THE NEW YORK TIMES – O presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) subiu ao púlpito na última semana no salão de reuniões das Nações Unidas e começou a pintar um quadro sombrio do mundo lá fora. A sociedade estava numa “espiral descendente”, sugeriu o presidente, Thomas Bach. Ele nunca tinha visto tanta “confrontação, divisão e polarização”. Ele lamentou o crescente “flagelo da guerra e da violência”.
Depois, enquanto diplomatas em outros locais do edifício discutiam trocas de prisioneiros na Faixa de Gaza e soldados continuavam morrendo nos campos lamacentos do leste da Ucrânia, Bach ofereceu o que considerou um bálsamo: a trégua olímpica. A resolução, revivida de dois em dois anos pelos líderes olímpicos e adotada com entusiasmo pelos países membros da ONU, apela com otimismo à cessação da violência em todo o mundo durante as semanas dos Jogos Olímpicos, cuja próxima versão será aberta em julho, na França.
“Nestes tempos difíceis”, disse Bach na terça-feira, “esta resolução é nossa oportunidade de mandar um sinal inequívoco ao mundo: Sim, podemos nos unir, mesmo em tempos de guerras e crises. Sim, podemos dar as mãos e trabalhar juntos por um futuro melhor”.
A resolução foi aprovada por esmagadora maioria. Apertos de mão. Tapinhas nas costas. Mas será que as facções beligerantes do mundo vão se sentir motivadas a depor as armas no ano que vem, numa demonstração coletiva de amizade induzida pelo esporte? Melhor não esperar muita coisa.
Enraizada nas tradições da Grécia antiga e reimaginada três décadas atrás para os Jogos modernos, a trégua olímpica se tornou parte do ritual de prelúdio aos eventos tanto quanto o acendimento da tocha e a corrida por quartos de hotel. Mas, apesar da retórica inebriante, ela é em grande medida simbólica, essencialmente não vinculativa e consistentemente ignorada.
No entanto, os idealistas encaram a resolução bienal como um gesto de esperança que promove a harmonia global por meio da linguagem universal da competição atlética. Mas, nos últimos anos, a trégua gerou igual medida de escárnio por parte daqueles que apontam a desconexão entre as suas concepções elevadas e as duras realidades da paisagem geopolítica. “São muitas palavras bonitas que não significam absolutamente nada”, disse David Wallechinsky, membro fundador da Sociedade Internacional de Historiadores Olímpicos. “Qual é o objetivo?”
O objetivo, nos tempos antigos, era simples: sob a trégua, as cidades-estados rivais interrompiam voluntariamente suas guerras para abrir aos atletas uma passagem segura para Olímpia. O Comitê Olímpico Internacional ressuscitou e modernizou o conceito antes dos Jogos de 1994 em Lillehammer, Noruega, e a ONU o adotou como resolução oficial, instando os países a observarem a trégua desde sete dias antes do início da competição até sete dias depois do encerramento. Desde então, a cada dois anos, o país anfitrião elabora uma resolução, sempre com o mesmo título anódino: “Construir um mundo pacífico e melhor por meio do esporte e do ideal olímpico”.
No entanto, os países membros do COI – um círculo que em boa medida reflete os membros da ONU – nunca pareceram muito preocupados em aderir à trégua, e a organização raramente fez alarido sobre aparentes infracções. As prolongadas intervenções dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, por exemplo, abrangeram vários Jogos sem merecer muita repreensão por parte do comitê olímpico. O mesmo aconteceu com os conflitos de longa data na África, na Ásia e no Oriente Médio.
Mais recentemente, a Rússia se tornou o principal transgressor da trégua, criando um hábito estranho de invadir países durante ou logo após os Jogos Olímpicos: em 2008 (Geórgia), 2014 (Ucrânia) e 2022 (Ucrânia, de novo).
Os Jogos de Paris no ano que vem muito provavelmente vão acontecer em um contexto de duas guerras importantes, com o conflito entre a Rússia e a Ucrânia chegando a um impasse e o conflito entre Israel e o Hamas suscitando receios de um conflito regional mais amplo.
A confusão nas tentativas de fazer cumprir os termos da trégua está patente desde o ano passado, quando as tropas russas invadiram a Ucrânia dias após a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim. Esse ato acabou por provocar a primeira resposta oficial a uma aparente violação da trégua olímpica.
No dia da invasão, os líderes olímpicos condenaram a Rússia por violar a resolução. Ao longo dos dias e semanas que se seguiram, o COI apelou a todas as organizações esportivas internacionais para barrarem atletas da Rússia e de sua aliada, Belarus; e, sob pressão de outros países, expulsarem atletas russos e belarussos dos Jogos Paralímpicos.
No mês passado, o comitê reiterou que Rússia e Belarus ainda estavam barradas por violarem a trégua. Mas também observou que a organização havia criado uma exceção permitindo que atletas desses países tentem se classificar para os Jogos Olímpicos como competidores neutros e não afiliados.
Bach, que ocupa a presidência do COI desde 2013, repetidas vezes lamentou os momentos em que a política internacional, como ele os define, atacam a trégua olímpica e os Jogos em geral. Mas esses ataques parecem estar se multiplicando.
Por exemplo, em 2022, antes dos Jogos de Inverno em Pequim, os Estados Unidos se juntaram a um punhado de países que se recusaram a copatrocinar a resolução de trégua elaborada pela China. E na terça-feira, a Rússia, expressando descontentamento com o tratamento geral dado pelas autoridades olímpicas, apelou a uma votação incomum sobre a medida, que normalmente é adotada por aclamação.
A salão às vezes ficava tenso. O representante da Rússia acusou o Comitê Olímpico de inconsistência e hipocrisia. O representante sírio se juntou a outros para destacar as dificuldades dos atletas palestinos. O representante da França repreendeu a Rússia por ter “politizado” a discussão. No final, 118 países membros, entre eles Belarus, votaram a favor da resolução. Rússia e Síria se abstiveram.
“Não há como separar esporte e política”, disse Ashleigh Huffman, ex-chefe de diplomacia esportiva do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Salientando que a trégua tradicional, em última análise, “não tinha força”, ela disse que poderia, no entanto, servir como “um importante ponto de partida para uma conversa que nos dá uma estrutura a que aspirar”.
Bach parece concordar. No seu discurso na terça-feira, ele reconheceu que a resolução de trégua era “nossa modesta contribuição para a paz”. Mas também disse que as pessoas de todo o mundo estavam “exaustas de todo o antagonismo, hostilidade, ódio e intolerância com que se deparam todos os dias, em todas as áreas da vida”. Era uma imagem pesada. Se ao menos, pareceu sugerir ele, o mundo ouvisse o COI.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU.
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