A temporada 2008 da Fórmula 1 ainda não ‘acabou’. Ao menos para Felipe Massa e sua grande equipe de advogados. O piloto brasileiro já iniciou oficialmente na Justiça sua busca pelo reconhecimento do título do Mundial de Pilotos daquele ano, quando foi prejudicado por uma batida intencional de Nelsinho Piquet, por ordem da Renault, no famigerado GP de Cingapura.
Mas quais serão os próximos passos do caso Massa? Há chance de vitória nos tribunais? O Estadão conversou com um dos principais advogados do piloto brasileiro, atualmente na Stock Car, para explicar o caso em detalhes e relembrar tudo o que aconteceu em 2008 e nos anos seguintes. O chamado “Cingapuragate” ganhou um novo episódio no dia 15 de agosto, quando o time de advogados de Massa fez uma comunicação extrajudicial para notificar a Formula One Management, empresa que detém os direitos da Fórmula 1, e a Federação Internacional de Automobilismo (FIA). A comunicação é exigência das leis britânicas para a abertura de uma ação judicial.
Inicialmente, muitos veículos de comunicação citaram a intenção de Massa de buscar uma indenização por danos morais em razão das perdas financeiras que ele sofreu por ter ficado sem o título mundial. O valor poderia chegar aos US$ 150 milhões, algo equivalente a R$ 741 milhões, pelo câmbio atual. A soma não é aleatória. Leva em conta o aumento de salário que os pilotos costumam receber após a conquista de um título, por exemplo. Os juros e a correção monetária também impulsionam a cifra.
Mas a indenização é considerada apenas a ponta do iceberg. Os advogados de Massa buscam o reconhecimento do título de 2008, maior objetivo do caso. Naquele ano, ele terminou o campeonato apenas um ponto atrás de Lewis Hamilton. Se o GP de Cingapura tivesse sido anulado, o que prevê as regras da FIA em caso de manipulação de resultados, o brasileiro teria conquistado o 9º título brasileiro na história da F-1 e o 16º da Ferrari.
“Nosso cliente está, compreensivelmente, extremamente decepcionado e frustrado por ter sido oficialmente privado do Campeonato de 2008 como resultado dos atos ilícitos descritos acima. Consequentemente, a menos que você forneça uma resposta satisfatória às suas possíveis reivindicações acima expostas, ele pretende iniciar uma ação legal a fim de buscar compensação pelos danos que sofreu, bem como o reconhecimento de que, se não fosse por esses atos ilícitos, ele teria sido considerado o campeão de 2008″, diz trecho da comunicação enviada à FIA e à F-1, obtida pelo Estadão.
“DREAM TEAM”
Massa contratou um time de advogados experientes, de diferentes países, para enfrentar duas entidades poderosas e de peso no mundo esportivo e do entretenimento, caso da FIA e da Liberty Media, empresa que adquiriu a F-1 em 2016. O “time dos sonhos” conta com alguns profissionais famosos e reconhecidos no mercado por terem defendido diversos clubes do Campeonato Inglês.
O principal nome é o do britânico Nick de Marco, considerado por muitos como o maior advogado da área esportiva do mundo. Ele é autor do livro “Footballl and the Law” (Futebol e a lei, em tradução livre), tido como a Bíblia do direito esportivo mundial. Outro é Michele Bernasconi, que tem no currículo diversos casos envolvendo a Uefa.
Ao todo, são seis escritórios espalhados pelo mundo, do Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e País de Gales, Suíça e França. “A ideia foi montar um ‘dream team’, um ‘crème de la crème’. Sabemos que é um caso contra dois gigantes do mundo esportivo e do entretenimento. Sabíamos desde o início que teríamos de ter o melhor time possível. E conseguimos montar esse time”, disse ao Estadão o advogado Bernardo Viana, sócio do escritório Vieira Rezende, responsável pela coordenação geral do time.
INTELIGÊNCIA COMERCIAL
A equipe não conta apenas com especialistas em direito esportivo. No total, são quase 80 profissionais que já trabalharam ou trabalham no caso, considerando todos os escritórios, de diferentes países. E, para municiar os cerca de dez advogados do caso, o time inclui “prestadores de serviço de inteligência comercial”, que são especialistas em coleta e processamento de dados. Na prática, eles levantam e consolidam informações para os advogados.
A equipe de Massa promete aprofundar a investigação sobre o caso desde o início e garante transparência aos fãs da F-1. “O que todos podem ficar tranquilos, com as ações judiciais, é que não vai sobrar nenhuma informação fora do público. Nenhuma negociação, nenhum entendimento, nenhuma conversa de bastidor, nada do que aconteceu em 2008 e 2009, envolvendo qualquer indivíduo, tudo isso vai aparecer para o público. Qualquer pessoa que escolheu fraudar os fãs e o esporte, qualquer pessoa que escolheu não cumprir com suas obrigações legais ou contratuais… tudo vai vir à tona”, prometeu Viana.
As ações a serem tomadas devem causar dor de cabeça à FIA e à FOM em diferentes níveis. Um dos escritórios contratados é o Davis Polk & Wardell LLP, especializado em mercado de capitais e com sede nos EUA, onde a Liberty Media negocia suas ações na bolsa de valores. Portanto, as ações não vão se restringir à Europa, principalmente Londres e Paris, onde ficam as sedes da F-1 e da FIA, respectivamente. Os advogados não confirmam, mas podem tornar a causa também nacional. Isso porque a FIA abriu um escritório no Rio, em agosto, em parceria com a Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA).
PRÓXIMOS PASSOS
No momento, ainda não há uma ação correndo na Justiça. Após a comunicação extrajudicial enviada à FIA e à F-1, os advogados de Massa aguardam um retorno das partes. No documento datado do dia 15 de agosto, o prazo era de 14 dias. Ou seja, venceu em 29 do mesmo mês. A FIA e a F-1 pediram um prazo maior para responderem, o que foi aceito pela equipe de Massa. Assim, o retorno deve acontecer em outubro. Um acordo não está descartado entre as partes. Historicamente, tanto a federação quanto a própria F-1 evitam batalhas desgastantes nos tribunais e optam por acordos, geralmente sigilosos.
Se a FIA e a F-1 não derem um retorno no novo prazo, ou não sugerirem um acordo, a equipe de Massa iniciará a ação na Justiça. “O esporte teve anos e anos para corrigir esse absurdo que foi feito com o Felipe, com o Brasil, com a Itália e a Ferrari. Não tem mais nenhuma paciência restando em relação a esse assunto. O nosso objetivo principal é trazer o troféu para casa”, reafirmou Viana.
A CONSPIRAÇÃO
O GP de Cingapura de 2008 é um dos mais polêmicos da história da F-1. Na ocasião, Massa e Hamilton brigavam ponto a ponto pelo título. O brasileiro entrou naquela etapa apenas um ponto atrás do inglês, na época defendendo a McLaren. E tudo se encaminhava para uma vitória na corrida e uma virada no campeonato.
No auge de sua trajetória na F-1, Massa, então na Ferrari, havia conquistado a pole position, no sábado. No domingo, liderava a prova até a 14ª de 61 voltas daquele GP. Foi quando Nelsinho Piquet bateu intencionalmente sua Renault, por ordem do polêmico Flavio Briatore, chefe da equipe, para beneficiar Fernando Alonso, seu companheiro de time. O espanhol havia feito pit stop duas voltas antes e estava com o tanque cheio - na época, havia reabastecimento dos carros durante as corridas.
A batida provocou a entrada do safety car na pista. E todos os carros correram para os boxes. Alonso, que largara em 15º, herdou e manteve a primeira posição até a bandeirada final. Se o espanhol foi o maior beneficiado pela batida, Massa foi o maior prejudicado. Ao ir para os boxes, viu a Ferrari cometer erro crasso ao liberar sua saída sem soltar a mangueira de combustível.
O brasileiro acabou sendo punido por deixar os boxes com o objeto pendurado em seu carro. A lentidão no pit stop e a punição derrubaram Massa para o pelotão intermediário. Ele terminou a prova em 13º, sem somar pontos. Hamilton, seu grande rival no campeonato, foi o terceiro. O inglês viu sua vantagem crescer de um para sete pontos na tabela.
Três etapas à frente, Massa vencia o GP do Brasil, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo. E Hamilton se encaminhava para terminar a prova em quinto lugar. Era a combinação perfeita para o brasileiro celebrar o título. Mas ele só pôde comemorar o título por alguns segundos. Foi o tempo que o inglês levou para ultrapassar o alemão Timo Glock na última curva da última volta e terminar em quarto, justamente a posição que lhe assegurou o primeiro título da carreira na F-1.
CONFISSÃO DE NELSINHO
Nove meses depois da frustração de Massa, Nelsinho Piquet entrava em contato com a FIA para admitir que bateu de propósito em Cingapura para beneficiar Alonso. O filho do tricampeão Nelson havia acabado de deixar a Renault, no meio da temporada 2009. E tinha o apoio do pai para fazer a denúncia, que veio a público em agosto daquele ano.
O Conselho Mundial de Automobilismo acolheu a denúncia, julgou o caso e distribuiu punições. Desclassificou a Renault no campeonato e suspendeu os dirigentes envolvidos na polêmica decisão: Flavio Briatore, chefe da equipe, e Pat Symonds, diretor de engenharia. Alonso e Nelsinho foram poupados.
Apenas um ano depois, tanto Briatore quanto Symonds fizeram acordos com a FIA para serem liberados para atuar na F-1. O primeiro vem sendo figura constante nos GPs da atual temporada, até mesmo tirando fotos com a cúpula atual da categoria, enquanto Symonds é o principal responsável pela área técnica da própria F-1.
RETOMADA DA POLÊMICA
O caso voltou aos jornais em março deste ano. Bernie Ecclestone, chefão da F-1 por quase 40 anos, fez importantes revelações sobre o caso em entrevista ao site F1-Insider. Questionado sobre os títulos de Hamilton, o inglês afirmara que considerava Michael Schumacher o único heptacampeão da história da F-1 porque Hamilton não seria o campeão moral de 2008.
Ecclestone disse que considerava Massa o campeão daquele ano em razão do que acontecera no conturbado GP de Cingapura. O inglês, no entanto, foi além e revelou que ficou sabendo sobre a batida intencional de Nelsinho ainda durante 2008. Essa informação é o grande fundamento das ações judiciais de Massa. O motivo é que, pelas regras da FIA, um campeonato não pode ter seus resultados alterados após finalizado. Assim, a confissão de Nelsinho, feita somente em 2009, não seria o suficiente para mudar o resultado daquela corrida.
Neste contexto, as declarações de Ecclestone promoviam uma grande reviravolta na discussão. “Max Mosley (então presidente da FIA) e eu fomos informados durante a temporada sobre o que havia acontecido na corrida de Cingapura. Nelsinho Piquet havia confessado ao pai, Nelson, sobre a ordem da equipe de acionar o safety car para ajudar Alonso a vencer. Implorei ao Nelson para manter a história em segredo”, afirmou Ecclestone, que é próximo do pai de Nelsinho - o inglês foi chefe de Piquet em sua época de piloto.
“Decidimos não fazer nada na época. Quisemos proteger a Fórmula 1 e salvá-la de um grande escândalo”, declarou Ecclestone, ao tentar justificar a decisão de não tomar nenhuma decisão sobre o caso ainda em 2008. “Tínhamos informação suficiente na época para investigar o caso. De acordo com o regulamento, teríamos que cancelar a corrida de Cingapura naquelas circunstâncias. Isso significa que aquela etapa não estaria contando para o campeonato. E aí Felipe Massa seria o campeão mundial, e não Lewis Hamilton.”
O conhecimento dos principais dirigentes da F-1 e da FIA sobre o caso ainda em 2008 também foi atestado pelo documentário “Mosley: É complicado”, lançado em 2021. O site Motorsport teve acesso a uma conversa em que Mosley admite estar ciente sobre a batida proposital, em trecho que acabou não entrando na versão final do documentário.
TÍTULO DIVIDIDO?
Em entrevista ao Estadão, em abril deste ano, Massa afirmou que poderia aceitar uma saída mais amena para o problema: a divisão do título de 2008. Na prática, ele e Hamilton seriam considerados os campeões daquela temporada. “Eu acho que, se isso acontecesse, eu não poderia deixar de dizer que foi feito justiça. O importante é que seja feita a justiça”, afirmou. A divisão de um título nunca aconteceu na história da F-1.
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