José Carlos Pace: o que poderia ser campeão, teve morte trágica e tem ossada em Interlagos

Há 50 anos, piloto brasileiro faturou sua única vitória na Fórmula 1 no autódromo na zona sul paulistana

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Foto do author Marcos Antomil
Foto do author Felipe Rosa Mendes
Atualização:

O início da trajetória brasileira na Fórmula 1 costuma ser confundido com a carreira bem-sucedida de Emerson Fittipaldi. Mas a lenda do automobilismo nacional não esteve sozinho nos primórdios do País na categoria. No começo da década de 1970, um nome também brilhava nos circuitos internacionais: José Carlos Pace, que teve uma morte trágica em 1977 e passou a batizar o Autódromo de Interlagos, onde seus restos mortais estão enterrados desde o ano passado.

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Pace se tornou famoso pelo talento e por ter vencido apenas uma corrida na F-1, o GP do Brasil de 1975, que completa 50 anos neste domingo, 26 de janeiro. Dois anos depois, ele morreu num acidente de avião, o que abreviou sua carreira na principal categoria do automobilismo mundial. Para muitos especialistas da época, ele era considerado o futuro campeão da F-1.

“Ele era um cara que acelerava muito. Não era do tipo muito preocupado com a parte técnica, de ajustar motor. Mas era muito rápido e muito respeitado, principalmente pelo Gordon Murray, projetista da equipe Brabham. Ele sempre dizia que o Pace tinha toda a condição de ser campeão”, conta ao Estadão o jornalista Castilho de Andrade, repórter do Grupo Estado na época e que acompanhou in loco as performances do piloto paulistano.

O piloto em foto de março de 1972. Foto: Osvaldo Luiz/Estadão

Pace tinha a confiança de duas lendas da Fórmula 1. Além de receber elogios constantes de Gordon Murray, um dos maiores projetistas da história da categoria, ele era próximo de Bernie Ecclestone, seu chefe na Brabham. Ecclestone veio a se tornar o chefão da F-1 por quase 40 anos - deixou o campeonato na década passada.

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“Ele foi uma pessoa muito especial para o meu pai e para a minha família, principalmente depois que meu pai faleceu. O Bernie nos ajudou muito com suporte emocional e apoio à minha mãe. Na época, minha mãe morava na Europa e ele ajudou ela a se organizar e voltar para o Brasil”, conta Rodrigo Pace, um dos dois filhos de José Carlos, ao Estadão.

Na pista, Pace tinha um estilo agressivo. Mas era cordial e considerado “muito boa gente” por quem acompanhou de perto sua carreira. “Eu tinha uma ótima relação com ele e a mulher dele. Era fácil ter acesso a ele, bem ao contrário do que acontece hoje, quando os pilotos estão cercados de assessores. Tínhamos acesso direto a ele”, relata Castilho.

A personalidade agradável faz Pace ser lembrado até hoje por amigos, familiares e fãs de automobilismo. O filho Rodrigo lembra de como a morte do seu pai gerou forte repercussão por muitos anos, após o acidente de 1977.

“Eu nunca parei de dar entrevista sobre o meu pai. É muito gratificante que até hoje ele é reconhecido por ex-pilotos e pilotos”, diz Rodrigo. “Os primeiros 10 anos depois da morte foram bem intensos. Ele sempre foi muito lembrado. Por onde eu passava, tinha gente que perguntava. Isso acontece até hoje, na verdade. Já mudou o perfil das pessoas que perguntam, hoje são mais jovens, que são fãs de automobilismo e fãs. Eu passei praticamente a minha vida inteira (atendendo demandas sobre o meu pai). Quando eu era menor, falavam muito. Tinha muita entrevista, muitas perguntas, muitas visitas na minha casa.”

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O piloto José Carlos Pace em foto de janeiro de 1972. Foto: Acervo/Estadão

PILOTO DE AVIÃO

Antes de confirmar a expectativa de se tornar o segundo brasileiro campeão da F-1, Pace teve sua carreira interrompida por um acidente aéreo no 18 de março de 1977. Tinha 32 anos. Curiosamente, o vencedor do GP do Brasil de 1975 adorava aviões. Já era dono de um e estava prestes a tirar seu brevê, a permissão para pilotar as aeronaves.

“Meu pai era um cara bem esportista. Gostava de sair de barco, esquiava na água com os amigos. Na época em que ele faleceu de acidente aéreo, ele estava tirando o brevê. Ele já tinha um avião. Ele e um amigo gostavam muito desta ‘brincadeira’, que na época era bem perigosa. Ele gostava bastante de velocidade, com certeza”, conta Rodrigo.

LEGADO

Rodrigo, de 49 anos, não pôde ver deu pai correndo ao vivo na F-1. Porém, até hoje ouve histórias de amigos sobre feitos e causos do seu pai no automobilismo. “Meu pai foi um dos primeiros a desbravar a Europa, junto com o Emerson. Foi um dos primeiros brasileiros a ser reconhecido na Fórmula 1. Isso abriu as portas para os brasileiros tentarem fazer a mesma coisa”, relata o filho do ex-piloto.

O piloto José Carlos Pace em foto de março de 1975. Foto: Acervo/Estadão

“Os pioneiros são os que sofrem mais. Esse desbravamento dele desde a década de 60, indo morar e correr na Europa, tem um custo. Minha mãe sempre comentava que ele já dava sinais de cansaço da Fórmula 1, de ter que ficar morando fora, que tinha vontade de voltar para o Brasil, morar numa fazenda. Ele não queria ir tão longe na idade na F-1. Ele iria prosseguir até uns 35, 36 anos”.

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Para Castilho, Pace ajudou a construir o legado brasileiro na estreia dos pilotos nacionais na categoria. “O legado dele é coletivo. Ele se junta ao Emerson porque o Brasil ganhou três corridas seguidas em Interlagos: 1973 a 1975. Foi um baita começo para o Brasil na Fórmula 1. Logo nas três primeiras corridas oficiais aqui temos brasileiros vencendo. E a de 1975 é a primeira dobradinha do Brasil na F-1″, relembra.

“Isso alavanca de vez a F-1 no Brasil, para ganhar prestígio e público. O Pace completa esse legado brasileiro. Estas três vitórias foram muito marcantes para o público e patrocinadores, que puderam ver que o negócio era para valer.”

OSSADA EM INTERLAGOS

Pace se consagrou no automobilismo brasileiro no Autódromo de Interlagos, com a vitória de 1975. Dez anos depois, José Carlos Pace passou a batizar o circuito em uma homenagem póstuma. A ligação do ex-piloto paulistano com as retas e curvas do traçado foi ampliada em agosto do ano passado, quando seus restos mortais foram enterrados no próprio autódromo.

O piloto em foto de janeiro de 1976. Foto: Osvaldo Luiz e Arnaldo/Estadão

Pace foi enterrado inicialmente no Cemitério do Araçá, na capital paulista. No início de 2024, contudo, o túmulo foi vandalizado, as placas de bronze foram furtadas. Familiares e amigos, então, decidiram tentar a transferência para Interlagos. Superadas questões burocráticas, os restos mortais foram enterrados justamente abaixo do busto que homenageia o herói do automobilismo nacional, logo na entrada do circuito.

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O novo enterro de Pace contou com uma cerimônia, um padre, a viúva Elda Pace, os dois filhos, os cinco netos, além de outros familiares e amigos. Quase 100 pessoas compareceram na data. O ex-piloto também batiza uma das ruas de Osasco, cidade da Região Metropolitana de São Paulo.

A VITÓRIA EM INTERLAGOS DE JOSÉ CARLOS PACE

Em 1975, o Brasil já tinha uma figura a ser idolatrada na Fórmula 1. Emerson Fittipaldi havia faturado seus dois títulos mundiais e chegou ao GP daquele ano como favorito, ainda mais após confirmar a posição na primeira fila na largada. Mas Pace não ficava muito atrás. Uma nota publicada no dia da prova no Estadão, em 26 de janeiro daquele ano, destaca que Pace tinha condições de marcar a pole, mas faltou gasolina em seu carro.

“O Brabham de José Carlos Pace está praticamente acertado para a corrida de hoje, pois salvo alguns problemas que o piloto está tendo com a suspensão do carro, que sai de traseira nas curvas, nada mais o atrapalhou nos treinos de ontem. E ele só não conseguiu melhor tempo porque a gasolina acabou no final da ultima sessão, quando Pace pretendia aumentar o ritmo”, escreveu o Estadão.

Pace estava desconfortável no carro por causa da falta de apoio para a cabeça. Ele também teve problemas com a suspensão. “O carro estava muito melhor, mais firme nas curvas e isso aliviou bastante o problema, pois minha cabeça já não jogava tanto quanto sexta-feira”, contou Pace no sábado.

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Uma polêmica nos bastidores colocou em dúvida a realização do Grande Prêmio. A FIA reclamou da falta de estrutura no autódromo, que não garantiria segurança aos pilotos. Fittipaldi argumentou que outros locais que recebiam GPs tinham situação semelhante, mas eram tratados de outra forma.

José Carlos Pace acelera seu Brabham na reta do Autódromo de Interlagos - 26/01/1975. Foto: Arquivo/AE

“Levando-se em conta as más condições de vários autódromos onde se disputam Grades Prêmios, a atitude dos dirigentes é excessivamente rigorosa, mas nada disso aconteceria se a prefeitura tivesse cumprido à risca as determinações feitas por Emerson há mais de dois meses. Até ontem, último dia de treinos, as cercas de proteção da curva da Junção, por exemplo, estavam jogadas pelo chão, para serem colocadas”, relatou o Estadão.

Largando da sexta posição, Pace encantou os mais de 122 mil pagantes presentes no autódromo. Ele já havia recebido fartos elogios após o GP da Argentina, o primeiro do ano. Um deles veio de Bernie Ecclestone, então chefe da equipe do brasileiro, a Brabham. Pace recebera o prêmio “Rouge et Blanc” como o melhor piloto da prova, apesar de ter abandonado a corrida por falha no motor.

José Carlos Pace agita a bandeira brasileira após vencer na Fórmula 1, em São Paulo - 16/01/1975. Foto: Arquivo/Estadão

“Desde a excelente ultrapassagem sobre Carlos Reutemann na freada da Curva 3, entrando nesse difícil trecho de Interlagos com: o carro perfeitamente equilibrado, José Carlos Pace demonstrou que tinha tudo para vencei o seu primeiro Grande Prêmio. Mas, era ainda a 11ª volta, Jarier já estava 20 segundos à frente, e só uma quebra do Shadow poderia proporcionar a vitória. Essa quebra aconteceu na 32ª volta e, ao assumir a liderança, Pace teve a tranquilidade para mantê-la até o final, sem se preocupar com a aproximação de Emerson nas últimas voltas”, escreveu Reginaldo Leme no Estadão.

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Pace comemorou a vitória com os mecânicos de sua equipe no Guarujá na segunda-feira. Ele passeou pela Praia da Enseada, depois parou em um restaurante onde comeu mariscos, camarões e filé de peixe e ficou hospedado na casa do também piloto Marivaldo Fernandes.

José Carlos Pace, no carro branco, no canto superior esquerdo. À frente, Reutemann (carro branco) e Jarier - 26/01/1975. Foto: Arquivo/Estadão

Apesar da vitória brasileira, havia preocupações maiores. O Estadão publicou em sua capa: “Falhas ameaçam o GP em Interlagos”. No caderno de Esportes, a manchete destacava: “Após a vitória, Brasil luta para não ficar sem seu GP”.

“Tudo isso, assistido por um público de quase 150 mil pessoas, revela a maior vitória do automobilismo em todos os tempos e demonstra que esse é, no País, o grande esporte do futuro. Mas, enquanto Pace e Emerson faziam a festa no pódio e Wilsinho chorava pelo êxito do Copersucar-Fittipaldi, no encerramento do Grande Prêmio do Brasil, a Federação Internacional de Automobilismo criticava a organização da corrida por mau comportamento do público; que atirou latas e garrafas à pista, atrasando o início da competição, um excesso de credenciais, más condições de segurança”, afirmou a reportagem do Estadão.

O repórter Michel Laurence explicou em detalhes o ocorrido. “O público atirando latas garrafas em direção à pista, pedindo água aos bombeiros, provocando o atraso dos testes, pulando cercas e invadindo locais perigosos. Tudo isso que aconteceu pode mesmo ameaçar a realização do próximo Grande Prêmio do Brasil”.

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Vitória de José Carlos Pace em Interlagos foi ofuscada por problemas de segurança e com o público no Grande Prêmio do Brasil de 1975. Foto: Zélio/Estadão

‘A MORTE DE PACE, O QUE PODERIA SER CAMPEÃO’

José Carlos Pace, aos 32 anos, foi vítima de um acidente aéreo ocorrido no dia 18 de março de 1977, na região de Terra Preta, em Mairiporã, região metropolitana de São Paulo. Pace estava acompanhado do amigo Marivaldo Fernandes, o mesmo que havia cedido a casa no Guarujá para hospedar o piloto e os engenheiros da Brabham após vitória em Interlagos dois anos antes. Também estava no monomotor Cessna o ex-cabo da Aeronáutica Carlos Roberto de Oliveira.

Na manhã daquela sexta-feira, Pace e Marivaldo haviam levado na aeronave suas famílias para a Fazenda Estrela de propriedade de Marivaldo, em Araraquara. Por lá, os dois não ficaram muito tempo e retornaram a São Paulo. Naquele fim de semana, Pace planejara ir a um batizado em Ribeirão Preto e visitar Emerson Fittipaldi em sua fazenda, nas proximidades de Araraquara. Portanto, em breve retornaria à cidade.

A mulher de Marivaldo ficou preocupada com o atraso no retorno e a falta de comunicação com o marido. Ela, então, entrou em contato com o Aeroporto Campo de Marte, em São Paulo. A informação recebida foi de que a aeronave levantara voo há algumas horas.

O avião decolou do Campo de Marte e caiu na região de Mairiporã em uma tarde de chuva. Testemunhas ouviram o avião sobrevoar a baixa altitude e, em determinado momento, escutaram o estrondo da queda, semelhante a um trovão. Houve dificuldade na identificação de Pace. Os cadáveres estavam mutilados. Marivaldo e Carlos Roberto possuíam documentos, mas Pace viajou sem qualquer identificação. O reconhecimento só aconteceu na manhã seguinte.

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Avião onde estava o piloto José Carlos Pace, foto de 19 de março de 1977. Foto: Sergio Borges/Estadão

A investigação apontou que o destino original do voo era Araraquara, mas o mal tempo poderia ter levado ao piloto a tentar pousar em Cumbica. O desvio de rota pode tê-lo feito se perder ou tentar pousar em uma rodovia próxima.

“A amizade era uma das coisas mais importantes na vida de Pace. Tanto que durante o ano todo. sempre havia um amigo brasileiro assistindo a uma corrida sua na Europa ou Estados Unidos. E o próprio Ecclestone disse ontem que, antes de perder o melhor piloto do mundo, havia perdido um grande amigo com a morte de Pace”, escreveu Reginaldo Leme no Estadão.

Enterro do piloto José Carlos Pace em 20 de março de 1977. Foto: Rolando de Freitas/Estadão

O jornalista também elencou os elementos que fazia de Pace um piloto apontado por muitos como futuro campeão.

“Rápido, por natureza ou temperamento, mesmo enquanto ainda não reunia todas as condições para ser considerado um piloto completo, várias vezes ele foi chamado de ‘eterno campeão de uma só volta’. Isso não deixava de ser uma crítica, mas que ele justificara dizendo que por não ter um bom carro provava em uma volta o que era capaz de fazer. Ao contrário de seu jeito calmo e tranquilo fora das corridas, durante algum tempo ele demonstrou um temperamento forte quando estava na pista, fazendo tudo para estar sempre entre os primeiros. Por essa razão, chegou a ser criticado pelas quebras constantes de carros, que, entretanto, na maioria das vezes, aconteciam por culpa das más equipes que ele defendeu nos primeiros anos de F-1.″