THE NEW YORK TIMES - Enquanto o mundo se recuperava da crise do coronavírus no outono de 2020, o presidente do órgão dirigente do futebol mundial, Gianni Infantino, dirigia-se a Roma para uma audiência com o primeiro-ministro italiano. Usando máscaras e se cumprimentando com os cotovelos, Infantino, o presidente da Fifa, e o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, acenaram para jornalistas antes de desaparecerem junto com o presidente da federação italiana de futebol em um dos salões ornamentados do Palazzo Chigi, residência oficial do dirigente italiano.
Infantino depois explicou que eles conversaram sobre os caminhos do futebol para a recuperação das paralisações pandêmicas. Não fez menção ao outro assunto urgente que viera discutir. Longe das câmeras de televisão, Infantino surpreendeu os italianos ao se revelar um defensor do esforço da Arábia Saudita para sediar o maior campeonato do futebol, a Copa do Mundo. A Arábia Saudita já tinha garantido o apoio do Egito, disse o presidente da Fifa às autoridades italianas, e agora procurava um parceiro europeu para o que seria um torneio único realizado em três continentes em 2030. A Itália, disse ele, poderia ser esse parceiro.
Conte ouviu educadamente, mas sabia que essa parceria era politicamente impossível: a Itália tinha relações tensas com o Egito devido ao assassinato de um estudante italiano de pós-graduação no Cairo em 2016, e havia um desconforto persistente em toda a Europa sobre o papel saudita no assassinato de Jamal Khashoggi, colunista do jornal Washington Post, em 2018.
De início, a reação italiana à sugestão de Infantino foi “prudente e, poucas horas depois, negativa”, disse Pietro Benassi, que era o mais importante conselheiro diplomático do primeiro-ministro. O país disse não. Mesmo assim, a Arábia Saudita acabou recebendo seu prêmio três anos depois. Em 31 de outubro, após um processo acelerado que pegou seus próprios membros de surpresa, a Fifa confirmou que a Arábia Saudita era a única candidata à Copa do Mundo de 2034.
Horas depois, Infantino deu a entender em uma publicação nas redes sociais que seu estatuto de anfitrião era um assunto encerrado, e outros governantes do Golfo o saudaram como uma “vitória árabe” – mesmo que ainda faltasse quase um ano para a votação oficial.
Para muitos no futebol, a campanha de Infantino pela Arábia Saudita não era novidade. Nos anos que se seguiram à sua visita a Roma, ele também apresentou a ideia da Copa saudita à Grécia; defendeu os multimilionários investimentos sauditas no futebol; e ajudou a promover mudanças nas regras que praticamente garantiram que o reino ficasse com a Copa do Mundo.
Explicações
Seus esforços não eram nada clandestinos. Mas deixaram muitos no futebol preocupados com as motivações de Infantino e questionando se ele está usando sua posição para dar prioridade aos interesses da Fifa ou aos de um parceiro que tem se valido da riqueza para exercer influência. “Como podemos garantir que o crescimento do esporte e os valores do esporte estejam apontando os rumos, e não as relações pessoais?”, disse Lise Klaveness, presidente da federação norueguesa de futebol e crítica da governança da Fifa.
A Fifa, por meio de um porta-voz, respondeu a perguntas sobre as ações de Infantino em nome do presidente e disse que nada de impróprio foi feito para garantir que a Copa do Mundo fosse para um candidato preferido. “A seleção dos locais para a Copa do Mundo da Fifa ocorre por um processo aberto e transparente”, disse o porta-voz, acrescentando que Infantino não havia “desencadeado ou iniciado” conversas sobre a candidatura da Arábia Saudita com potenciais parceiros.
Ainda assim, a rapidez e o sigilo com que a Fifa geriu os direitos de organização dos torneios de 2030 e 2034 trouxeram novas críticas à forma como o futebol é administrado e à maneira como as decisões mais importantes da organização agora são tomadas por um pequeno grupo de altos executivos, liderados por Infantino, e depois aprovadas por um conselho maleável.
“O que é incrível é que esta é a nova Fifa”, disse Miguel Maduro, o primeiro chefe de governança nomeado por Infantino entre promessas de transparência e reformas éticas. “Mas basicamente voltamos ao mesmo velho jeito de conceder Copas do Mundo”.
A Arábia Saudita nunca escondeu o desejo de sediar uma Copa. Sob o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o estado saudita deu ao esporte um papel proeminente nos esforços para projetar uma nova imagem do país: vibrante, moderno, aberto. Bilhões de dólares foram gastos em lutas de boxe, corridas de Fórmula 1, no LIV Golf Tour e, mais recentemente, na tentativa de atrair algumas das estrelas do futebol mais famosas do mundo para a liga nacional.
O maior prêmio, porém, sempre foi a Copa do Mundo. E a Arábia Saudita encontrou um aliado entusiasta em Infantino. Em muitos aspectos, as ambições do reino se articulavam com as de Infantino, que tentava criar novos eventos e projetos que definissem seu legado, os quais exigiam grandes infusões de novo capital.
Em 2018, por exemplo, Infantino surpreendeu os membros do conselho de administração da Fifa ao exigir permissão para fechar um acordo para novas competições com investidores cuja identidade ele se recusara a revelar. Depois do fracasso do acordo, descobriu-se que o grupo por trás da oferta, o SoftBank, tinha a Arábia Saudita entre seus maiores apoiadores. Três anos mais tarde, Infantino enfureceu muitos no futebol ao dizer que a Fifa iria estudar uma proposta – apresentada pela federação da Arábia Saudita – para realizar a Copa a cada dois anos. O conceito impopular foi arquivado após reações furiosas.
Relações estreitas
Apesar desses fracassos, a relação entre Infantino e a Arábia Saudita ficou ainda mais estreita. Ele tem promovido os eventos do país nas redes sociais e, em 2021, estrelou um vídeo divulgado pelo Ministério do Esporte. Em agosto de 2022, ele e o príncipe herdeiro Mohammed dividiram um camarote em uma luta de boxe em Jeddah. Meses depois, o presidente da Fifa retribuiu o favor no jogo de abertura da Copa do Mundo do Catar. Ainda no mês passado, os dois foram fotografados lado a lado em mais um evento em Riad.
“O objetivo é passar uma mensagem”, disse Minky Worden, diretora de iniciativas globais da Human Rights Watch, um grupo de defesa. “É mostrar um símbolo visual de que ele está com a mão na balança”.
Ao mesmo tempo, Infantino também se envolveu na diplomacia privada que beneficiou as ambições da Arábia Saudita na Copa do Mundo.
Depois que a Itália rejeitou a parceria na candidatura à Copa do Mundo, a Arábia Saudita procurou a Grécia com a oferta, e Infantino discutiu a ideia com o primeiro-ministro grego durante uma reunião da ONU em setembro de 2021. Mas essa ideia foi retirada depois que Marrocos uniu forças com Espanha e Portugal para uma candidatura potencialmente imbatível para a Copa do Mundo de 2030.
A Arábia Saudita mudou o foco. Percebendo que a proposta Espanha-Portugal-Marrocos provavelmente teria sucesso em relação a uma improvável oferta de quatro países da América do Sul, os sauditas perceberam que poderiam se beneficiar das regras da Fifa que impediriam países da Europa e da África de se candidatarem para o torneio de 2034 quando o processo começasse.
Manobras de Infantino
Foi então que a Fifa fez mais dois movimentos curiosos. Os primeiros três jogos do Copa do Mundo de 2030, anunciou o órgão, subitamente, seriam disputados no Uruguai, na Argentina e no Paraguai, em comemoração ao centenário da Copa do Mundo. A primeira foi disputada no Uruguai, em 1930. Isso trouxe a América do Sul para a candidatura Portugal-Espanha-Marrocos – e eliminou mais um continente dos candidatos elegíveis para 2034.
Inesperadamente, com os anfitriões de 2030 já selecionados, a Fifa disse que iria antecipar o processo de candidatura para o torneio de 2034 em pelo menos três anos, limitando os países que poderiam concorrer e planejando concluí-lo em um cronograma oneroso: as nações interessadas teriam apenas 25 dias para manifestar suas intenções e mais algumas semanas para apresentar propostas oficiais, o que normalmente requer um apoio governamental significativo.
Infantino afirmou que houve “consulta generalizada” sobre a decisão. Mas Klaveness, presidente da federação norueguesa, disse que só soube da novidade quando divulgaram o comunicado oficial à imprensa. O CEO do futebol australiano disse que as mudanças os “pegaram um pouco de surpresa”. Quem não ficou nada surpresa? A Arábia Saudita. Em poucos minutos, divulgou um comunicado, atribuído ao príncipe herdeiro Mohammed, de que se candidataria para 2034. Poucas horas depois, o chefe do futebol asiático declarou que o esforço saudita teria apoio total de todos os membros.
Dias depois, Infantino não deixou dúvidas sobre o resultado que preferia. Em uma cúpula de dirigentes do futebol asiático em Tashkent, no Uzbequistão, e novamente durante uma reunião online de muitos dos mesmos líderes uma semana depois, o presidente da Fifa instou a confederação asiática – que inclui a Austrália – “a estar unida para a Copa do Mundo de 2034″. A mensagem não era explícita. Mas foi recebida.
A Indonésia, que apenas uma semana antes tinha falado em se candidatar, desistiu do plano. A Austrália, única concorrente potencial, desistiu horas antes do prazo. Seu principal dirigente, James Johnson, disse mais tarde que o país concluíra que qualquer proposta não teria a menor chance contra um rival com um apoio público tão poderoso. “Os números”, disse ele, “estão contra nós”.
Este artigo foi originalmente publicado em The New York Times./TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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