Conhecido pelas corridas e, nos últimos anos, pelos festivais de música, o Autódromo de Interlagos vem se tornando palco também de despedidas e cerimônias fúnebres. No fim de agosto, quase dois meses antes do GP de São Paulo de Fórmula 1, familiares e amigos enterraram os restos mortais de José Carlos Pace no circuito. De acordo com a Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA), o autódromo é o único entre os grandes do mundo a ter enterrado um ex-piloto da F-1.
Antes de receber os despojos mortais de Pace, o autódromo já vem recebendo cinzas de fãs do automobilismo em suas curvas e, principalmente, no lago localizado dentro do circuito. “Isso é algo corriqueiro por aqui. Praticamente a cada 15 dias vem alguém aqui para lançar as cinzas. É algo rápido, coisa de 15 minutos, com oração e algumas palavras”, explica o diretor do autódromo, Marcelo Pinto.
A situação ganhou em proporção no dia 23 de agosto deste ano. E logo com o piloto que batiza o autódromo. José Carlos Pace foi um dos pioneiros do automobilismo nacional, na década de 70. Foi o segundo brasileiro a vencer o GP nacional de F-1, atrás somente de Emerson Fittipaldi. Sua única vitória na carreira foi conquistada em 1975. Dois anos depois, ele morreu num acidente aéreo, aos 32 anos, em Mairiporã (SP).
Pace foi enterrado inicialmente no Cemitério do Araçá, na capital paulista. No início do ano, contudo, o túmulo foi vandalizado, as placas de bronze foram furtadas. “Ficamos muito chateados com a situação e o Paulo ‘Loco’ veio com essa ideia, que recebemos de braços abertos”, explica Rodrigo Pace, um dos filhos de José Carlos. Paulo Loco é Paulo Figueiredo, presidente da Comissão Nacional de Veículos Históricos da CBA.
“Aceitamos a ideia mesmo não acreditando que poderia acontecer. A família ficou lisonjeada pela ideia e pelo esforço feito para acontecer essa transferência. Deu tudo certo e hoje ele está descansando no lugar que ele mais gostava de estar”, comenta Rodrigo, em referência ao autódromo que leva o nome do seu pai.
Os restos mortais foram enterrados justamente abaixo do busto que homenageia o herói do automobilismo nacional, logo na entrada do circuito. “Enquanto suas histórias, lutas e conquistas forem lembradas, você continuará vivo no automobilismo e no coração de todos os brasileiros. Obrigado, Moco! Descanse em paz na casa que leva seu nome”, diz a nova placa que marca o lugar, em referência ao apelido do ex-piloto.
O novo enterro de Pace contou com uma cerimônia, um padre, a viúva Elda Pace, os dois filhos, os cinco netos, além de outros familiares e amigos. Quase 100 pessoas compareceram na data.
Após o enterro, Pace foi homenageado com uma última volta no traçado de Interlagos. “Eu pilotei o Karmann-ghia que era do meu pai. Ele disputou vários campeonatos com esse carro ao lado dos irmãos Emerson e Wilson Fittipaldi. Dirigi o carro com os restos mortais do meu pai numa caixa, do meu lado. Fizemos esse último passeio por Interlagos antes de depositá-lo no busto”, conta Rodrigo, de 49 anos.
Burocracia
A transferência dos restos mortais de Pace do Cemitério do Araçá para o autódromo não foi tarefa simples. Há uma série de exigências e autorizações necessárias. Rodrigo avalia que o procedimento levou seis meses para ser concluído, praticamente todo liderado pela CBA, que bancou os custos com taxas e documentos ligados à transferência. A Prefeitura de São Paulo, responsável pela gestão do autódromo, não faz cobrança tanto pelo enterro quanto pelo lançamento de cinzas no circuito.
“Foi uma burocracia tremenda, inicialmente para tirar os restos mortais do cemitério. Precisei assinar inúmeros papéis e buscamos muitas autorizações. Foi o primeiro problema superado na jornada. Depois houve certa resistência na aprovação da transferência do corpo. No começo, muitos achavam que não seria uma boa ideia relacionar o autódromo com o cemitério”, diz Rodrigo, que já foi piloto e hoje é publicitário.
Em entrevista ao Estadão justamente no fim de semana do Dia de Finados, o filho de José Carlos Pace diz que a partir de agora terá um feriado diferente, “mais agradável”, por “visitar” o pai em Interlagos. “Vou com frequência ao autódromo e sempre passo na frente do busto, faço a minha oração e ‘converso’ com ele. No Dia de Finados e no aniversário dele, agora vamos passar sempre no autódromo. Para mim, será mais agradável do que visitar o cemitério. Eu fiquei mais contente agora sabendo que posso ‘ver’ o meu pai toda vez que vou ao autódromo.”
Cinzas no asfalto
Marcelo Pinto assumiu a gestão do Autódromo de Interlagos em 2021. E logo em seu primeiro mês à frente do circuito, recebeu um pedido inusitado. Um fã de automobilismo queria jogar as cinzas do seu pai numa das curvas do traçado. “Eu fui surpreendido. Aí o pessoal que já trabalhava aqui me disse que isso era normal e acontecia sempre”, conta o responsável pelo equipamento público.
O autódromo não tem registro de quantas pessoas já foram “enterradas” no local, com suas cinzas sendo lançadas no circuito. “Já foram cerca de 50 desde que assumi a gestão, em 2021. Então já deve ter passado de centenas, no total. Eu chego a chorar quando recebo esses pedidos e, principalmente, diante das mensagens de agradecimento. Faz parte do nosso trabalho, mas é muito legal poder ajudar”, afirma o gestor do autódromo.
Geralmente as cinzas são lançadas no lago localizado perto da Reta Oposta, um dos trechos mais importantes do traçado. As curvas Laranjinha e Ferradura (que não é usada no traçado do GP de F-1) também já receberam os restos mortais de fãs do automobilismo e ex-pilotos, cujas identidades não são divulgadas.
Um dos primeiros a procurar Marcelo Pinto foi Ricardo Dutra. O contador de 51 anos queria espalhar as cinzas de Araripe Pacheco Dutra, seu tio e padrinho. Aos 63 anos, Pacheco morreu de complicações da covid-19 após contrair um problema cardiorrespiratório em suas andanças pelo Xingu, na Amazônia, quando era um dos pesquisadores que buscavam uma vacina contra a Malária.
Pacheco morreu em 2021 e, no dia 21 de julho do mesmo ano, seus familiares e amigos se reuniram para lançar suas cinzas no local. “Por causa das restrições da pandemia, fizemos algo simples. Fizemos uma oração em família e depois lançamos as cinzas. Tinha umas 10 pessoas mais ou menos”, conta Ricardo Dutra.
Parte das cinzas afundou nas águas do lago e parte foi arremessada sobre o próprio asfalto de Interlagos. “Não foi apenas a emoção de estar ali dentro do circuito e realizando um pedido dele, também foi um negócio fora do comum para a família no sentido de respeitar o desejo dele. Demos duas voltas no traçado”, afirma.
O pedido do tio para ter suas cinzas no circuito foi feito por escrito. “Nos últimos 13 anos, fomos em todos os GPs de F-1. Tínhamos uma relação muito estreita como afilhado e padrinho. Tudo o que você pode imaginar de esporte a motor nós acompanhamos em Interlagos, desde que eu me entendo por gente: Fórmula 1, Stock Car, Fórmula Truck, Porsche Cup... Sempre estávamos juntos e no autódromo”, conta o sobrinho e afilhado do cientista ao Estadão.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.