A ministra do Esporte no governo Lula, Ana Moser, afirmou, em entrevista ao UOL, que os eSports, também chamados de esportes eletrônicos, não devem ser considerados como esporte, mas sim como “indústria de entretenimento”. É a primeira vez que o novo governo se manifesta sobre o tema e deixou claro uma posição de que a pasta não deve investir no cenário nos próximos anos.
“O esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. ‘Ah, mas o pessoal treina para fazer’. Treina, assim como o artista, assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show”, afirmou a ministra. No discurso de sua posse, realizado na última semana, Ana defendeu uma separação da pasta com o esporte de rendimento, ao focar nas políticas públicas.
As ideias da ministra expostas nesta terça, quanto ao tema dos eSports, reacendem uma questão que é discutida no cenário esportivo: o que é esporte e qual os motivos dos jogos eletrônicos serem - ou não - classificados como tal. Usuários, proplayers e participantes do cenário rechaçaram a visão da ministra nas redes sociais.
“Exatamente isso que você leu. eSports são similares a um show da Ivete Sangalo porque ela também treina para o show”, escreveu Nicolle Merhy, fundadora da Black Dragons, organização brasileira de eSports, em seu Twitter. “Seria importante não desmerecer algo que não detém conhecimento.”
O que é esporte?
Não há uma definição clara e definitiva quanto ao tema. No dicionário Michaelis, como substantivo masculino, diz que a palavra é considerada “prática metódica de exercícios físicos visando o lazer e o condicionamento do corpo e da saúde; desporte, desporto. O conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, que obedecem regras específicas e que são praticados individualmente ou em equipe; desporte, desporto. Cada uma dessas atividades; desporte, desporto. Atividade de lazer ou de divertimento; hobby, passatempo.”
O dicionário Aurélio na edição de 2008 diz que “esporte” significa o “conjunto dos exercícios físicos praticados com método, individualmente ou em equipe; desporte, desporto. Qualquer deles. Entretenimento”.
Ary Rocco Jr., professor doutor no na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) esclarece questões sobre o tema, mas tende a concordar com as visões da ministra. “Uma série de fatores diferenciam o esporte de um jogo qualquer. Ele (esporte) é caracterizado por um conjunto de regras, que são aceitas universalmente, e por um sistema esportivo institucionalizado e até mundial, como o COI, federações, confederações e assim por diante”, afirma.
“No Brasil, há uma Confederação Brasileira de eSports, mas ela não faz parte do sistema olímpico. Está isolada”, ressalta o professor. Ana Moser participou, no último ano, de discussões para a aprovação do texto base da Lei Geral do Esporte (PL 1.153/2019), em especial para garantir que o conceito de esporte não se tornasse tão amplo, a ponto de poder incluir eSports.
“O esporte conta com várias dimensões: recreativa, educacional, rendimento, entre tantas outras”, explica Rocco. “Os eSports caminham para, ao meu ver, essa generalização dos conceitos dos esportes, mas ainda é um conceito muito amplo.”
Nos jogos eletrônicos, além de não haver uma regra universal, como o futebol, basquete e vôlei, encontra dificuldades na implantação de um sistema regido por organizações ao redor do mundo. Há diversas esferas no eSports: jogos de estratégia, ação, simulação etc. “Estar fora do sistema olímpico é um obstáculo para que ele seja aceito como esporte”, conta o docente.
Neste quesito, os eSports se assemelham a outras modalidades, como xadrez e damas, nas quais não há o treino físico intenso dos atletas, mas sim um foco no desenvolvimento mental. “Alguns autores classificam estes no âmbito de ‘esportes da mente’. Nestes, há um claro aprimoramento na capacidade de raciocínio e agilidade no pensamento”, explica Rocco.
O que diferencia o xadrez, por exemplo, dos games, é esta “universalidade” da modalidade, aponta o professor. Apesar de ainda não ser tido como um esporte olímpico, há órgãos internacionais e federações, nacionais e internacionais, reconhecidas. “A Confederação Brasileira de Xadrez é reconhecida pelo COB, muito embora não seja um esporte olímpico.”
Realidade dos eSports
Outro aspecto a ser considerado é que os eSports tradicionais, como Fifa, Counter Strike, League of Legends, entre outros, estão atrelados a uma empresa - EA Sports, Valve e Riot, respectivamente. “A única diferença (dos eSports) para os esportes tradicionais está na questão da propriedade intelectual, que é sim detida pelas desenvolvedoras dos jogos, algo que não ocorre no esporte tradicional, visto que as modalidades são de domínio público”, afirma Pedro Oliveira, CEO e co-fundador da OutField, empresa de investimentos em esportes e games.
“No entanto, o argumento (da Ana Moser) de que não há aleatoriedade ou de que o sistema é fechado não faz sentido, uma vez que os próprios jogos possuem combinações infinitas, fruto de variáveis programadas no jogo”, explica.
Ainda que não sejam considerados esportes de forma unânime, os atletas dos jogos eletrônicos - ou pro players - passam por rotinas de treinos tão desgastante quanto aqueles dos “esportes raízes”, termo utilizado por Ana Moser em sua entrevista para o UOL. Há a disputa de competições internacionais, que reúnem milhares de torcedores e fãs, e passam por oito ou até mais horas de treinamentos diários.
A popularidade dos eSports resulta em mudanças nas organizações socioculturais dos esportes universitários. Em junho de 2014, a Robert Morris University em Pittsburgh, Estados Unidos, se tornou a primeira a reconhecer os jogos eletrônicos como esporte e oferecer bolsas de estudos para seus atletas. No último ano, Matheus Montenegro, de 20 anos, conquistou 28 bolsas de estudo em universidades dos EUA por meio de suas habilidade no Fortnite, jogo multiplayer e febre entre os mais jovens.
Na Câmara e no Senado brasileiros há projetos de lei em tramitação quanto à regulamentação dos esportes eletrônicos no País, como o PLS 383/2017, que define “como esporte as atividades que, fazendo uso de artefatos eletrônicos, caracteriza a competição de dois ou mais participantes, no sistema de ascenso e descenso misto de competição.” Na Paraíba, a Lei 11.296/2019 foi a primeira a regulamentar o esporte eletrônico na região.
Bruno Maia, CEO da Feel The Match, executivo de inovação no esporte e ex-vice-presidente de marketing do Vasco, aponta que os eSports não precisam da legitimação dos esportes olímpicos para se estabelecerem em um cenário global. “Os atletas (de eSports) não precisam da legitimação para serem o que já são, ou seja, um fenômeno econômico e cultural da maior relevância.” O executivo considera um erro, na fala da ministra, em separar o esporte do entretenimento. “Nas visões mais modernas de criação de estratégias de crescimento, a indústria do esporte é considerada parte da indústria do entretenimento e se beneficia disso. E a fala da Ministra separa as duas coisas. Isso é um atraso”, afirma.
“A distinção revela um desconhecimento ou uma rejeição a algo importante se queremos pensar na evolução, inovação e geração de receitas que permitam o esporte cumprir o potencial que é capaz de oferecer”, acrescenta.
COB e COI
As discussões para inclusão dos eSports em Jogos Olímpicos, na organização do COB e do COI ocorrem há anos. Em 2022, James Macleod, diretor de Relações com os Comitês Olímpicos Nacionais e da Solidariedade Olímpica, afirmou à Folha que os eSports não estão descartados para entrarem no ciclo olímpico nos próximos anos. Entretanto, jogos tradicionais, como League of Legends e Counter Strike, não são possibilidades.
“O COI reconhece que a indústria de games evolui constantemente. Olhamos para estes jogos que estão ligados a esportes e onde há atividade física. No ano passado, lançamos a Série Olímpica Virtual. Vela, ciclismo... Tudo apoiado por federações internacionais. Podemos ver os números e a demografia”, afirmou. Paulo Wanderley, presidente do COB, já se mostrou contrário à ideia de incluir os games em disputas olímpicas e na entidade.
No último ano, o COI anunciou que Singapura sediará, em 2023, a Semana Olímpica de eSports, em modalidades que promovam atividades físicas, como Beisebol e Ciclismo virtuais. Em setembro de 2022, os Jogos Olímpicos Asiáticos deram um passo além, com oito modalidades de esportes eletrônicos com distribuição de medalhas, como o League of Legends e Fifa.
Investimentos do Ministério
A postura da ministra quanto à relação dos eSports e investimentos do governo delimita a visão do governo sobre o tema. Além de já ter participado durante as discussões do texto base da Lei Geral do Esporte no último ano, Ana Moser defende que a pasta deva se concentrar nas políticas públicas para o esporte no País, diferentemente do que aconteceu nos últimos anos.
Antes do Ministério do Esporte se tornar uma secretaria especial sob o jugo do Ministério da Cidadania durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), os investimentos da pasta se concentraram, em especial, no “esporte de rendimento”. Nas últimas décadas, o Brasil sediou três eventos esportivos, sendo dois a nível mundial: o Pan-Americano de 2007, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos Rio 2016.
Durante a campanha presidencial, Lula (PT) assumiu o compromisso de recriar a pasta caso eleito. Segundo Ana Moser, ela foi procurada pelo petista para fazer uma “revolução” na área, atrelando o esporte à educação, saúde e assistência social, para que mais pessoas se beneficiem da prática esportiva em todos os sentidos possíveis. O desenvolvimento do esporte amador também está em pauta.
Outra preocupação da pasta é uma questão de saúde pública. O Relatório Global de 2021, produzido por agências da ONU, apontou que mais de 2,3 bilhões de pessoas não tiveram acesso à alimentação saudável em 2020. A estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que para 2025 o número de crianças obesas no planeta chegue a 75 milhões.
“Um dos problemas decorrentes da pandemia é o sedentarismo. O benefício que estes esportes têm, defendidos pela ministra, surge no ponto de vista de políticas públicas. Eles fazem as pessoas movimentarem os seus corpos e se socializarem”, pontua o professor. “Ajuda a combater problemas de saúde relacionados à obesidade infantil.” Isto justificaria os investimentos, defendidos por Ana Moser em seus primeiros discursos à frente da pasta.
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