Circula nas redes sociais que o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), teria recebido R$ 2 bilhões do governo federal para "equipar UTIs e criar hospitais de campanha", mas usado o dinheiro para pagar a folha salarial dos servidores e investir em publicidade. A peça confunde os internautas ao tratar o auxílio financeiro enviado pela União aos estados e municípios como gasto obrigatório para a saúde, afirmação que é enganosa.
De acordo com a Lei Complementar 173/2020, que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, apenas parte dos repasses tem essa vinculação direta. O restante pode ser utilizado livremente como forma de compensar as perdas de arrecadação em impostos estaduais (ICMS) e municipais (ISS), causadas pela queda da atividade econômica durante a pandemia. Governadores e prefeitos defenderam a medida como forma de equilibrar as contas e manter os serviços públicos funcionando em meio à crise sanitária.
No caso do Rio Grande do Sul, conforme dados da Secretaria Estadual da Fazenda, foram liberados R$ 3,05 bilhões em recursos extras pela União em 2020. Desse montante, R$ 826 milhões foram de verbas carimbadas para a saúde, enquanto os outros R$ 2,15 bilhões configuram recursos de aplicação livre.
O boato possivelmente trata o valor como R$ 2 bilhões em referência ao montante previsto apenas para reposição de perdas de arrecadação pela Lei Complementar 173/2020, que ficou em R$ 1,95 bilhão. O Estado ainda recebeu, por conta dessa mesma legislação, R$ 259 milhões para emprego efetivo na saúde e foi beneficiado em R$ 75 milhões com a suspensão de pagamento de dívidas com o BNDES.
Ainda entram na conta outras três fontes de recursos: R$ 126 milhões com a reposição ao Fundo de Participação dos Estados (FPE) prevista na Lei 14.041/2020, R$ 567 milhões destinados para a saúde por meio de emendas parlamentares sob regulamentação de portarias do Ministério da Saúde e R$ 75 milhões repassados pelo governo federal para editais de apoio ao setor cultural da Lei 14.017/2020, conhecida como Lei Aldir Blanc (veja o resumo das receitas abaixo).
O governo gaúcho afirma que todo o repasse obrigatório para a saúde foi utilizado para essa finalidade. O dinheiro ajudou o Estado, por exemplo, a abrir 1.176 novos leitos de UTI, mais do que dobrando a capacidade de atendimento aos pacientes em estado grave. O orçamento total destinado para a saúde aumentou R$ 1,1 bilhão no ano passado, superando a parcela obrigatória do socorro da União e a quantia obtida por meio de emendas.
Em relação aos recursos extras de uso livre, uma parte de fato foi empregada para o pagamento do funcionalismo público, como mostram informações divulgadas pela gestão estadual no ano passado. O governo diz ainda ter destinado verbas para regularizar compromissos com fornecedores e garantir transferências a hospitais e prefeituras dentro da normalidade, segundo reportagem do site GaúchaZH.
O pacote de socorro instituído pela Lei Complementar 173/2020 envolveu o repasse total de R$ 60 bilhões pela União a estados e prefeituras, separados em duas modalidades: R$ 10 bilhões para ações de saúde e assistência social e R$ 50 bilhões não discriminados. Com base no art. 5º, esses recursos podem ser aplicados "em ações de enfrentamento à covid-19 e para mitigação de seus efeitos financeiros". A matéria foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 27 de maio de 2020.
Os valores foram calculados com base na expectativa de queda na arrecadação de impostos para os entes federativos entre os meses de abril e setembro. Como contrapartida, o governo federal barrou reajustes de salários de servidores e vetou novos gastos com pessoal até dezembro de 2021, em movimento capitaneado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O pagamento foi feito em quatro parcelas e concluído em setembro. Somando as renegociações de dívidas previstas no mesmo texto, a liberação de verbas chegou a R$ 120 bilhões.
O governo gaúcho informou recentemente que fechou 2020 com déficit orçamentário seis vezes menor do que em 2019, reconhecendo a influência dos repasses do governo federal no resultado ao aliviar o fluxo de caixa nos meses mais críticos. O rombo nas contas públicas foi de R$ 597 milhões, contra R$ 3,4 bilhões do ano anterior, a partir de uma alta de 6,8% nas receitas. O governador também anunciou a retomada do pagamento em dia do funcionalismo entre janeiro e abril, depois de 57 meses consecutivos de atrasos.
Ambas as situações vem servindo de munição a usuários nas redes que atribuem ao governador Eduardo Leite responsabilidade quanto a filas de espera por UTIs para tratamento de covid-19 no Estado. O Estado vive o pior momento da pandemia, com todas as regiões em "bandeira preta" -- ou seja, em nível máximo de restrição previsto no plano estadual de distanciamento controlado. Nesta terça-feira, 2 de março, a taxa de ocupação dos leitos de UTI adulto atingiu 100%.
A peça sugere ainda que o governo gaúcho teria aumentado os gastos com publicidade durante a pandemia. O portal da transparência do governo do Estado informa despesa de R$ 41,8 milhões do Executivo gaúcho na rubrica "divulgação promocional ou institucional" em 2020. No ano anterior, o primeiro sob a gestão de Eduardo Leite, o pagamento ficou em R$ 31,2 milhões. Houve aumento nominal de 25,3% e, neste caso, a informação procede.
Esse conteúdo foi selecionado para verificação por ter acumulado mais de 4,3 mil compartilhamentos no Facebook em menos de uma semana. Leitores do blog também pediram que a alegação fosse verificada pelo WhatsApp do Estadão Verifica: (11) 97683-7490. Foram encontradas outras versões na internet, como uma que inclui uma imagem de Eduardo Leite vestindo uma camisa do Sistema Único de Saúde (SUS) e com as mãos sujas de sangue -- montagem que antes teve como alvo o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM).
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
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