O Estadão tem feito uma série de reportagens sobre a polêmica no xadrez envolvendo dois dos principais jogadores da atualidade, Magnus Carlsen e Hans Niemann. Há insinuações de falcatruas em jogos entre ambos e abandono de competições por parte do campeão mundial Carlsen. O assunto tem o interesse do leitor, dos mais simples aos apaixonados pela modalidade. O Estadão não é o único a explorar o tema.
O jornal inglês The Guardian divulgou reportagem com o seguinte título: “As pessoas que policiam os trapaceiros do xadrez: ‘Nós construímos uma análise da cena do crime para todos os jogadores do mundo’. Depois que as acusações de trapaça giraram em torno dos principais jogadores do jogo – é possível ter um jogo justo de xadrez?”. Nessa reportagem, o periódico se aprofunda no tema depois que Carlsen, de 31 anos, se retirou da Sinquefield Cup em St Louis após derrota para o jogador de 19 anos e de classificação mais baixa, Niemann.
Nesta semana, o campeão mundial se recusou a explicar suas ações, mas comentou, em entrevista, que “as pessoas podem tirar suas próprias conclusões e certamente o fizeram”. Disse estar “impressionado com a jogada de Niemann” e foi irônico ao comentar que “seu mentor Maxim Dlugy deve estar fazendo um ótimo trabalho”.
O Guardian informa que Carlsen foi mais do que ácido em suas declarações. Trata-se de “outra acusação aparente, já que Dlugy é um mestre de xadrez que foi acusado de trapacear”. Em todos os casos, Niemann negou ter trapaceado no tabuleiro. “Ele deve estar “envergonhado de perder para um idiota como eu”. Nada foi comprado contra o desafiante de 19 anos. Mas então por que ele é acusado de trapacear”, questiona o jornal inglês em publicação nesta sexta.
Seus repórteres ouviram Danny Rensch, um mestre de xadrez e executivo do chess.com, onde Niemann foi expulso por trapacear quando era mais jovem. A empresa afirma ter desenvolvido um “pega ladrão” do xadrez, um modelo antitrapaça que tem como base uma grande quantidade de dados de jogos feitos em sua plataforma. São milhões de movimentos cadastrados.
“O que fizemos foi construir o que eu chamo de análise da cena de crime, construímos um DNA para cada jogador de xadrez”, disse Rensch ao Guardian. Isso significa que o site tem um modelo detalhado de como é o comportamento de milhões de seus usuários e isso pode ser usado para apontar “discrepâncias”. “De vez em quando acontecem anomalias”. Rensch se recusou a falar sobre Niemann. Mas em postagem nesta semana, de acordo com o Guardian, o CEO do chess.com, Erik Allebest, deu a entender que a empresa pode divulgar mais informações em breve. A questão levantada pelos especialistas é simples: “qual é a melhor maneira de detectar trapaças no xadrez?”
Escreve o Guardian: “Tanya Karali é o árbitro-chefe, ou árbitro de xadrez, do Meltwater Champions Chess Tour, o torneio online que viu a dramática renúncia de Carlsen esta semana. A principal maneira para se proteger contra a trapaça é através da vigilância, disse”. Há várias câmeras, feito o VAR do futebol, em cima dos enxadristas. Os movimentos são acompanhados lance a lance, como também no pôquer, mas com o objetivo diferente. No jogo das cartas, a intenção é mesmo a de confundir os oponentes na mesa, o blefe. “Em momentos aleatórios, surpreendemos os jogadores pedindo que se movimentem com a câmera lateral para mostrar toda a sala”, explicou a árbitra ao jornal inglês. As imagens repassam o enxadrista em todas as suas ações feito um raio x em tempo real.
“Mas a ferramenta de autenticação mais importante que Karali usa é um programa de triagem empregado pela Fide, o órgão internacional que governa o xadrez. Ken Regan, um mestre de xadrez e cientista da computação, disse que começou a desenvolver o modelo em 2006 após uma acusação de trapaça do búlgaro Veselin Topalov contra o russo Vladimir Kramnik em seu jogo do campeonato mundial”, pontuou o Guardian em sua reportagem.
Há um modelo que observa os movimentos e projeta as probabilidades de um determinado jogador de acordo com o seu nível, o que é muito importante salientar. Trata-se de um julgamento humano para saber se o competidor está fazendo um jogo limpo e de acordo com suas condições. O programa resume uma condição muito comum nos esportes: ninguém fica bom de uma hora para a outra.
Nos jogos de xadrez online, sabe-se que a taxa de trapaças é de 100 a 200 vezes maior do que em partidas presenciais, disse Regan. Os organizadores da Sinquefield Cup pediram a ele para executar o programa no jogo de Carlsen e Niemann, a partida da primeira polêmica de 4 de setembro. “Não encontrei nada”, disse. O sistema teria mostrado que o desempenho de Neimann “foi um desvio padrão acima” em algumas métricas, “mas, por definição, o desvio padrão acontece normalmente”, registrou o Guardian.
A concepção geral é que o engine, o motor que analisa milhões de jogadas, são infinitamente melhores do que os humanos. “Os motores são incrivelmente bons em visualizar todo o tabuleiro e encontrar manobras que, por exemplo, usam três cantos do tabuleiro para reimplantar uma peça e alcançar um ângulo de ataque vencedor. Quando você vê pessoas em um nível mais fraco fazendo isso, bem, elas tiveram um momento de inspiração ou pode haver algo um pouco engraçado acontecendo”, comentou ao jornal inglês Matthew Sadler, grande mestre inglês que ficou em 14º lugar no mundo na era “pré-computador” e que deixou o jogo profissional em 1999, quando temeu que a ascensão da IA acabaria com o jogo.
Na verdade, a tecnologia tornou o xadrez mais popular. Há muitos interessados em jogar pelos sites e o fazem com mais frequência no aconchego de suas casas nas horas vagas. Os engine mostram as jogadas, de modo a ensinar alguns movimentos que seriam impensáveis pelos amadores. Para a pergunta do Guardian, não há respostas por ora. Especialistas ainda preferem apontar as condutas humanas como maneiras de detectar trapaças diante do tabuleiro. “Se um oponente tem uma decisão muito complicada e está demorando apenas um minuto, enquanto você esperaria, bem, qualquer jogador top normal levaria 15 ou 20, então isso é um pouco errado”, diz Sadler.
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