João Gelo quer vencer a Patagônia a pé

Guia de ecoturismo começa hoje a longa caminhada; serão 1.300 km e 45 dias percorrendo a Carretera Austral

PUBLICIDADE

Por Caio Possati

Esta segunda-feira, 3 de janeiro, é um dia especial para o paulistano João Roberto Barbosa, mais conhecido como João Gelo. Ele vai, enfim, começar a colocar em prática um projeto que vem planejando há anos: percorrer a pé a estrada da Carretera Austral, considerada um dos caminhos mais belos do mundo, localizado na região da Patagônia. Serão 1.300 km que ele pretende percorrer em 45 dias. Se conseguir, será o primeiro brasileiro a realizar tal empreitada, que João batizou de “Patagônia a pé”.

A expedição vai começar em Puerto Montt, no Chile, na região dos Lagos, e terminar em El Chaltén, na Argentina. Para efeito de comparação entre as distâncias, é como se João Gelo partisse da cidade de São Paulo e caminhasse até a gaúcha Pelotas, que fica aproximadamente a 200 quilômetros ao sul de Porto Alegre.

O brasileiro João Gelo que quer cruzar a Patagônia a pé percorrendo 1.300km pela Carretera Austral. Foto: Arquivo pessoal

PUBLICIDADE

Não se trata do pagamento de uma promessa ou a realização de um gesto de fé. O que leva João a tentar completar o percurso é o puro prazer de estar em contato com natureza e de fazer o que mais ama — além de aguçar um espírito aventureiro que forjou sua trajetória. Aos 38 anos, o paulistano, que mora em Valinhos, no interior do Estado, é guia de ecoturismo, e especializado em montanhas e longas caminhadas há mais de 20 anos.

Tempo suficiente para João Gelo saber a dificuldade do desafio que vai encarar. A Carretera Austral, embora visualmente linda e uma das regiões que mais atrai turistas no mundo, é desafiadora aos que tentam encará-la somente a pé. “O clima na Patagônia é um dos mais  hostis que existem” afirma João Gelo. “Eu posso acordar com um sol lindo, mas enfrentar uma tempestade de neve no meio da tarde. É muito difícil prever a temperatura nesta região porque o clima é muito instável”, explicou o guia.

Publicidade

A imprevisibilidade da temperatura não é a única preocupação de João. Ele conta que vai ter dificuldades na Costa Queulat, uma serra de seis quilômetros de subida e mil metros de desnível, e também quando tiver que atravessar cerca de 250 quilômetros ermos e praticamente despovoados antes de chegar ao Porto de Yungay. Serão dias "serpetenado" as montanhas da Cordilheira dos Andres e dormindo em barraca todas as noites.“Nestes momentos, eu vou precisar ser autossustentável”, admite.

E o percurso fica mais difícil à medida que João caminha mais para o sentido sul da Carretera. “A tendência é ter menos cidades, menos vilas, menos pessoas e um contato maior com uma natureza mais selvagem”, explica.

Planejamento

João vai levar um trenó construído por ele mesmo que vai ajudá-lo a acomodar tudo o que precisa para a aventura. Ele calcula que são mais de 60 kg de “bagagem” que vai empurrar todos os dias. Vara de pesca, placa solar, tábua, faca e grelha para cozinhar são alguns dos utensílios que ele considera indispensáveis para a viagem. Mas e se passar mal ou ficar doente? Ele vai acionar um dispositivo de localização, operado por satélite, que vai emitir uma ocorrência para o Corpo de Bombeiros mais próximo com a localização exata de onde João Gelo está.

Publicidade

Ele calculou cada passo que vai dar na Patagônia e se antecipou a cada possível situação que possa enfrentar. O guia alimenta a vontade de cruzar toda a Carretera desde os 17 anos, quando esteve ali pela primeira vez. E teve a convicção de que deveria fazer o desafio há seis anos, quando fez um trabalho na região com um grupo de funcionários da automobilística Mercedes.

“Eu queria fazer algo diferente, que ninguém ainda tinha feito. A Carretera é muito frequentada por ciclistas, mas há somente dois relatos, de dois chilenos, que fizeram o caminho a pé, mas pegando carona” afirmou João. Apesar de fazer a expedição sozinho, João pretende ter as pessoas por perto durante a viagem. Especializado em fotografia, cinegrafia e produção audiovisual em ambientes remotos, o guia ainda vai produzir uma série documental enquanto realiza a caminhada. “A ideia é produzir um episódio por dia e disponibilizá-lo no YouTube para as pessoas irem acompanhando diariamente”, planeja.

A longo prazo, ele almeja produzir um documentário e escrever um livro a partir da aventura no Chile. Na conversa com o Estadão, ele revelou que sonha, um dia, em ser o primeiro brasileiro a chegar à Antártida, também a pé e sem ajuda de caronas.

O que leva João a tentar completar o percurso é o puro prazer de estar em contato com natureza e de fazer o que mais ama. Foto: Arquivo pessoal

Escotismo 

Publicidade

A paixão de João por aventuras, natureza e fotografia vem do escotismo, um movimento que ele conheceu aos 9 anos. Nascido na periferia de São Paulo, ele acredita que entrar para o grupo de escoteiros o ajudou a não seguir outros caminhos na vida. "O escotismo me tirou de um cenário de violência, de crime, e me levou para um mundo que mudou a minha vida", diz. 

Foi estando perto dos escoteiros que ele conheceu um grupo de alpinistas e, aos 17 anos, teve a oportunidade de ser o brasileiro mais jovem a escalar o Aconcágua. Nessa mesma época, ele passou a ser guia de ecoturismo profissional. 

O escotismo deu também o apelido "João Gelo". A alcunha surgiu quando ele tinha 15 anos e estava em um acampamento mundial de escoteiros, também na Patagônia. 

"Um grupo de garotos me desafiou a pegar uma pedra de gelo que estava no rio. Na época, era verão e os glaciares estavam se descongelando. Eu tirei a minha roupa, entrei na água e peguei o que eles pediram. Como muitos não falavam português e não conseguiam dizer 'João', começaram a me chamar de 'Gelo'", conta o guia, que brinca: "E não é que deu certo? Tem tudo a ver com o que eu faço hoje".

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.