Vice-campeão mundial aos nove anos, campeão mundial juvenil por equipes aos 20, Grande Mestre desde 1998, detentor do maior rating já alcançado por um brasileiro. O currículo de Giovanni Vescovi no xadrez é extenso — e vitorioso. Considerado um dos enxadristas mais relevantes da história do esporte no País, Vescovi, agora aos 45 anos, dedica-se a outras atividades e não mais atua competitivamente na modalidade que pratica desde a infância.
Ainda assim, o jogador não está completamente afastado do universo dos tabuleiros. Além de às vezes participar de uma ou outra competição, Giovanni é idealizador da Associação para o Desenvolvimento do Xadrez (ADX), organização que tem a intenção de utilizar o esporte como ferramenta pedagógica. Passando por reformulações, o projeto tem planos para a educação para o próximo ano. Ao Estadão, Vescovi conta sua trajetória no xadrez e traça o futuro da entidade.
Conquistas precoces
Giovanni tinha por volta de apenas quatro anos quando começou a se interessar pelo jogo a que assistia seu pai amistosamente praticar. Foi a figura paterna a responsável por ensinar o menino a montar as peças e fazer seus primeiros movimentos. Em meio a prática de outros esportes, como natação, ginástica olímpica e futebol, o xadrez, a princípio, era mais uma atividade realizada no Clube Athletico Paulistano, na capital paulista.
Em menos de um ano, Vescovi ganhava seu primeiro campeonato brasileiro. A conquista rendeu uma vaga para o mundial. Com apenas nove anos, a criança se tornou segunda colocada no torneio em Porto Rico. “É uma super conquista para um garoto, é um negócio diferente. Eu adorei, gostava de jogar, me interessava, o ambiente me atraía. Foi por isso que eu me dediquei”. A partir daquele momento, Giovanni ganhou um objetivo: ser campeão do mundo.
O enxadrista mirim passou então a participar de mais competições. Chegou a vencer mais brasileiros, participar de outros mundiais e conquistar Pan-Americanos. A escolha pela vida de torneios exigia alguns sacrifícios.
“Nessa idade, eu levava o colégio junto, mas à tarde tinha duas horas de esporte e umas três horas de xadrez todos os dias”, diz sobre a rotina que mantinha. “Estudava muito com livros. Quando você lê, se acostuma a procurar entender aquilo que está lendo até assimilar aquele conhecimento”.
Os compromissos para os que jogam em alto nível são ainda maiores. “Quando você passa a ser profissional em tempo integral, é como uma profissão. Se você não tem um treinador do seu lado, que te orienta e guia, tem que ter uma disciplina muito grande, ter o seu regramento. O ideal é você se dedicar oito a dez horas por dia. Também é bom cuidar do seu corpo, fazer algum esporte, ter algum tipo de distração”.
Aos 16 anos, Giovanni formou-se adiantado no ensino médio. 1994, quando isso aconteceu, é considerado por ele um dos anos mais memoráveis de sua carreira. Foi nele que ganhou um Campeonato Brasileiro Absoluto e um Pan-Americano. Participou ainda do Mundial sub-16 e do Mundial Juvenil, apesar de não ter vencido em ambos, . Logo após, passou um tempo praticando na Europa. Novamente em São Paulo, em 1998, Vescovi passou a formar sua família e finalmente conquistou o título que procurava fazia tempo: o de Grande Mestre.
Depois de chegar ao seu ápice no início da década de 2000, quando conquistou o tricampeonato do Torneio de Bermudas, Giovanni passou a se distanciar do esporte e dedicar-se ao Direito — sua formação acadêmica — e ao empreendedorismo. Ele ainda fez um breve retorno aos tabuleiros em 2009, entusiasmado com os seus filhos, ainda crianças, que passaram a praticar a modalidade. Foi nessa época que conseguiu o rating mais alto na carreira.
As vitórias e derrotas de um atleta
Giovanni destaca alguns dos pontos altos de sua trajetória como enxadrista. Guarda, como momento importante, a partida em que derrotou o campeão mundial Karpov. “Talvez até a primeira partida que eu joguei com ele, que terminou em empate, tenha sido um momento importante. Foi a minha primeira como Grande Mestre, empatar com um campeão mundial foi um ponto alto”. Ele também ganhou de Kasparov, outro campeão mundial, em partidas amistosas. O Mundial por equipes de 98, no qual liderou o time brasileiro rumo ao título, foi outro marco.
Mas não só de vitórias um grande enxadrista é feito. Lidar com algumas derrotas é parte da carreira. O Mundial de 94 é uma delas.
“Nesse Mundial, eu perdi uma partida crítica. Estava liderando o torneio, perdi e acabei caindo pra terceira posição. E era uma partida que eu tinha tudo para ganhar”, relembra. “Foi doloroso, porque depois ficou na minha cabeça que deixei passar uma grande oportunidade de fazer história. Ia ser um Grande Mestre brasileiro com 16 anos”.
Ele conta sobre outro Mundial, jogado enquanto estava no auge de sua performance, em 2004. “Eu tinha iniciado um empreendimento, a editora Solis, e fiquei responsável por traduzir os livros do Kasparov”. A nova atividade o fez perder a concentração no torneio.
Em 2012, Vescovi se afastou das competições e passou a trabalhar no mercado financeiro, com fundos de investimento. Ainda assim, ele não nega a possibilidade de participar pontualmente de alguns campeonatos. “Sempre achei que, em algum momento da vida, poderia ter tempo para jogar um ou dois torneios no ano”, afirma.
No entanto, a competitividade de antes já não é mais o foco. “Acho que fiz o que tinha para fazer no xadrez. Não tenho nenhuma ambição profissional ou competitiva relevante”, conclui.
Xadrez para todos
O antigo enxadrista lista os inúmeros benefícios que acredita ter recebido da prática esportiva. “Ajudou a me conhecer, a ter um bom senso crítico das coisas. Procuro ser muito honesto com as minhas autoavaliações e ter uma mente independente, confiar no meu potencial. A busca por essa excelência no xadrez me ajudou a ter a mesma determinação na busca pela excelência em qualquer outra coisa que eu venha a fazer”, conta.
Ele também comenta sobre as habilidades cognitivas e emocionais que desenvolveu. “Bom raciocínio lógico, boa capacidade de análise de dados. Você aprende a ganhar, a perder e a respeitar muitos os outros, porque sabe que eles também estão se esforçando para fazer o melhor”. Vescovi afirma que essas aptidões o ajudam, inclusive, profissionalmente — o mercado financeiro, explica, exige muito da postura aprendida nos anos de xadrez.
Por conta dessas competências desenvolvidas, ele acredita no potencial do xadrez como ferramenta pedagógica. A Associação para o Desenvolvimento do Xadrez (ADX), fundada por ele, visa apoiar a educação por meio do incentivo da prática. Ensinando a modalidade nas escolas, a entidade pretende promover a inclusão e a expansão do número de jogadores.
O Grande Mestre informa sobre o projeto mais recente: “É chamado ‘Xadrez para Todos’. Ele atende crianças com deficiências (físicas, visuais e intelectuais) e com TEA (Transtorno do Espectro Autista) e Síndrome de Down. Iniciamos durante a pandemia e foi um grande desafio mas, assim como o mundo todo, conseguimos nos adaptar e vimos resultados muito bons com essas crianças”.
“Acreditamos que esse é um modelo que vamos conseguir ampliar. Entramos com toda a parte de metodologia, gestão e até mesmo financiamento desses projetos junto aos nossos parceiros, que podem ser prefeituras, secretarias de Educação, outras ONGs e fundações que trabalham na área da Educação”, relata.
Ele também reforça a importância da internet para os atendimentos realizados pelo projeto à distância. É essa ferramenta que possibilitará o maior alcance do programa que será feito em 2025 — o “Multiplicando Habilidades”.
“Queremos formar professores, para que eles sejam grandes multiplicadores e esses projetos possam se espalhar pelo Brasil”, esclarece. “Vamos trabalhar com os professores multiplicadores e usar o Xadrez das Habilidades. Queremos fazer inicialmente, em 2025, cinco núcleos pelo Brasil”.
O esporte atual
É com os projetos da ADX, que está prestes a se tornar Instituto Giovanni Vescovi, que o enxadrista planeja, como forma de legado, dar mais estrutura à modalidade. “É plenamente factível que em pouco tempo tenhamos vários campeões sul-americanos, pan-americanos, coisa que não vemos há algum tempo porque falta estrutura de treinamento de alto rendimento”.
Giovanni vê com bons olhos a recente popularização da modalidade. Canais de transmissão e análise de movimentações tem aproximado o público do dia a dia e das notícias mais importantes do xadrez. “Hoje tem esse espaço para criar seus seguidores e é um ecossistema que ficou bastante divertido. Acho que veio para o bem isso, contribuiu muito e só tenho a elogiar”, finaliza.
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