Vídeo com ‘checagem’ de discurso de Lula usa dados enganosos sobre desigualdade e Amazônia

Youtuber afirma desmentir falas do presidente, mas interpreta de forma equivocada o aumento do número de milionários no mundo como prova da diminuição da desigualdade econômica e social

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Conteúdo investigadoVídeo em que um homem reage ao discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na cúpula de Paris, na França, realizada em 23 de junho deste ano. Nas imagens, um youtuber afirma desmentir os pontos utilizados pelo presidente em sua fala.

Onde foi publicado: Tiktok, Kwai e YouTube.

Conclusão do Comprova: É enganosa a “checagem” que o autor do vídeo verificado pelo Comprova faz sobre trechos do discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante uma cúpula organizada pelo governo francês, em 23 de junho, para discutir um novo pacto financeiro global.

Um dos pontos abordados é sobre o tamanho da Amazônia, citado pelo presidente Lula. Foto: Reprodução

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Um dos pontos abordados é sobre o aumento da desigualdade social citado pelo presidente Lula. O autor argumenta que a afirmação é falsa porque aumentou o número de milionários no mundo, mas a interpretação dele é equivocada.

Segundo o economista Luciano Nakabashi, a desigualdade não é avaliada pelo número de milionários existentes, mas por medidas estabelecidas na literatura, principalmente o Índice de Gini, que calcula como cada parcela da população recebe a renda. A comparação não se dá por quantos indivíduos há na camada, e sim por quantos por cento da renda total cada faixa ganha.

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Além disso, o responsável por gravar o conteúdo cita o Relatório de Riqueza Global 2022, produzido pelo banco europeu Credit Suisse, para sustentar a tese apresentada. Contudo, embora o documento realmente aponte o aumento de milionários, também destaca que, no período de dois anos da pandemia, entre 2020 e 2021, todos os índices apontaram que a desigualdade de riqueza global aumentou.

Em outro trecho do vídeo, o autor afirma que Lula erra ao citar o tamanho da Amazônia. Enquanto o presidente diz que, apenas no Brasil, a Amazônia tem 5 milhões de km², o autor do vídeo alega que “o bioma Amazônia tem cerca de 6,7 milhões de km²”, sendo 4 milhões de km² no Brasil.

Os dois se referem a definições diferentes. Lula cita a medição da Amazônia Legal, que no Brasil tem 5.015.068,18 km². Já o autor do vídeo cita o bioma Amazônia, que mede 4,2 milhões de km² no Brasil. A Amazônia Internacional mede cerca de 6,7 milhões de km². A Amazônia Legal corresponde à área de influência do bioma Amazônia no país, mesmo em áreas sem floresta. Já o bioma engloba a área de floresta.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O vídeo verificado somou 6,1 mil visualizações no YouTube, onde foi originalmente postado. Ele também foi compartilhado no Kwai, onde foi visualizado outras 20,1 mil vezes, e no TikTok, onde recebeu 67,2 mil visualizações até o dia 6 de julho de 2023.

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Como verificamos: O primeiro passo foi identificar a origem do vídeo viralizado nas redes sociais e a estratégia para isso foi pesquisar as palavras-chave da identificação da postagem em outras plataformas, como TikTok e YouTube. Neste último, foi identificado o vídeo original, com 7 minutos de duração, no canal da pessoa que aparece no vídeo alegando desmentir o presidente Lula. O áudio do vídeo foi transcrito utilizando a plataforma Transkriptor.

Com isso, passamos a verificar os pontos que o homem afirma ser mentiras ditas no discurso presidencial e esclarecer junto a autoridades, especialistas e documentos quais são os verdadeiros dados e informações. Contatamos ainda o Ministério do Meio Ambiente (MMA) para esclarecer sobre o tamanho da Amazônia e especialistas para esclarecer sobre a desigualdade social.

Métrica utilizada no vídeo para definir desigualdade é inadequada

É enganoso associar o aumento do número de milionários no mundo a uma suposta diminuição da desigualdade social porque essa não é a métrica utilizada para esse cálculo. O economista Luciano Nakabashi, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEARP-USP), explica que olhar apenas a quantidade de milionários em uma sociedade não quer dizer muita coisa.

“Quando a gente fala de distribuição de renda, a gente está falando de como cada parcela da população recebe a renda, ou seja, você pega os 10% mais pobres e vê quantos por cento da renda eles têm; então pega os 10% mais ricos e vê quantos por cento da renda tem essa camada, a análise parte daí”, disse.

Segundo o economista, para analisar a distribuição de renda é melhor focar na parcela da população mais pobre por ser a que mais sente uma distribuição de renda ruim. “Olhar a quantidade de pobres numa economia é muito mais relevante para questões de políticas sociais, de bem-estar social, de uma sociedade justa, que olhar a quantidade de milionários”, observa, acrescentando que é indiferente se há mais milionários, pois a comparação deve ser de quantos por cento da renda essa faixa ganha.

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Para isso, informa, existem medidas estabelecidas na literatura, sendo o Índice de Gini o mais utilizado. Conforme explica detalhadamente a plataforma Politize!, trata-se de uma metodologia estatística capaz de medir o grau de desigualdade na distribuição da renda, utilizando-se da curva de Lorenz (gráfico formado pelas várias camadas da população e sua renda). O coeficiente de Gini é definido como a razão entre a área de desigualdade e o máximo valor que ela pode assumir.

Esse, inclusive, é o modelo utilizado atualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), para mensurar o cenário social no Brasil.

Ainda de acordo com Nakabashi, quanto mais próximo de zero estiver o indicador, mais igualitária é uma sociedade. No Brasil, o levantamento mais atual do IBGE, divulgado em maio, aponta que o Gini do rendimento domiciliar per capita caiu de 0,544 para 0,518 em 2022, ou seja, houve uma diminuição da desigualdade de rendimentos no conjunto da população. Antes disso, ele vinha crescendo. O IBGE destaca que, apesar da redução no Gini no último ano, a desigualdade permanece. Em 2022, o rendimento médio domiciliar per capita do 1% da população que ganha mais era 32,5 vezes o rendimento médio dos 50% que ganham menos. Em 2021, essa razão era de 38,4 vezes.

No Brasil, em 2022, o rendimento médio domiciliar per capita do 1% da população que ganha mais era 32,5 vezes o rendimento médio dos 50% que ganham menos. Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADÃO

Relatório apontou aumento da desigualdade, não o contrário

Para embasar sua tese, o autor do vídeo cita um levantamento do Credit Suisse, que aponta o aumento de milionários e projeta crescimento neste sentido para os próximos anos. Contudo, o autor da peça omite que o Relatório de Riqueza Global 2022, produzido pelo banco suíço, informa que, no período de dois anos da pandemia, 2020 e 2021, todos os índices apontaram que a desigualdade de riqueza global aumentou. Isso foi divulgado pela imprensa profissional no Brasil (Valor EconômicoFolha de S.Paulo e CNN).

As informações constam a partir da página 32 do relatório. Conforme o documento, o conjunto de dados analisados permite estimar que 50% dos adultos na base da distribuição global de riqueza representam, juntos, menos de 1% da riqueza global total no final de 2021. Em contrapartida, o nível mais rico (10% dos adultos mais ricos) possui 82% da riqueza global.

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Os milionários globais ultrapassaram 1% dos adultos pela primeira vez em 2020 e o grupo vem crescendo rapidamente, mas eles estão se tornando cada vez mais dominantes em termos de propriedade de patrimônio total e participação no patrimônio global. O patrimônio agregado dos milionários cresceu cinco vezes, passando de 41,4 trilhões de dólares em 2000 para 221,7 trilhões em 2021, e a participação deles na riqueza global aumentou de 35% para 48% no mesmo período.

Conforme o levantamento, a participação nas camadas da pirâmide de riqueza é bastante distinta em termos de residência e características pessoais. A camada da base tem a distribuição mais homogênea entre regiões e países, mas também a maior variedade de circunstâncias pessoais.

Nos países desenvolvidos, cerca de 30% dos adultos se enquadram nessa categoria e, para a maioria desses indivíduos, a filiação é transitória – devido a perdas comerciais ou desemprego, por exemplo– ou uma fase do ciclo de vida associado à juventude ou à velhice.

Em contrapartida, em muitos países de baixa renda, mais de 80% da população adulta está dentro dessa faixa, de modo que a filiação vitalícia ao nível básico é geralmente a norma.

Em janeiro deste ano, a Oxfam, entidade global que atua contra a desigualdade, divulgou relatório afirmando que 1% das pessoas mais ricas da Terra obteve quase dois terços da nova riqueza criada desde o início da pandemia.

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Segundo noticiou o Washington Post, o levantamento “Survival of the Richest” (Sobrevivência dos mais ricos, em português) destaca que os mais ricos do mundo absorveram uma proporção maior da riqueza global durante a pandemia e na última década, enquanto a pobreza global aumentou pela primeira vez em 25 anos.

Lula e o autor do vídeo se referem a definições diferentes da Amazônia

Enquanto Lula afirma que, apenas no Brasil, a Amazônia tem 5 milhões de km² e ainda há a extensão em outros países, o autor do vídeo diz que o bioma Amazônia tem cerca de 6,7 milhões de km², sendo cerca de 4 milhões de km² no Brasil. Os dois utilizam dados corretos quando se fala em Amazônia, mas em perspectivas diferentes.

O bioma é uma definição biológica e corresponde ao espaço onde existe a floresta amazônica. Foto: AP / AP

O presidente se refere à medida da Amazônia Legal, criada pela lei complementar 124 de 2007. Conforme a última atualização do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021, essa porção de fato mede 5.015.068,18 km².

Essa é a área em que se tem a atuação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e do Maranhão, na sua porção a oeste do Meridiano 44º.

Conforme a lei, “a Sudam tem por finalidade promover o desenvolvimento includente e sustentável de sua área de atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na economia nacional e internacional”. Ou seja, a Amazônia Legal parte de uma definição do governo federal e corresponde à área de influência do bioma Amazônia no país, mesmo em áreas sem a presença da floresta.

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Já o autor do vídeo cita o bioma Amazônia, que mede cerca de 4,2 milhões de km² no Brasil, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente (MMA). O órgão esclareceu ao Comprova que a Amazônia Internacional, de fato, mede cerca de 6,7 milhões de km² e engloba a área de floresta em todos os oito países amazônicos.

O bioma é uma definição biológica e corresponde ao espaço onde existe a floresta amazônica. Segundo o Instituto Brasileiro de Florestas, a Amazônia passa pelos territórios do Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Roraima, e parte do território do Maranhão, Mato Grosso, Rondônia e Tocantins.

O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o autor do vídeo, Paulo Baltokoski, que se identifica como escritor, palestrante e arquiteto. Ele reafirmou o que diz na publicação e argumentou que a interpretação do assunto envolve questões ideológicas. Por fim, informou que manterá suas publicações originais (vídeo no YouTube e versão resumida no Instagram e TikTok) e que não pode se responsabilizar pelo post no Kwai, rede na qual afirma não ter conta.

O que podemos aprender com esta verificação: O vídeo analisado usa de forma distorcida a checagem de fatos (um método jornalístico empregado para verificar se uma informação é verdadeira e foi obtida de forma confiável) para enganar sobre um conteúdo que pretende desqualificar, no caso a fala de Lula.

Para isso, o autor apresenta dados distorcidos e omite informações das fontes que cita – como no caso do relatório do banco suíço. O usuário das redes sociais deve estar atento a verificações que não são feitas pela imprensa profissional ou por órgãos oficiais. Informações como números e relatórios citados nestes conteúdos podem ser facilmente verificáveis utilizando plataformas de buscas, como o Google.

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Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Lula é alvo constante da desinformação nas redes, o que continua ocorrendo desde que assumiu. Recentemente, por exemplo, o Comprova demonstrou ser falso que ele tenha comprado novo avião presidencial por 400 milhões e que o presidente norte-americano, Joe Biden, tenha convocado o Congresso por falas do brasileiro em apoio à Venezuela. Também provou não ser verdade que o petista tenha reconduzido Nestor Cerveró a cargo na Petrobras.

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