Zagallo é memória de um futebol brasileiro que vencia e sabia brincar; leia análise

Único tetracampeão do mundo, ex-técnico e jogador faleceu nesta sexta-feira aos 92 anos

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Por Pedro Só
Atualização:

É uma perda mais que simbólica. Zagallo, ponta-esquerda que sempre se apresentou para o primeiro combate e para fechar o meio-campo, parte agora como último homem do futebol brasileiro. O último homem vivo entre os titulares vencedores da final de 1958, a jornada mítica em que a seleção se firmou mundialmente como potência — com Zagallo marcando o quarto gol do 5 a 2 bem ao seu estilo: pegou a bola pingada na área, evitou a dividida com o zagueiro colocando a bola entre suas pernas e arrematou com um toque rasteiro à saída do goleiro.

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Entre os gigantes da história da bola, Mário Jorge Lobo Zagallo se vai também como um derradeiro representante de certos aspectos humanos na compreensão do futebol.

Durante toda a carreira, sempre foi disciplinado, organizado, racional, sem deixar de ser extremamente supersticioso, mesmo em sua fase século 21. Dirigindo o Flamengo, foi visto à beira do campo na final do Carioca de 2001, contra o Vasco, agarrado feito uma beata à imagem de Santo Antônio na hora do histórico gol de falta de Petkovic. O 13 de sua obsessão — e inegável sorte — vem de 13 de junho, dia do santo cuja devoção Zagallo assumiu por influência de Alcina, sua companheira por 57 anos (morta em 2012).

Então coordenador técnico da seleção brasileira de futebol, Mário Jorge Lobo Zagallo, posa para fotos na sede da CBF. Foto: Tasso Marcelo/Agência Estado

Outra saborosa contradição: foi um profissional muito ético, mas apreciador, useiro e vezeiro nos expedientes da catimba (à frente de um time do Botafogo que ficou invicto 52 jogos nos anos 1970, levou a cera ao status de arte). Sabia se valer desse elemento da cultura futebolística que muitos analistas contemporâneos teimam em esnobar, esquecendo que, em 2022, a Argentina do supercraque Messi só foi campeã graças aos expedientes milongueiros do goleiro Dibu Martínez na disputa de pênaltis.

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Demasiadamente humano e complexo, como jogador, já era lobo, mas em pele de Formiguinha: este foi seu primeiro apelido profissional, pelo estilo trabalhador e humilde em campo. Ficou na história como um atacante que não hesitava em se sacrificar pelo time, exercendo um papel taticamente inovador (suas atuações em 1962 foram de manual). Como treinador, porém, em muitas ocasiões caiu, vítima da soberba, por vezes envolto em sua fé cega na força da seleção brasileira. Compreensível: o suor e a sagacidade de Zagallo foram cruciais para a transformação histórica da “amarelinha”, de diminutivo carinhoso à supremacia incontestada entre 1958 e 1974.

Único tetracampeão do mundo, ele não deixou de ser extremamente criticado em suas derrotas mais contundentes. Mas a história o elevou. O vexame do 3 a 0 na final de 1998, diante da França de Zidane, em Paris, foi posto em perspectiva pelo 7 a 1 em 2014. E todos os imbróglios vividos junto da CBD e da CBF corruptas de outras eras também parecem pecadilhos opacos diante do que se vê na CBF atual, com gestão mixuruca e resultados ineditamente mixurucas.

Zagallo nasceu em Alagoas, mas veio para o Rio com oito meses. Era um carioca autêntico, mas de um tipo peculiar, tijucano. Com notas de classe média conservadora e malandragem boleira, sua voz anasalada ficou famosa pelo tom ranzinza nas respostas aos críticos. Mas nunca deixou de render ótimos momentos e tiradas: em 1994, reclamou por sofrer assédio ao desembarcar no Galeão no raiar do dia, “na hora do mau-hálito”.

Sua famosa frase “vocês vão ter que me engolir”, que ficou famosa após a conquista da Copa América, em 1997, já havia sido dita na véspera da decisão da Copa de 1994, no jogo contra a Itália, no dia 17 de julho, nos Estados Unidos: “Sou o primeiro cara no mundo a ficar entre os quatro primeiros colocados em cinco Copas do Mundo. A chegar a quatro finais. Se ninguém faz, eu faço a minha própria propaganda. É um recorde, é inédito. Vão ter que me engolir”.

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Zagallo não precisa mais ser engolido, é uma memória a ser saboreada. Memória de um futebol e de um Brasil que vencia e que sabia zoar. Fica para sempre a imagem do Velho Lobo em 1996, aos 65 anos, fazendo aviãozinho após uma vitória de virada contra a África do Sul em um simples amistoso.

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