A Fórmula 1 quer voltar à África, onde não tem um GP desde 1993, com Kyalami, na África do Sul. O destino pretendido é Ruanda, o que provoca controvérsias. O motivo é que o governo ruandês é acusado de violar direitos humanos no seu território, além das acusações feitas pela Organização das Nações Unidas (ONU) sobre apoio a um grupo rebelde que atua em guerra civil na República Democrática do Congo.
A candidatura de Ruanda foi oficializada em dezembro de 2024 pelo presidente Paul Kagame durante cerimônia de premiação da Federação Internacional de Automobilismo (FIA), sediada no próprio país. Em agosto, Kagame havia tomado posse, dando sequência a um mandato que começou em 2000.
A Human Rights Watch (HRW), ONG internacional que monitora e pesquisa direitos humanos, aponta que a eleição “ocorreu em um contexto de liberdade de expressão ou espaço político aberto muito limitado”. Kagame teve 99% dos votos, conforme divulgado pela Comissão Eleitoral do país.
Outra opção para a Fórmula 1 é a África do Sul. Porém, segundo o CEO e presidente da modalidade, Stefano Domenicali, as negociações com Ruanda estão mais avançadas. Há, ainda, a possibilidade do destino ser o arquipélago de Zazibar, na Tanzânia.
“Assumimos o compromisso de tentar encontrar uma solução na África, porque falta uma etapa no calendário do Mundial naquele continente. Hoje, os contatos mais avançados são com Ruanda, mas a África do Sul voltou a fazer sentir a sua presença.”, disse Domenicali em entrevista à revista italiana Autosprint.

Atualmente, a África é o único continente fora da programação da Fórmula 1. A demanda de incluir mais países também não é novidade, o que faz com que novos contratos com alguns GPs tenham sido formulados já prevendo um rodízio. Spa-Francorchamps, da Bélgica, por exemplo, está em apenas quatro das próximas seis temporadas: 2026, 2027, 2029 e 2031.
Levar a Fórmula 1 para a África também é uma bandeira pública de pilotos. Lewis Hamilton, que demonstra engajamento com pautas sociais, endossa um possível GP em Ruanda, apesar da controvérsia em relação a direitos humanos.
“Não podemos adicionar corridas em outros locais e continuar ignorando a África, que o resto do mundo simplesmente tira. Ninguém dá nada para a África”, disse Hamilton, em 2024. O britânico classificou Ruanda como um dos seus “lugares favoritos para visitar”.
O discurso também foi endossado por Max Verstappen. O tetracampeão, na verdade, cumpriu uma punição no país, como decisão da FIA por falar um palavrão no rádio durante uma corrida. Ele concedeu uma palestra no Rwanda Automobile Club (RAC), iniciativa para jovens pilotos no automobilismo.
“Tudo está ficando mais caro, então é bom ter essa iniciativa acessível para as crianças em seu próprio país. É uma grande oportunidade e esperamos que ela incentive essas crianças a se tornarem pilotos ou engenheiro”, falou o piloto, na época.
Ainda sem a confirmação de que integrará o calendário da Fórmula 1, Ruanda já trabalha no seu possível GP. O novo circuito seria no Aeroporto de Bugesera, próximo da capital Kigali. O ex-piloto Alexander Wurz é o responsável pelo projeto, que visa aproveitar o terreno montanhoso do local.

Enquanto isso, a República Democrática do Congo é tomada pela Aliança do Rio Congo, coalização de grupos rebeldes. Um deles é o M23, cujos integrantes são da etnia tutsis e acusam o governo congolês de excluí-los da administração do país e não cumprir com uma agenda de paz.
Apesar de o governo ruandês negar, é apontado que há apoio de Ruanda ao M23. O grupo se coloca como adversário de outras forças, de etnia hutus. Um desses são as Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR), que saíram de Ruanda após o genocídio de 1994, que vitimou mais de 1 milhão de tutsis e hutus moderados.
Estados Unidos e União Europeia já impuseram sanções a Ruanda. A Bélgica, que colonizou a República Democrática do Congo, cobrou medidas do bloco europeu. Em resposta, Ruanda rompeu relações diplomáticas com os belgas.
Após a tomada de Goma, maior cidade do leste da República Democrática do Congo, ao fim de janeiro, o governo do país promoveu o retorno de seus embaixadores que estavam em Ruanda. No mês seguinte, a ministra das Relações Exteriores congolesa, Therese Kayikwamba Wagner, escreveu uma carta para a Fórmula 1.
Ela já havia feito o apelo para que Arsenal, Bayern de Munique e Paris Saint-Germain encerrassem o patrocínio do governo ruandês. Os clubes estampam a frase “visit Rwanda” (viste Ruanda) no uniforme, em ação que promove o turismo no país.
“Embora eu aplauda o desejo da Fórmula 1 de sediar um grande prêmio na África, questiono se Ruanda seria a escolha que melhor representaria nosso continente e peço que vocês encerrem as negociações e descartem Ruanda como uma possível sede”, diz o texto da ministra, em referência ao conflito.

A Fórmula 1 afirma que monitora a situação. Entretanto, tem a postura criticada por entidades que monitoram ataques aos direitos humanos. Além do patrocínio no futebol e a aproximação com o automobilismo, Ruanda sediou, neste ano, o Mundial de Ciclismo em Estrada.
“São oportunidades do presidente Paul Kagame encobrir sérios problemas de direitos humanos no país com eventos de esportes adorados. Com a Fórmula 1, Paul Kagame e líderes esperam mudar o foco global para longe do seu papel no conflito no país vizinho, mas também da repressão interna, que incluiu jornalistas que tentam noticiar esses temas”, analisa a diretora de iniciativas globais do Human Rights Watch, Minky Worden.
A diretora é advogada e atua como professora na Escola de Relações Internacionais e Públicas da Universidade de Columbia desde 2013. Para ela, Ruanda repete uma estratégia utilizada pela Arábia Saudita no plano Vision 2030, um plano nacional que inclui o uso do esporte para diversificar a economia e encobrir problemas de direitos humanos.
“Crer que sportswashing é uma forma de fazer o mundo tomar conhecimento de abusos aos direitos humanos é uma estratégia errada”, argumenta Minky, sobre a possibilidade de a Fórmula 1 chamar a atenção do mundo para Ruanda.
“Quando a Fórmula 1 chegou, muitos líderes da sociedade civil protestaram. Eles cobraram que o dinheiro era gasto em corridas e não com a população, como em educação básica. Esses protestos acabaram em prisões, até mesmo sem processo legal. Assim como vimos em outros países. No Azerbaijão, no Bahrein e na Arábia Saudita, a Fórmula 1 não levou melhoras (nos direitos humanos)”, conclui.

Na visão da professora, é obrigação das empresas responsáveis pelos grandes eventos investigar sobre transparência e direitos humanos nos países em que pretendem se instalar. Ela cita a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional para elaborar a ideia de que é necessária maior fiscalização da Fórmula 1.
“A Fifa é multibilionária, o COI pode se dizer sem fins lucrativos, mas fatura bilhões. Essas companhias têm políticas de direitos humanos e obrigações. Não se pode simplesmente ‘jogar’ um GP onde quiser. É preciso fazer investigações sobre direitos humanos. É importante que a comunidade internacional faça cobranças as quais é arriscado que qualquer pessoal de Ruanda faça”, defende.
Uma força de cobrança pode vir de fãs do esporte e dos próprios pilotos. “Penso que é uma mensagem muito importante que atletas não apenas se calem e joguem”, diz Minky. Neste caso, porém, pilotos como Hamilton e Verstappen estão ao lado da decisão da Fórmula 1, que indica Ruanda no calendário em breve.