A última edição dos Jogos Olímpicos, realizada no ano passado, em Tóquio, resultou no melhor desempenho das competidoras brasileiras na história. Ao todo, foram nove pódios, com três medalhas de ouro, quatro de prata e duas de bronze. A marca vai de encontro ao aumento do interesse feminino nas modalidades que fazem parte do programa da Olímpiada e que antes não eram tão populares assim.
Quem não se recorda de Rayssa Leal? Desconhecida do público em geral antes da edição de Tóquio, a skatista ficou no segundo lugar mais alto do pódio aos 13 anos, atraindo bastante atenção para sua modalidade. Como resultado disso, a procura por escolinhas que ensinam o esporte cresceu bastante por parte do público jovem feminino.
O Brasil Skate Camp, em São Paulo, por exemplo, viu aumentar em cerca de 50% a busca por aulas após a conquista de Rayssa Leal, saltando de uma média de 60 alunos mensais para 90. Das novas vagas preenchidas, 90% correspondem a meninas.
Já o Centro de Treinamento Vale Skatepark, em Lorena, São Paulo, e o Núcleo Escola de Skateboard, no Rio de Janeiro, têm registrado dados inéditos: pela primeira vez, a quantidade de garotas matriculadas é superior à de garotos. "Atualmente, juntando nossos núcleos do Rio e de Lorena, temos uma média de 150 alunos. Desses, cerca de 60% são meninas e mulheres. Suas maiores inspirações vem da Rayssa Leal e da Letícia Buffoni. Ficamos dois anos inativos por causa da pandemia e retornamos em dezembro do ano passado. Desde então, esse porcentual tem se mantido", revela Bruno Funil, professor de skate há mais de 20 anos e coordenador dos dois locais.
Na ginástica, o sucesso de Rebeca Andrade em Tóquio refletiu em todo o Brasil. Em Belo Horizonte, por exemplo, a escola CT Amigos do Esporte, que oferece ensino e formação profissional em ginástica artística para crianças a partir de 3 anos, teve aumento de 43% no número de alunos entre os meses de julho e setembro do ano passado. A média de novas matrículas por mês, nesse período, triplicou. A procura por parte de meninas corresponde a 98% desse aumento.
Em Guarulhos, por sua vez, as aulas da modalidade, ofertadas pela Secretaria de Esporte e Lazer, registraram um crescimento de 44% de participantes, levando em conta os últimos dez meses, sendo que o público feminino representa 90% do total.
Medalhista olímpica em 2008, quando conquistou o bronze em Pequim, na classe 470 ao lado de Fernanda Oliveira, a ex-velejadora Isabel Swan é coordenadora da área Mulher no Esporte do Comitê Olímpico do Brasil (COB). De acordo com ela, uma série de fatores faz com que as mulheres estejam ganhando cada vez mais espaço no cenário esportivo.
"Se você for analisar o histórico da mulher no esporte, é um histórico ainda muito recente. O decreto que impedia a mulher brasileira de praticar certas modalidades, como esportes de luta, esportes de contato e considerados masculinos, foi modificado praticamente na década de 1980. Então se pensarmos que há cerca de 40 anos a mulher era proibida de praticar alguns esportes, isso sem dúvida aponta para um crescimento a partir do momento em que a mulher se empodera e acredita que pode realizar qualquer tipo de atividade", afirmou Isabel.
"Inclusive elas encontram no esporte uma forma de se empoderar, de ganhar força física e buscar saúde. E quando falamos do alto rendimento, existem chances de uma carreira interessante, hoje com programas de incentivo dentro das confederações, possibilidade de recebimento de bolsas e crescimento no esporte onde há oportunidade efetiva de ganhar bons resultados, conhecer outras culturas e praticar o seu esporte. É uma realidade e promove as mulheres. Então, existe um interesse crescente, sim. Quando falamos em representatividade, cada vez mais as mulheres estão ganhando suas posições nos pódios e realmente inspirando outras mulheres a seguirem o mesmo caminho, que é o que chamamos de sororidade: quando uma puxa a outra, e uma inspira a outra", acrescentou.
A primeira edição dos Jogos Olímpicos aconteceu em 1896, em Atenas, mas não contou com a participação feminina. Quatro anos depois, em Paris, foram 22 mulheres. A história das brasileiras nas Olimpíadas começou em 1932, 12 anos após a estreia do Brasil nos Jogos. Na ocasião, a disputa foi em Los Angeles, e apenas uma mulher participou, enquanto eram 66 homens. Na edição seguinte, em Berlim, foram seis mulheres. Em 1948, em Londres, 11. O número voltou a diminuir em Helsinque (1952), com apenas cinco mulheres. Já entre 1956 e 1964, somente uma atleta marcou presença.
Foi em Moscou, em 1980, que a quantidade atingiu os dois dígitos, com 15 mulheres, mas ainda assim, muito inferior ao contingente masculino (94). Desde a edição realizada na Rússia, houve crescimento. Contudo, a primeira medalha veio apenas em Atlanta (1996), quando 66 atletas femininas participaram, representando 29% do total e conquistando quatro de 15 pódios.
A partir das Olimpíadas de Sidney, em 2000, as mulheres sempre representaram mais de 40% da delegação. Nestes Jogos, foram 94 participantes e quatro de 12 medalhas. Atenas (2004) registrou 122 mulheres (49% da delegação brasileira) e duas de 10 medalhas. Em Pequim (2008), 133 (48%) e sete de 17 pódios, Londres (2012), 123 (47%) e seis de 17 medalhas.
O maior número feminino foi em 2016, no Rio de Janeiro, com 209 competidoras, o que representou 45% do time brasileiro. Ao todo, foram cinco de 19 medalhas.Em Tóquio, os nove pódios (de um total de 21) foram conquistados por Martine Grael e Kahena Kunze (ouro na vela), Rebeca Andrade (ouro no salto e prata no individual), Ana Marcela Cunha (ouro na maratona aquática), Seleção Feminina de Vôlei (prata), Rayssa Leal (prata no skate), Bia Ferreira (prata no boxe), Mayra Aguiar (bronze no judô) e Laura Pigossi e Luísa Stefani (bronze no tênis em duplas).
"As barreiras vão sendo quebradas pelas mulheres ao longo dos anos. Acreditar que é capaz, contar com um programa efetivo, focado na mulher no esporte, se sentir valorizada e ter a confiança no técnico são fatores que com certeza fortalecem a atleta. Receber remuneração igualitária, poder praticar seu esporte de forma segura, sem descriminação, com certeza tudo isso ajuda no resultado feminino", afirmou Isabel Swan.
"Quando a gente vê cada vez mais medalhistas olímpicas, mulheres quebrando barreiras... A gente tem a Mayra Aguiar, com três medalhas olímpicas, a Rebeca Andrade levando duas medalhas em uma mesma edição, temos bicampeãs olímpicas no Brasil, tudo isso inspira, mostra que é possível chegar e influência em mais conquistas, porque quando você olha para sua parceira e ela está conquistando, você quer mais, acredita que pode, e inspira a participação de mais mulheres, além da conquista de resultados", ressaltou.
Para a próxima edição dos Jogos Olímpicos, que acontecem em 2024, na cidade de Paris, a coordenadora da área Mulher no Esporte do COB destaca a equidade de gênero entre os competidores, algo que foi estipulado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Ela, entretanto, ressalta que o número feminino também precisa crescer em outras áreas.
"O número de mulheres com certeza está crescendo e vamos vivenciar a primeira Olimpíada da equidade. Em Paris vamos ter efetivamente cerca de 50% de representatividade, o que em outros campos, como parte técnica, treinadoras e árbitras, ainda falta a participação feminina. A gente tem bastante chance em muitas modalidades, principalmente porque temos esportes novos para as mulheres, além da inclusão de esportes mistos, o que mostra um crescimento dessa tendência de trabalhar em equipe, em conjunto com os homens", afirmou.
REDES SOCIAIS IMPULSIONAM INTERESSE
Além do grande desempenho, outro fator que faz com que haja aumento do interesse feminino em modalidades olímpicas é a utilização das redes sociais de modo que desperte curiosidade e empatia do público. Prata no skate, Rayssa Leal compartilhava diariamente sua rotina dentro da Vila Olímpica. Cheia de desenvoltura, ganhou milhares de seguidores e fãs que passaram a se inspirar na jovem, assim como a ginasta Rebeca Andrade.
"O olhar do mundo mudou. Hoje, a mulher está cada vez mais assumindo o papel de protagonista e personagens como Rayssa e a Rebeca Andrade, que possuem muito carisma, histórias únicas e carreiras de sucesso, servem de inspiração para várias meninas que nunca se viram representadas no esporte. Além disso, são responsáveis por uma maior atenção do público para a prática delas, abrindo as portas para que muitas pessoas se interessassem primeiro por elas, para depois se apaixonar pelos esportes que praticam, gerando novos fãs", explica o especialista em marketing, Bernardo Pontes, sócio da Alob Sports.
Para Pontes, o avanço das redes sociais está diretamente ligado à propagação do esporte, uma vez que dá ao público a possibilidade de ter uma conexão diferente com os atletas, estreitando laços e tendo acesso a detalhes até então desconhecidos, como dia a dia nos treinamentos e até mesmo a vida pessoal.
"A Olimpíada do ano passado, com participação massiva das redes sociais, serviu para dar ainda mais voz e capilaridade para histórias dos personagens dos Jogos Olímpicos, que criaram novos ídolos, como no caso da Rayssa, da Rebeca e do Douglas do vôlei, por exemplo, e apresentou atletas consagrados para novos públicos, como no caso da Karen Jonz, sucesso nas redes sociais, por causa dos comentários na televisão.A individualidade desses competidores cativa o público de diversas maneiras, especialmente para pessoas que querem ser como eles, e, para isso, praticam as mesmas coisas, consomem os mesmos produtos, em busca do sucesso e da personalidade desses novos influenciadores", acrescentou.
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