. Na volta, eles estão livres. São tipos de torcedores que se aproveitam da situação de entrar em bloco e deixam as comandas a serem pagas para trás. Isso quando eles não abusam e saqueiam mesmo. São pessoas que não teriam condições de estar viajando para um jogo de futebol. São verdadeiros vândalos. Se você oferecer resistência, é pior”, diz o proprietário do estabelecimento.

“Temos segurança 24 horas por dia e eles ficam na entrada do estabelecimento. Quando vê que é ônibus de torcida, infelizmente não deixa entrar ninguém. Quando preciso, chamamos as polícias federal e militar para auxiliar”, contou. “Não precisa ser dez ônibus não. Um ônibus só já tumultua tudo, eles fazem o que querem. Você não consegue controlar. Na verdade é até deixar roubar para não piorar. Essa palavra ‘proibir’ não é bem aceita, não é isso. A gente tenta evitar um mal maior. Já conversei com donos de estabelecimentos menores e não tem jeito, eles entram e arrebentam.”

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Rizzotto acrescenta que, uma vez que as torcidas são malvistas pelos donos de estabelecimento, isso inibe um eventual descanso para o motorista - e até mesmo para os próprios torcedores. É mais um fator que influencia para que acidentes como o que aconteceu em Belo Horizonte ocorram. “Neste caso, a polícia deveria fiscalizar”, refletiu. “Mas fica muito difícil para a polícia. Imagine: seis ônibus cheios de torcedores, que muitos deles já vão para confusão, serem parados por quatro ou cinco policiais rodoviários na pista. Desembarcam 240, 300 pessoas e você tem de dois a quatro policiais que vão fiscalizar a condição do veículo, que vão apurar irregularidades.”

NEGLIGÊNCIA

Não fosse só a possível violência sofrida pelos estabelecimentos tidos como ponto de parada nas estradas do Brasil, ainda há muitas questões de influência para que as viagens de organizadas passem a ser um perigo para a vida das pessoas. “No caso que aconteceu com o Corinthians, havia seis ônibus no comboio. Se um estava irregular, é de se supor que os demais também estivessem. E veja que o próprio condutor tinha um passado complicado. Isso é só uma ponta do iceberg”, analisou Rizzotto. O motorista, em outra situação, se recusou a fazer um teste do bafômetro e deveria ter tido a CNH suspensa, segundo Rizzotto. Mas não a teve.

Não só os passageiros têm atitudes imprudentes, mas os donos das empresas que prestam este tipo de serviço passam a ser responsáveis diretos por tragédias como a do fim de semana. “Eu lamento muito pelas mortes. Mas se você olhar as imagens que eles mesmo estão postando em redes sociais, de dentro do ônibus, eles estão sem cinto de segurança. Isso aumenta em 70% o índice de óbito.”

Corintianos foram velados em Pindamonhangaba na segunda-feira. Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Exploração de trabalho do motorista

Rizzotto analisa que, no caso do motorista do ônibus que levou os corintianos a Belo Horizonte, o descanso foi praticamente inexistente. Vem à tona então a questão da exploração de trabalho que estes empregados são submetidos. “Se você falar com alguém do Ministério Público do Trabalho, se falar com auditor fiscal do trabalho, com um advogado do trabalho… todos vão dizer que é excesso de jornada.”

“Portanto, há um monte de ingrediente para explicar o acidente, todos relacionados com a falta de segurança”, analisou. “Por isso tem motorista que está cheio de multa, porque está trabalhando neste tipo de empresa. E esta empresa já é irregular. Não é que ela não poderia fazer a viagem… ela não poderia nem circular em área urbana enquanto não regularizasse o cronotacógrafo, por exemplo!”

O cronotacógrafo é a caixa preta do setor de transporte rodoviário. É este instrumento que permite detectar a velocidade praticada ao longo de todo o trajeto, a distância percorrida e o tempo de direção contínua de um motorista. É com base nestes dados que é possível fiscalizar a jornada, se o motorista estiver andando em excesso de velocidade, entre outras coisas. “Se a empresa não cuida do cronotacógrafo, não cuida da manutenção do veículo”, diz.

Se o cronotacógrafo não estiver em pleno funcionamento, então, significa que o motorista dificilmente poderá usar o equipamento para entrar com uma ação trabalhista, caso deseje. O equipamento vencido gera informações comprometidas. A fiscalização deve ser feita a cada dois anos. “O Ipem-SP fez uma operação na garagem da empresa que locou os ônibus à torcida do Corinthians”, contou Rizzotto. “Foi ao que supostamente seria a garagem da empresa de ônibus do Corinthians e descobriu que é uma residência. Não tem garagem. Ninguém sabe onde ficam os veículos da empresa”.

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A reportagem do Estadão procurou falar com as principais torcidas organizadas dos quatro grandes clubes de São Paulo. A Gaviões da Fiel, do Corinthians, em razão do recente episódio, optou por não participar da reportagem. A Torcida Jovem, do Santos, não respondeu ao contato. A Independente, do São Paulo, chegou a estabelecer contato, mas não contribuiu até o fechamento deste texto.