Circula nas redes sociais um vídeo em que um homem que se declara ex-militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) exalta o programa de regularização fundiária do governo Bolsonaro (PL) e insinua que o PT não distribuiu títulos de propriedade rural para famílias assentadas. Apesar de a atual gestão ter avançando na emissão desses documentos, os governos petistas de Lula e Dilma, juntos, distribuíram mais de 200 mil títulos entre 2003 e 2015, conforme dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) obtidos via Lei de Acesso à Informação.
A titulação de terras é apenas uma etapa do programa de reforma agrária do órgão federal. O governo Bolsonaro promoveu um aumento nos indicadores de expedição dos documentos -- foram mais de 400 mil. No entanto, houve um recuo significativo no número de novas famílias assentadas e de áreas incorporadoras à reforma agrária em comparação com governos anteriores. Por outro lado, o Incra defende que a criação de novos assentamentos não é a única etapa do processo de reforma agrária.
O homem do vídeo, identificado como Pedro Poncio, diz que já foi doutrinado e militou pelo MST. A organização, no entanto, afirma que ele nunca participou do movimento. O conteúdo alcançou mais de 342 mil visualizações no Facebook e foi compartilhado no perfil oficial do presidente Jair Bolsonaro. O Estadão Verifica procurou Poncio, mas ele não respondeu até a publicação desta checagem.
Os números de titulação de terras
No vídeo, Pedro Poncio diz que "as pessoas do assentamento, que demoraram seis, dez, vinte anos e nunca pegaram titulação de terra, só puderam pegar por conta do Governo Bolsonaro, que distribuiu mais de 400 mil títulos de Terra, que o PT nunca deu". O número atribuído ao atual governo coincide com a quantidade de títulos emitidos informada pelo Ministério da Agricultura em nota divulgada recentemente no site da pasta.
Os dados do Incra indicam que o volume de títulos expedidos anualmente pelo governo Bolsonaro é significativamente maior que nos governos do PT e ganhou tração a partir do governo Michel Temer. Nos dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o instituto contabilizou a emissão de 98 mil documentos. Entre 2011 e 2015, na gestão Dilma Rousseff, foram cerca de 125 mil certificações. Já em 2017, o governo ultrapassou a marca de 100 mil títulos emitidos em um único ano pela primeira vez. Apesar de uma queda em 2019, a tendência praticamente se manteve nos demais anos da gestão Bolsonaro.
O levantamento contabiliza títulos de domínio (TD), contratos de concessão de uso (CCU) e direitos reais de uso (CDRU). A primeira modalidade transfere o imóvel ao assentado em caráter definitivo, enquanto as outras categorias têm vigência temporária até a regularização definitiva. As bases de dados completas estão disponíveis em dois pedidos de acesso à informação feitos aos Incra e podem ser consultadas aqui e aqui.
Queda no número de famílias assentadas
A média anual de famílias assentadas no governo Dilma foi quase seis vezes maior que no governo Bolsonaro (até 2020), seguindo uma tendência diferente dos números de expedição de títulos de propriedade. O maior contingente de assentados foi registrado no primeiro mandato do ex-presidente Lula, quando cerca de 381,5 mil famílias foram beneficiadas. As informações constam em uma nota técnica enviada pelo Incra ao Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de 2021.
O documento também expõe uma queda acentuada nos hectares de áreas incorporadas ao programa de reforma agrária da autarquia. O gráfico abaixo mostra uma queda acentuada a partir do governo Dilma, que chegou ao seu menor nível na gestão do presidente Jair Bolsonaro.
A nota técnica foi enviada ao STF em meio a uma ação judicial protocolada por entidades agrícolas que acusava o Incra de paralisar o programa de reforma agrária no País ao reduzir indicadores de áreas desapropriadas e famílias assentadas. O instituto argumentou que o entendimento que a obtenção de novas terras seria um elemento central da reforma agrária é equivocado.
Segundo a autarquia, o programa de reforma agrária é um processo amplo que também passa pelo desenvolvimento e consolidação do assentamento, incluindo nessas etapas a regularização fundiária. A nota cita que o número de famílias assentadas já tinha tendência de queda desde o governo Dilma devido a uma política "mais preocupada com qualidade dos assentamentos da reforma agrária".
Em junho de 2021, o ex-ministro Marco Aurélio rejeitou o prosseguimento da ação. O magistrado avaliou que não cabe ao Supremo assumir o papel do Executivo em decidir a política governamental que deve ser implementada.
Posicionamento do MST
Procurada, a assessoria de comunicação do MST encaminhou nota informando possuir 450 mil famílias assentadas e 90 mil acampadas, defendendo que a maioria dos 9 mil assentamentos existentes no Brasil ocorreram nos governos petistas, assim como a maior destinação de áreas para a Reforma Agrária. O movimento critica o que identifica como desmonte do Incra, afirmando que o Programa Nacional de Reforma Agrária. O MST afirma que no início da atual gestão foram paralisados processos de aquisição de áreas que tramitavam no Incra e diz que é cada vez menor o orçamento para essa finalidade - em 2011, o orçamento para aquisição de terras era de R$ 930 milhões e caiu para R$ 2,4 milhões em 2022.
Por fim, o movimento chama de "farsa" a entrega de documentação feita pelo governo Bolsonaro, alegando que a maioria dos títulos são de concessão e não de domínio, que privatiza a área para a família assentada. "Infelizmente, muita gente tem sido enganada e só descobre isso quando vai ao cartório de registro de imóveis e não consegue averbar o documento que o Incra entrega", afirma o movimento.
O Estadão Verifica procurou o Incra, mas não obteve resposta até a publicação desta checagem.
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