Conteúdos criados por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas redes sociais têm buscado justificar as recentes manifestações públicas contra a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições de 2022 utilizando dois artigos da Constituição: o artigo 142 e o artigo 34. Contudo, nenhum deles prevê pedidos de intervenção militar ou ampara uma possível intervenção federal no País no cenário atual, como alguns manifestantes afirmam.
Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, uma mulher que se identifica como advogada afirma que a intervenção militar está prevista no artigo 142 da Constituição e que a intervenção federal está prevista no artigo 34. Isso não é verdade, de acordo com especialistas em Direito Constitucional consultados pelo Estadão Verifica.
Na gravação, a autora diz que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, "ultrapassou" seus poderes ao autorizar que as polícias desfizessem bloqueios nas estradas. "Na Constituição, existe a separação dos poderes. O legislativo só pode legislar, o judiciário só pode julgar, e o executivo executa. E o 'Xandão' ele tem feito as três coisas", diz ela. "Quando isso acontece, o artigo 34 permite que haja intervenção federal. E o que seria isso? Para colocar a ordem novamente no Brasil, para restabelecer a ordem dos poderes".
Essa alegação, no entanto, é falsa. Em relação ao artigo 34, o professor de direito constitucional da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Santa Catarina, Rodrigo Sartoti, afirma que existe possibilidade constitucional de intervenção federal, mas que o artigo não serve para aquilo que os apoiadores do presidente Bolsonaro querem utilizá-lo.
"A intervenção federal serve para restabelecer a ordem pública nos, caso ocorram situações excepcionais, como quebra da lei e ordem", explica. "A regra da constituição é da não intervenção, mas em casos excepcionais, a união pode intervir nos estados para garantir que os três poderes funcionem nos estados".
O artigo em questão não fala sobre contestar o resultado das eleições. Aliás, não há qualquer indício que tenha ocorrido fraude eleitoral -- observadores internacionais que acompanharam o processo de votação afirmaram que o sistema brasileiro é íntegro e seguro. "A intervenção federal não serve para contestar o resultado eleitoral. A constituição traz de forma bem clara qual é o órgão responsável por conduzir o processo eleitoral no País: o TSE", diz Sartoti.
Em relação às críticas feitas no vídeo à atuação do presidente do TSE no processo eleitoral, o professor ressalta que, de forma legal, Alexandre de Moraes não ultrapassou seus poderes constitucionais. "A Constituição tem como base a separação de poderes, mas os poderes, além de executar, legislar e julgar, possuem funções atípicas previstas na Constituição", explica. "O presidente pode legislar atipicamente, o legislativo pode atipicamente ter o poder julgador, e quando o TSE edita resoluções eles estão cumprindo a sua função constitucional e papel legal previsto no código eleitoral".
Constituição não prevê intervenção militar
Os dois especialistas em direito constitucional consultados pelo Estadão Verifica afirmaram que o vídeo analisado contém diversas afirmações falsas e equivocadas em relação à natureza jurídica dos artigos 142 e 34 da Constituição de 1988.
De acordo com o doutor em Direito Rodrigo Peixoto, colaborador do pós-doutorado do Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não existe hipótese de intervenção militar na Constituição brasileira.
"Na Constituição de 1988 não existe intervenção militar. Trata-se de uma leitura errada do artigo 142 da constituição, que não autoriza isso. As Forças Armadas não funcionam como poder moderador. Pelo contrário, elas estão submetidas à Constituição e aos poderes da República", diz. "As funções das forças estão restritas à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais".
O professor Sartoti lembra que, apesar de ter origem na necessidade nacional de proporcionar apoio federal aos estados em casos excepcionais, a intervenção federal foi usada historicamente no Brasil como ferramenta para o autoritarismo.
"Você for observar a história do Brasil republicano, na primeira República a intervenção federal era utilizada pelos presidentes justamente para contestar resultados eleitorais que não lhes agradavam. Ou seja, a intervenção foi utilizada para expedientes golpistas", explica. "Por isso, na Constituição de 88 foi criado todo um sistema de utilização desta intervenção, para impedir violações de ordem constitucional."
De acordo com ele, a competência de decretar uma intervenção federal está nas mãos do presidente da República, mas primeiramente, em caso de existir um uso justificado, ele precisaria ouvir a opinião do Conselho da República, depois o Conselho da Defesa Nacional, e posteriormente enviar o decreto para a aprovação do Congresso Nacional.
O que diz o artigo 34
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - manter a integridade nacional;
II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
O que diz o artigo 142
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
§ 2º Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
I - as patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são conferidas pelo Presidente da República e asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva ou reformados, sendo-lhes privativos os títulos e postos militares e, juntamente com os demais membros, o uso dos uniformes das Forças Armadas; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
II - o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", será transferido para a reserva, nos termos da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 77, de 2014)
III - o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 77, de 2014)
IV - ao militar são proibidas a sindicalização e a greve; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
V - o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea "c"; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 77, de 2014)
X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)
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