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O esporte está ficando mais quente, difícil e mortal

Elevação das temperaturas leva risco a atletas em eventos de todas as partes do mundo, inclusive em disputas tradicionais como o US Open, e acende alerta sobre necessidade de busca por soluções

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Por The Economist

“Um jogador vai morrer”, reclamou Daniil Medvedev no meio da partida disputada no dia mais quente do US Open, em Nova York, ano passado, enquanto a temperatura chegava a 34ºC. “Tem sido brutal... estragou tudo”. Temperaturas semelhantes - combinadas à alta umidade - chegaram a trazer condições ainda mais adversas durante a edição deste ano do Grand Slam americano, encerrada no dia 8 de setembro.

Jogadores enfrentaram dificuldades e vomitaram; nos intervalos, colocavam sacos de gelo em volta do pescoço e da cabeça, ou enfiavam mangueiras soprando ar frio em suas camisas, em esforço para se refrescar. Suando nos assentos, estava o maior público de todos os tempos: no total, cerca de 1 milhão de espectadores compareceram à competição, cumprindo uma meta que os organizadores haviam estabelecido em 2019.

Desde a virada do século 20, logo depois do início de uma das edições do US Open, a temperatura média do verão nova-iorquino subiu cerca de 2ºC. As temperaturas médias anuais globais aumentaram em cerca de metade disso. Uma tendência ainda mais gritante foi evidente nos jogos Olímpicos em Paris no início deste ano. Nos 100 anos desde que os jogos foram realizados pela última vez em 1924, a temperatura média na cidade em agosto aumentou em 2,7°C.

Frances Tiafoe durante as semifinais do US Open de 2024. Foto: Frank Franklin II/AP

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As mudanças climáticas significam que lugares antes considerados perfeitos para grandes eventos esportivos estão começando a parecer inadequados. Ao mesmo tempo, o tamanho e o valor de tais eventos cresceram, assim como a demanda para realizá-los em maior variedade de locais. A colisão de ambas as tendências tornou as competições esportivas internacionais mais difíceis e perigosas, e deixou os anfitriões cada vez mais dependentes da elaboração de soluções alternativas.

Muitos esportes são sensíveis ao ambiente em que são praticados. Alguns obviamente exigem condições específicas, como a neve para esquiar e vento para velejar - ou falta de chuva para o críquete. Mudanças nos padrões climáticos, bem como temperaturas mais altas, estão limitando onde essas partidas podem ser realizadas, pelo menos sem intervenção tecnológica.

As Olimpíadas de Inverno em Pequim em 2022 foram as primeiras realizadas em neve totalmente artificial, e não serão as últimas. Um estudo publicado em 2022 descobriu que, mesmo que o aumento nas temperaturas globais seja limitado a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais - o que agora é quase impossível - apenas 13 dos 21 lugares que sediaram as Olimpíadas de Inverno anteriormente seriam capazes de fazê-lo novamente até 2050.

Além das mudanças radicais, variações aparentemente pequenas na temperatura fazem uma grande diferença no desempenho dos atletas. O desgaste provocado pelo clima quente é bem conhecido, e é por isso que eles frequentemente tentam se aclimatar antes de competições em lugares de forte calor. Mesmo assim, porém, só uma certa adaptação é possível: temperaturas mais altas aceleram a desidratação, fazem com que a glicose seja quebrada mais rapidamente e reduzem a quantidade de oxigênio enviada aos músculos - o corpo tem que priorizar o envio de sangue à pele para se resfriar.

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O efeito cumulativo de muito calor é visto mais claramente durante eventos de resistência, e pode ser dramático. Um estudo com mais de 100 atletas competindo em corridas de longa distância no campeonato mundial de atletismo de 2019 - realizado no quente e abafado Catar - identificou que praticamente todos tiveram um desempenho 3-20% pior do que seu melhor desempenho pessoal.

As performances decaíram conforme o aumento das temperaturas do globo de bulbo úmido - uma medida de calor, umidade e radiação solar que reflete melhor os impactos no corpo humano. Isso ocorreu apesar dos organizadores tomarem algumas medidas extremas: todos os eventos de atletismo foram realizados em um vasto estádio com ar condicionado, e as corridas de rua tiveram que ser realizadas no meio da noite.

O clima mais quente também pode atuar como um empecilho de maneiras menos óbvias. O estresse por calor é conhecido por prejudicar a tomada de decisões e as habilidades motoras. Evidências sugerem que ele pode tornar os atletas de muitos esportes mais desajeitados ou até mesmo briguentos.

A maioria dos esportistas profissionais parece estar ciente de tais efeitos: três quartos dos entrevistados em uma pesquisa publicada pela World Athletics Association disseram que as mudanças climáticas tiveram um impacto negativo direto em sua saúde e desempenho. As consequências físicas de competir em clima quente podem variar de cãibras e tonturas a morte súbita. A hipertermia induzida por esforço físico ou EHC (de extertional heat stroke, na sigla em inglês) ocorre quando um corpo superaquece durante uma atividade extenuante e pode levar a convulsões e falência de órgãos. A taxa de mortalidade para pessoas hospitalizadas com EHS gira em torno de 15%; sem tratamento, pode ser de 80%. Acredita-se que a condição seja a terceira principal causa de morte súbita entre jovens atletas americanos.

Nova York passou por dias de calor durante a disputa do US Open. Foto: Eduardo Munoz Alvarez/AP

Jogando com calma

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O aquecimento global exige que os organizadores de competições agora trabalhem para manter os atletas mais seguros. O primeiro passo é entender quando as condições são simplesmente muito perigosas. Nos últimos anos, as federações internacionais começaram a introduzir políticas relacionadas ao calor extremo, que prescrevem medidas como pausas adicionais ou adiamentos quando os limites de temperatura são ultrapassados.

A maioria das políticas, no entanto, não leva em consideração o estresse físico experimentado pelos atletas que já estão se esforçando ao máximo. A Associação de Tênis dos Estados Unidos, por exemplo, suspende o jogo ou fecha o teto deslizante no US Open apenas quando a temperatura do globo de bulbo úmido atinge 32,5 °C, embora a Associação Americana de Medicina do Esporte American recomende que os eventos ao ar livre sejam limitados ou cancelados quando essa medida ultrapassar 28 °C.

Uma vez que medidas de segurança adequadas são decididas, implementá-las requer um planejamento de contingência cuidadoso, para que horários e locais possam ser reorganizados, se necessário. Para ajudar com isso, uma nova indústria surgiu para fornecer aos organizadores previsões meteorológicas personalizadas. Uma divisão privada da Météo France, a agência meteorológica nacional francesa, por exemplo, se especializou em previsões esportivas nas últimas duas décadas.

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Nas Olimpíadas deste ano em Paris, a modelagem fornecida foi tão detalhada que incluiu como a temperatura percebida no Grand Palais - um salão de exposições usado como sede para esgrima e tae kwon do - mudaria de acordo com o ângulo do sol atingindo o teto de vidro abobadado do edifício. A demanda por tais serviços aumentou, diz Alexis Decalonne, que lidera a unidade. Seus clientes incluem etapas de Fórmula 1 em toda a Europa e o torneio de tênis de Wimbledon.

Os organizadores também devem mitigar os riscos que o calor representa para os espectadores. Algumas medidas de proteção podem ser colocadas em prática com antecedência, como garantir que haja sombra e água suficientes disponíveis em todas as áreas por onde as multidões passarão. Antes das Olimpíadas de Paris, por exemplo, cerca de 300 mil árvores foram plantadas ao redor da cidade. Além disso, centenas de novos bebedouros foram instalados e as regras de segurança dos locais foram alteradas para permitir que os espectadores trouxessem garrafas de água reutilizáveis - uma mudança tão drástica que exigiu a aprovação do primeiro-ministro francês.

Em alguns casos, no entanto, melhorar a segurança entra em conflito com as necessidades comerciais, à medida que os eventos esportivos mais populares crescem em tamanho e valor. Torneios gigantescos já são eventos regulares em todos os tipos de esportes, de handebol e ginástica a automobilismo - e eles continuam ficando maiores.

Entre 1964 e 2018, o tamanho coletivo das Olimpíadas de verão ou inverno e das Copas do Mundo de futebol masculino - conforme indicado pelo número de atletas, receitas de ingressos e patrocínio, cobertura da mídia e custos de hospedagem - aumentou cerca de 60 vezes, de acordo com pesquisadores da Universidade de Lausanne.

A maioria dos grandes eventos perde dinheiro, mas os anfitriões em potencial geralmente parecem se importar mais em reforçar sua própria imagem. Um número crescente de novos países está cada vez mais interessado em sediar grandes eventos, mesmo que seus climas não sejam apropriados.

Para realizar a Copa do Mundo de futebol da Fifa no Catar em 2022, os organizadores mudaram o calendário do torneio do verão para o inverno e instalaram ar-condicionado em todos os estádios ao ar livre. A Arábia Saudita venceu sua candidatura para sediar os Jogos Asiáticos de Inverno de 2029 no meio do deserto prometendo construir 36 km de pistas de esqui artificiais em Neom, uma cidade futurística que ainda não existe. A candidatura da Índia para as Olimpíadas de Verão de 2036 parece impossível sem grandes quantidades de inovação tecnológica ou que o anfitrião tenha permissão para agendá-la mais tarde no ano.

Algumas das medidas extremas tomadas para realizar eventos em lugares quentes demais para eles exacerbam os próprios pecados ambientais da indústria esportiva, que já são substanciais. Os organizadores da Copa do Mundo de futebol de 2022 alegam que ela foi responsável pela emissão de cerca de 3,6 milhões de toneladas de dióxido de carbono, ou aproximadamente a mesma quantidade das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. As estimativas independentes de emissões da Copa do Mundo do Catar foram surpreendentemente maiores.

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Tornar os maiores eventos esportivos mais ecológicos é possível, embora complicado. Os organizadores das Olimpíadas de Paris, por exemplo, prometeram reduzir suas emissões pela metade em comparação com seus rivais mais recentes, ignorando os jogos de Tóquio, que foram realizados durante a pandemia de covid-19. Eles parecem ter conseguido, após um esforço sério.

De acordo com Georgina Grenon, diretora de sustentabilidade das Olimpíadas, os organizadores tiveram que repensar tudo, desde quais geradores de reserva as emissoras usariam até qual proporção de ingredientes alimentares deveria vir da França para reduzir a quantidade transportada por via aérea. As medidas que eles tomaram para reduzir o desperdício incluíram alugar em vez de comprar algumas das 600 mil peças de mobiliário que eram necessárias.

Tais esforços não devem ser desprezados. Mas os organizadores também tiveram que depender muito de compensações de carbono, destacando as dificuldades em limpar um modelo construído em torno de atrair números cada vez maiores de fãs e competidores de todo o mundo.

A questão, então, é se esse modelo pode permanecer viável enquanto o mercúrio continua subindo. “Esses pobres coitados… não é humano”, concluiu John McEnroe, ex-tenista que já foi número 1 do mundo e hoje comentarista, depois de assistir ao jogo das quartas de final de Medvedev contra Andrey Rublev no US Open do ano passado. Ele continuou reclamando que o calor havia transformado o torneio em “uma guerra de desgaste”. Ele poderia estar falando sobre muitas das partidas mais famosas do esporte.

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