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Boato sobre ciclistas trans engana e distorce regras de evento esportivo

Postagens nas redes sociais deturpam o contexto de uma foto em que mulheres celebram no pódio; objetivo dos organizadores era justamente promover a inclusão

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Foto do author Samuel Lima
Atualização:

Não é verdade que uma foto mostre duas atletas trans que venceram uma “competição feminina de ciclismo” na Inglaterra, como alegam posts nas redes sociais. Na realidade, o evento era independente e promoveu uma disputa em categorias neutras no que diz respeito ao gênero. Um dos objetivos dos organizadores era justamente o de promover a inclusão de competidores que não se veem representados no circuito tradicional do esporte no Reino Unido.

Boato omite informações de evento amador de ciclismo no Reino Unido que estabelece categorias neutras Foto: Reprodução / Tiktok

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A foto foi originalmente tirada em 3 de junho de 2022 e mostra as atletas Emily Bridges, Lilly Chant e Jo Smith nos três primeiros lugares do pódio, respectivamente. Emily e Lilly são mulheres transexuais, enquanto Jo é uma mulher cisgênero. Pessoas trans são aquelas que se identificam com um gênero diferente daquele que corresponde ao seu sexo biológico no nascimento. Já as pessoas que se reconhecem pelo mesmo gênero que foi designado ao nascer são chamadas cisgênero.

A premiação se deve ao Thundercrit 6, um evento amador organizado por um time de ciclistas de Londres. O North London ThunderCat Black Metal Bicycle Club (NLTCBMBC) promove competições de fixed-gear crit racing — que é uma modalidade de ciclismo com bicicletas que não permitem a troca de marcha e que não foi sancionada pela British Cycling, a federação britânica de ciclismo.

Alheio ao circuito oficial, o time londrino de ciclistas decidiu promover mudanças a partir da 6ª etapa da competição. “No ano passado, tomamos a decisão de criar um sistema de categorização mais neutro em termos de gênero que permitisse a atletas trans e não-conformantes, que por vezes sentem que não tem espaço seguro no esporte, sentirem-se acolhidos”, informa um comunicado no site.

A equipe afirmou, no mesmo documento, que estava ciente de comentários online a respeito do assunto e que sentia orgulho por realizar um evento “onde todas as pessoas que praticam ciclismo são bem-vindas”.

Segundo o regulamento do Thundercrit, os atletas devem se inscrever em duas categorias: Thunder e Lightning. A Thunder abrange obrigatoriamente todos os homens cisgênero, além de pessoas não-binárias (rejeitam ambos os gêneros masculino e feminino) e trans que julgam que a sua performance física está mais próxima destes. A Lightning é o inverso: mulheres cisgênero mais pessoas não-binárias e trans com desempenho semelhante ao delas.

Emily, Lilly e Jo conquistaram o pódio na competição principal da categoria Lightning, que teve 14 atletas inscritos. As duas primeiras, que são namoradas, se beijaram durante a celebração, enquanto a terceira segurou uma criança no colo. Uma fotografia depois viralizou na internet com comentários preconceituosos contra a comunidade LGBT+ e foi divulgada por tabloides sensacionalistas britânicos.

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No ano passado, tomamos a decisão de criar um sistema de categorização mais neutro em termos de gênero que permitisse a atletas trans e não-conformantes, que por vezes sentem que não tem espaço seguro no esporte, sentirem-se acolhidos

North London ThunderCat Black Metal Bicycle Club, que organizou o evento no Reino Unido

Em entrevista para a revista Cycling Weekly, as atletas criticaram a exposição negativa na mídia e nas redes sociais. Jo Smith, que ficou em terceiro, destacou que o evento tinha uma configuração diferente — não era uma “corrida feminina” — e que estava contente com o resultado. Kitty Dennis, outra mulher cis e que ficou em quarto lugar, declarou que estava “encantada com o formato” e que não achou que a corrida foi injusta. Na opinião de Emily Bridges, o evento pode ter oferecido uma “possível solução” para tornar o esporte mais inclusivo a pessoas trans.

A história de Emily Bridges mostra como atletas transgênero ainda enfrentam um caminho tortuoso no esporte. Quando ainda se identificava com o gênero masculino, era um jovem ciclista promissor. Quebrou um recorde júnior, em 2018, e foi selecionado para o treinamento de elite da federação britânica.

Isso mudou em 2020, quando assumiu a sua transição de gênero. Se submeteu a inibidores de hormônios para se adequar ao regulamento, o que a fez cair de rendimento nas categorias masculinas. Em 2022, Bridges disputaria sua primeira competição feminina, o British National Omnium Championship, mas foi barrada pela British Cycling porque ainda estava inscrita na federação internacional de ciclismo (UCI) como um atleta masculino.

Campanha de desinformação

Esse não é o primeiro post contendo desinformação sobre atletas trans checado pelo Estadão Verifica. Perfis em diversas redes sociais divulgaram vídeos de lutas da atleta brasileira de jiu-jitsu e MMA Gabi Garcia como se ela fosse transexual.

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Os conteúdos surgiram e ganharam notoriedade após o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) discursar em sessão solene do Dia Internacional da Mulher na Câmara, em 8 de março, usando uma peruca. Ele ironizou o feminismo e sugeriu que as mulheres estavam tendo o lugar “roubado” na sociedade por “homens que se sentem mulheres”. Em outras ocasiões, passou a criticar a presença de atletas trans em certas modalidades esportivas e o uso de banheiros.

No Facebook e no Tiktok, posts distorcendo as condições do evento de ciclismo no Reino Unido somam mais de 3,2 mil compartilhamentos e reproduzem o discurso de Nikolas Ferreira. “Mulheres levaram séculos para conquistar um espaço de destaque nos esportes para agora os homens irem lá vestidos de mulher e tirar isso delas”, alega uma publicação, ignorando que se trata de uma competição amadora e espalhando preconceito. “Dois atletas trans comemorando a conquista! Ao lado, uma mulher que está perdendo seu espaço aos poucos!”, diz outra.

Nikolas Ferreira se tornou alvo de três notícias-crime no STF por transfobia e de um abaixo-assinado a favor de sua cassação com mais de 270 mil adesões, além de pedidos formais de perda de mandato por quebra de decoro na Câmara. Especialistas ouvidos pelo Estadão entendem que o deputado infringiu a Lei 7.716/1989, que dispõe sobre crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e que, por decisão do próprio STF, também se aplica aos casos de homofobia e transfobia.

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O deputado rebateu a acusação de transfobia em suas contas, dizendo ser vítima de perseguição pelo ativismo LGBT+. Em vídeo divulgado nas redes sociais, o parlamentar disse que, se perder o mandato, levanta “10 mil Nikolas no Brasil inteiro” e que “a minha vida não acaba com a cassação”.

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