Circula no Facebook uma publicação que acusa a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de gastar valor equivalente a 120 hospitais para construir o Porto de Mariel em Cuba. A postagem não deixa claro, porém, que o valor foi concedido em um empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), e que parte da dívida foi quitada.
A instituição concedeu uma linha de financiamento da ordem de US$ 641 milhões à empresa brasileira Companhia de Obras e Infraestrutura (COI), do grupo Odebrecht, por meio do programa de apoio à exportação de serviços de engenharia. Neste tipo de operação, o país estrangeiro ou a empresa importadora dos serviços concordam em pagar ao BNDES prestações com juros definidos em contratos.
O empréstimo para as obras no Porto de Mariel foi consolidado em cinco acordos assinados entre 2009 e 2013, que estipularam um prazo de 25 anos para o governo de Cuba quitar a dívida com o BNDES. Como explica o BNDES em página de perguntas e respostas, as verbas são liberadas à medida que as exportações do serviço são realizadas e comprovadas pelo tomador.
De acordo com dados obtidos pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação, Cuba pagou, até setembro de 2018, R$ 293 milhões da dívida com o BNDES. Desde então, o país não realizou novos pagamentos. Segundo o site do Banco, em dezembro de 2020, o saldo devedor da operação correspondia a US$ 455 milhões, e US$ 128 milhões das parcelas atrasadas foram indenizadas ao banco por meio do Fundo de Gerantia de Exportação (FGE).
O site do BNDES reforça que o financiamento "cobre exclusivamente os bens e serviços de origem brasileira utilizados na obra", portanto, não contempla bens adquiridos no exterior ou gastos com mão de obra de trabalhadores dos países onde o serviço é realizado.
Indenização de parcelas em atraso
Em 2018, Cuba começou a atrasar o pagamento da dívida com o BNDES. Como o Estadão mostrou em 2019, a ilha passava por dificuldades que afetaram a economia local. No caso de "calote", os valores são cobertos por um seguro amparado com recursos do Fundo de Garantia à Exportação (FGE).
Entre as receitas do fundo, estão os prêmios pagos pelo país tomador dos serviços, além de aplicações financeiras e investimentos em renda fixa. O último relatório publicado no site do banco, referente a outubro de 2020, indica que o FGE contava, naquele mês, com um patrimônio líquido de R$ 34 bilhões.
A cobertura, porém, não significa que o país importador dos serviços está livre da dívida. "[O FGE] funciona como todo seguro: cobra prêmios do país responsável pelo pagamento do empréstimo na medida do risco incorrido e, caso haja inadimplência do devedor, indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso", diz o BNDES.
As garantias dos contratos são discutidas por comitês independentes. No caso do porto de Mariel, o Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Comex) definiu algumas "excepcionalidades" para o projeto, como informa o "Dossiê do BNDES" publicado anteriormente pelo Estadão.
O prazo do financiamento, que regularmente contemplaria 12 anos, foi estendido para 25 anos. "Outras "excepcionalidades" foram o fato de a garantia cobrir 100% dos riscos (a cobertura regulamentar é de 95%) e a contragarantia incluir depósitos numa conta nacional de Cuba e não numa conta no exterior, como o usual", pontua a reportagem.
Além disso, as condições do empréstimo para construção do porto de Cuba eram favoráveis: juros de 4,44% a 6,91% ao ano, variando conforme a operação.
No dossiê do Estadão é possível ter acesso a informações sobre as 86 obras no exterior financiadas pelo BNDES em mais de 15 países. Leia aqui.
Alvo recorrente de desinformação
O programa de apoio do BNDES à exportação de serviços no exterior é alvo recorrente de desinformação em plataformas digitais.
Em fevereiro, o Estadão Verifica também classificou como falso um boato o qual dizia que a Polícia Federal havia descoberto um rombo de quase R$ 1 trilhão no Banco Nacional em razão de supostos desvios que teriam sido praticados pelo ex-presidente Lula. No entanto, não há registro de nenhuma operação da PF que tenha revelado essa informação. O BNDES também negou qualquer rombo em suas contas.
Já no ano passado circulou nas redes sociais a informação falsa de que o BNDES teria investido mais em países estrangeiros do que no Brasil. Uma verificação do projeto Comprova, de 2019, mostrou que posts nas redes sociais misturavam informações verdadeiras e incorretas sobre financiamentos do BNDES nos governos do PT.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.
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