Violência precede futebol e punição não pode ser único caminho, dizem especialistas

Brasil acumula casos de agressão, emboscada e brigas em diferentes circunstâncias e enfrenta dificuldade para mudança de cultura

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Foto do author Leonardo Catto
Atualização:

O Brasil registrou, somente nos últimos dois anos, casos de violência de torcedores no entorno de estádios, dentro deles, a quilômetros de distância de onde ocorreu um jogo e até mesmo em estradas. É um problema antigo do futebol brasileiro, gerador de indignações temporárias, até se repetir e repetir. O último evento, um ataque de uma organizada do Sport a um ônibus do Fortaleza a sete quilômetros da Ilha do Retiro, onde as equipes se enfrentaram, deixou seis jogadores brutalmente feridos. Na mesma semana, dois torcedores do Internacional tiveram traumatismo craniano após cadeiras quebradas por gremistas no Beira-Rio os atingirem.

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Esses casos não são os primeiros e estão longe de ser o último de violência relacionada ao futebol brasileiro e de uma representação de um problema maior. “O Estado brasileiro ainda não implementou políticas públicas consistentes, longevas e apoiadas em pesquisas como na Espanha, Alemanha e na própria Inglaterra. Então, a violência não é reflexo da sociedade. Mas a violência está também no futebol porque está na sociedade”, analisa Heloisa Helena Baldy dos Reis, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do tema há 30 anos.

Ela reitera que a questão não se trata exatamente de violência “no futebol” (ou “do futebol”), mas de um problema que tem raízes mais profundas. “Dizemos que há um tipo específico de masculinidade que se perpetua na educação primária (nas famílias), e também nas escolas para as crianças e adolescentes do sexo masculino”, reflete a pesquisadora, que também atuou como jogadora no Guarani na década de 1980.

Gonzalo Escobar, do Fortaleza, foi um dos jogadores que sofreu com atentado contra ônibus do clube. Foto: Mateus Lotif/Fortaleza EC

A violência está no futebol porque está na sociedade

Heloisa Helena Baldy dos Reis, pesquisadora sobre violência e futebol há 30 anos

A antropóloga e professora do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jacqueline Muniz pensa no mesmo sentido que Helena. Ela menciona uma “cultura da masculinidade violenta”, que precede o futebol e, por vezes, é reativa a mudanças da sociedade. “O lugar antigo do homem provedor se perde, sobretudo no Brasil, em trabalhos precarizados. Explosões de virilidade, tirar satisfação, é um resgate. A lógica de que ‘aqui eu sou vencedor. Aqui eu vou ganhar na força’”, exemplifica.

Jacqueline também aponta um desejo de “compensar” frustrações cotidianasno futebol. “Perdedor na vida, vencedor guerreiro, aqui, no futebol. E aí não basta ganhar, tem de humilhar o rival”, diz, referindo-se às brigas cada vez mais comuns.

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Projeto de Lei quer punições severas a responsáveis em atos de violência

Um Projeto de Lei (PL) apresentado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, prevê alterações na Lei Geral do Esporte, sancionada em 2023 e em vigor. O texto quer aplicar punições mais severas a clubes, torcidas organizadas e torcedores que pratiquem atos de violência no futebol. Segundo o projeto de Flávio Bolsonaro, um clube que tem seu nome envolvido em situações como essas pode ter perda de mando de campo por até dez jogos, perda de até dez pontos, multa de até R$ 5 milhões (que seria doada a entidades que fomentam o esporte) e possível exclusão de competições por até cinco anos. Para torcedores, são consideradas diferentes penas de reclusão, a depender do grau de cada evento.

Policiamento interveio com truculência após briga entre brasileiros e argentinos em 2023. Foto: Pedro Kirilos/ Estadão

O caso mais grave apontado pelo PL seria para atos de violência que causassem morte ou aborto, cuja pena seria reclusão de seis a 15 anos. Todas as situações poderiam ser acompanhadas de proibição de frequentar eventos esportivos por, no mínimo, cinco anos. Há previsão de perdão judicial para quem colaborasse com investigações. Outra medida sugerida pelo projeto de Flávio Bolsonaro é que, se for identificada participação de torcidas organizadas em atos de violência, sejam interrompidos quaisquer repasses de clubes para elas.

O PL ainda será discutido no Senado. Se aprovado sem alterações, vai para a Câmara dos Deputados. Caso tenha alterações, é novamente debatido no Senado, antes de ser enviado para sanção ou veto presidencial de Lula. Caso a Câmara não altere, o projeto vai direto para a presidência da República.

Especialistas defendem que punição não é único o caminho para resolver

Clubes e torcidas organizadas não podem sofrer sanções penais, já que são pessoas jurídicas. No âmbito civil, pode haver previsão de indenizações. As punições como perda de mando ou jogos sem torcidas, ou ainda perda de pontos, dizem respeito à Justiça Desportiva, que atua de modo separado da Justiça comum.

Dirigentes, sejam de clubes, sejam de torcidas, podem ter responsabilidade penal, se for apurada participação (na prática, ou incentivando) em casos de violência. “O que é mais comum, é uma responsabilidade por omissão. Um clube deixar de tomar cautelas de separação (de torcedores), um cuidado que poderia ser tomado já prevendo um problema sério, poderá ser penalizado no âmbito criminal”, explica o advogado criminalista e professor de Direito Penal, Guilherme Silva Araujo.

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Como exemplo, ele cita um caso fora do esporte. No desastre de Brumadinho, em 2019, funcionários da Vale se tornaram réus por homicídio devido ao que se entendeu como ausência de cuidados e cautelas, equivalente a um crime. Dois anos depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) extinguiu o processo.

Ainda assim, na avaliação do especialista, punir criminalmente não elimina o problema da violência no futebol. As mudanças para esses casos são mais complexas, envolvem comportamentos incrustados na sociedade e necessitam de mobilização de clubes e Estados na prevenção. “O Direito penal dá uma sensação de atendimento ao problema que é uma cortina de fumaça. Penas mais duras ou mais penas, no âmbito penal, não vejo como solução. É preciso uma união entre clubes, racionalizar um pouco, porque os próprios clubes incentivam rivalidade. As pessoas não mudam comportamento por medo de prisão”, pondera Araujo.

Jogadores do Sport vestiram camisa do Fortaleza no primeiro jogo depois do atentado. Foto: Paulo Paiva/Sport Recife

Isso não significa, porém, que órgãos competentes não podem fazer nada diante da violência que avança e não tem mais medidas no futebol. A torcida organizada pode buscar ter maior controle sobre seus membros, algo que também deve ser exigido pelos clubes. “Vai para o âmbito administrativo. O Ministério Público exigir que as torcidas e os clubes estabeleçam critérios para entrar nas torcidas, avaliar antecedentes criminais... para que a própria torcida estabeleça processos internos de governança. Ainda que indireta, existe uma hierarquia entre clube e torcida organizada”, sugere Araujo, que cita o investimento dos clubes em instrumentos de biometria facial e reconhecimento nos estádios.

Na visão da sociologia do esporte apresentada por Heloisa Helena, a punição não pode deixar de existir, mas não pode incentivar mais violência. “Dependendo da punição, ela é eficaz. O problema é que o Brasil, por não querer desenvolver uma política de prevenção da violência relacionada ao futebol a longo prazo, opta somente por medidas policialescas, sem base científica. E em alguns casos piora a situação. A violência de Estado representada por trabalho inadequado de agentes de segurança só gera mais violência nesse ambiente de lazer”, defende.

Ela argumenta que países que tem o problema relativamente controlado aliam políticas públicas a medidas de entidades privadas do futebol, como sugeriu Araujo. Isso, para Heloisa, vai além do que ela chama de “resposta rápida, repressiva e que nunca trará melhorias”, a exemplo de torcida única, segundo a pesquisadora. “Se não houver a compreensão da complexidade que é educar homens em valores como força, agressividade excessiva, lealdade ao grupo independente do motivo, ódio ao diferente (que tem na origem o sentimento de superioridade), competitividade exacerbada, etc. e não se aproveitar de pesquisas, será bem difícil reduzir o problema”, opina.

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Funcionários do Fortaleza recebem atletas depois de ônibus do clube sofrer atentado no Recife. Foto: Mateus Lotif/Fortaleza EC

O que a segurança pública faz para prevenir casos de violência?

A reportagem do Estadão entrou em contato com secretarias responsáveis pela segurança em quatro Estados brasileiros: São Paulo, onde Gabriela Anelli morreu antes de Palmeiras x Flamengo em 2023; Rio de Janeiro, onde 50 torcedores foram detidos em janeiro antes de Vasco e Flamengo e outros 73, em fevereiro, antes de Flamengo x Fluminense; Rio Grande do Sul, onde aconteceu o caso de traumatismo craniano na última semana; e Pernambuco, onde o ônibus do Fortaleza foi atacado.

Em nota, a SSP-SP afirmou que, “antes de todas as partidas, são realizadas reuniões envolvendo a Polícia Militar, Polícia Civil, organizadores do evento e órgãos municipais” para alinhamento. A pasta afirmou que mantém diálogo aberto com organizadores dos eventos e que busca parcerias com clubes para tornar os estádios mais seguros. Além disso, é citada a ação “Muralha Paulista”, que utiliza a biometria do Allianz Parque para monitoramento.

No Rio, um dos primeiros Estados a criar o Batalhão Especializado em Policiamento em Estádios (BEPE), a estratégia tem sido evitar que a violência chegue a áreas dos estádios, principalmente do Maracanã, que movimenta mais pessoas. “A preocupação maior é em vias de acesso, transporte público e regiões distantes. Ampliamos o raio para onde os confrontos estão acontecendo. Passamos a fazer prisões em regiões distantes do estádio. Dias antes dos jogos, nosso planejamento começa com acompanhamento. Torcidas que são permitidas, nós acompanhamos e fazemos escoltas. É um planejamento que não é fixo. É adaptado à realidade”, explica o coronel Luiz Henrique Pires, secretário de Estado da Polícia Militar do Rio.

No Rio Grande do Sul, a Brigada Militar (equivalente à PM) afirma que tem protocolos definidos para eventos de diferentes portes e também destacou o planejamento preventivo, com levantamento prévio de cada ponto crítico no deslocamento das torcidas, delegações ou arbitragem. A nota, assinada pelo coronel Luciano Moritz, comandante do Comando de Policiamento de Porto Alegre afirma que, a cada jogo, são elaborados relatórios que auxiliam no planejamento e na “responsabilização dos indivíduos, de grupos de torcidas organizadas e até mesmo dos clubes de futebol envolvidos em situações que tenham gerado algum problema a segurança”.

A Secretaria de Defesa Social de Pernambuco afirmou, em nota, que foi a primeira vez que um caso como o ataque ao ônibus do Fortaleza aconteceu no Estado. A Delegacia de Repressão à Intolerância Esportiva registrou redução de nos registros de lesão corporal, que passou de três ocorrências em janeiro de 2023 para uma em janeiro de 2024. “Esclarecemos que a atuação da Segurança Pública do Estado é dinâmica e, diante do ocorrido, as forças de Segurança irão planejar reforço nas estratégias operacionais de cada jogo”, diz o texto.

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A pasta afirma que identificação e indiciamento de cerca de 15 indivíduos no ano de 2023. A nota ainda destaque 14 prisões em flagrante devido ao conflito entre organizadas antes de um clássico entre Sport e Santa Cruz.