O que estão compartilhando: que o novo decreto de armas do governo federal impede a atuação de profissionais de segurança privada em bancos e no transporte de valores em carro-forte.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O Decreto n°. 11.615/2023, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 21 de julho, não impede o acesso de vigilantes da segurança privada a armas de fogo. A autorização desses profissionais segue outra norma (Lei nº. 7.102/1983), diferente do Estatuto do Desarmamento, e que permite o porte de revólver calibre 32 ou 38 ao vigilante, quando em serviço. Caso estejam empenhados em transporte de valores, existe a alternativa de uso de espingarda de calibre 12, 16 ou 20, de fabricação nacional.
Saiba mais: o vídeo analisado pelo Estadão Verifica é de autoria de um influencer e ex-candidato a deputado federal pelo PL do Espírito Santo, Dárcio Bracarense, participante do movimento Nas Ruas e aliado da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP).
Na gravação, o influencer pede a opinião do advogado Marcelo Barazal. Em suas redes sociais, o advogado afirma possuir “profundo conhecimento da legislação aplicável às armas de fogo” e alega prestar consultoria jurídica para o Proarmas em São Paulo (veja a manifestação deles a respeito desta checagem ao final do texto).
O material foi originalmente publicado no dia 25 de julho, no Instagram, onde teve cerca de 16 mil visualizações, e rapidamente ganhou apelo em outras plataformas, como o Tiktok.
Vídeo checado contém desinformação
Bracarense começa o vídeo pedindo ao advogado que explicasse de que maneira “a segurança dos bancos foi colocada em risco” com o decreto de Lula. Barazal, então, passa a argumentar que teria havido uma espécie de proibição indireta ao acesso de armas de fogo pelos vigilantes, por conta da regra que define se o equipamento é de uso restrito.
“O pessoal que fez, o pessoal da esquerda, não entende absolutamente nada de arma. Eles colocaram como limite de uso permitido 407 joules”, afirma o advogado. Depois, cita uma portaria do Exército que define o calibre de acordo com a potência, dizendo que o 38 SPL, comumente usado pelos profissionais de segurança, passou a ser restrito.
“Do dia para a noite, os seguranças de agências bancárias passaram a estar portando armas de uso restrito, o que é proibido para a segurança privada nos termos da lei. E os policiais que não estão prendendo os seguranças estão prevaricando”, completa Barazal.
Autorização de porte aos vigilantes inalterada
O relato que circula nas redes sociais é equivocado porque ignora o fato de que o decreto recente do governo federal (Decreto n°. 11.615/2023) regulamenta o Estatuto do Desarmamento (Lei nº. 10.826/2003). Ele não é capaz de modificar a legislação própria (Lei n°. 7.102/1983) que autoriza o porte de arma aos profissionais de segurança privada e transporte de valores enquanto estão trabalhando.
Esse fato consta em uma nota de esclarecimento divulgada pela Polícia Federal diante dos rumores na internet. “A Polícia Federal informa que o Decreto 11.615/2023, publicado em 21/07/2023, não altera a atuação de vigilantes. O novo decreto regulamenta a Lei nº 10.826/2003 (conhecida como Estatuto do Desarmamento). A atuação dos vigilantes segue as normas da Lei 7.102/1983, a qual segue em pleno vigor”, informa a corporação.
O armamento autorizado para os vigilantes é descrito em um dos artigos e continua valendo, segundo a PF.
Art. 22 - Será permitido ao vigilante, quando em serviço, portar revólver calibre 32 ou 38 e utilizar cassetete de madeira ou de borracha.
Parágrafo único - Os vigilantes, quando empenhados em transporte de valores, poderão também utilizar espingarda de uso permitido, de calibre 12, 16 ou 20, de fabricação nacional.
Lei 7.102/1983
O Estadão Verifica consultou a advogada criminalista Thais Rego Monteiro, do escritório Feller e Pacífico Advogados. Ela confirmou que o decreto não é capaz de modificar a legislação de 1983. “O ponto principal é que um decreto não é superior à lei. Ou seja, se ele prevê algo que contraria a lei, essa previsão é nula. Por essa razão, a questão dos joules fica sem validade, pois existe uma lei que, de forma expressa, autoriza o uso desses calibres por vigilantes”, explica a advogada.
Essa hierarquia é disciplinada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso II (”ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), sendo o decreto considerado um ato normativo secundário que não pode alterar ou eliminar direitos previstos na legislação.
Monteiro lembra ainda que a autorização e fiscalização é uma responsabilidade da PF. Sendo assim, o órgão competente já anunciou publicamente que não irá aplicar essa regra aos profissionais da segurança privada.
O Estatuto do Desarmamento, regulamentado pelo decreto, consagra, em seu art. 60, a autorização do porte de arma de fogo “para os casos previstos em legislação própria” e para diversas exceções previstas, entre elas “as empresas de segurança privada e de transporte de valores”. A legislação também estabelece regras para o setor, como a exigência de que as armas de fogo sejam “de propriedade, responsabilidade e guarda das respectivas empresas, somente podendo ser utilizadas quando em serviço”.
Para serem admitidos nesse tipo de trabalho, os profissionais precisam obter a Carteira Nacional de Vigilante, conforme disposto na Portaria n.º 3.233 do Departamento de Polícia Federal, de 10 de dezembro de 2012.
Para quem mudam as regras do decreto de armas
O novo decreto de armas do governo federal afeta, principalmente, caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), que tiveram uma alta expressiva nas autorizações emitidas em anos mais recentes. Ao estabelecer um critério para definir se uma arma é de uso permitido ou restrito, o governo pode tanto facilitar quanto dificultar o acesso a determinados equipamentos.
O artigo 12 do decreto determina que sejam de uso restrito as armas curtas cuja munição tenha “energia superior a trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules”. Para armas de fogo longas, o limite passa a ser de “mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules”. Não é explicitado no documento, portanto, quais calibres efetivamente se tornaram restritos. Procurada pelo Estadão, a assessoria de imprensa da PF não esclareceu qual o documento que está sendo levado em conta para fazer essa associação.
Atualização (17/8): a PF esclareceu que o novo decreto dispõe, em seus artigos 11 e 12, que as armas de fogo serão classificadas como de uso permitido ou restrito em ato conjunto do Comando do Exército e da Polícia Federal e que o documento “está em fase final de elaboração”. Nesse meio tempo, a Polícia Federal segue observando os parâmetros que constam na Portaria nº 1.222/2019 do Exército Brasileiro.
A portaria do Exército mostrada no vídeo (Portaria nº. 1.222/2019) traz, de fato, dados comparativos de potência conforme as armas e munições. Ela foi publicada por exigência de um decreto do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019, de forma a “estabelecer os parâmetros de aferição e a listagem dos calibres nominais com suas respectivas energias para a classificação das armas de fogo e das munições quanto ao uso permitido ou restrito”.
A partir dessas informações, pode se entender que, de fato, o calibre conhecido como 38 Special apresenta uma energia superior a 407 joules (437,88), o que o tornaria de uso restrito pelas regras atuais. As normas, no entanto, se referem à população em geral e não afetam casos específicos que constam com legislação própria, como o dos seguranças de agências bancárias e de transporte de valores em carro-forte.
Outro lado
O Estadão procurou o influencer Dárcio Bracarense, por mensagens diretas no Instagram, e o advogado Marcelo Barazal, por e-mail, na tarde desta quinta-feira, 10.
Dárcio Bracarense disse que repercutiu a nota da PF dias depois em suas redes sociais; no post, chama a medida de contorcionismo. “Não tenho compromisso com a desinformação e, por isso, publiquei a posição da Polícia Federal, ainda que de modo crítico. A crítica se dá pelo fato de considerar que a atual interpretação da norma pode ser questionada. No meu entender, um ajuste do decreto seria o melhor a ser feito para uma maior segurança jurídica”.
Marcelo Barazal alegou que a Polícia Federal fez um “malabarismo jurídico” para justificar o porte de arma de uso restrito pelos vigilantes. Sustenta que a Lei n°. 7.102/1983 fala de modo genérico em “calibre 38″ e que esse conceito compreende munições como 38 Special, 38 Smith & Wesson, 38 Automatic e 38 Super Automatic +P. Destas, apenas a 38 Smith & Wesson não é de uso restrito nos termos do novo decreto, por apresentar energia de 202,51 joules na portaria do Exército.
“Concluo e sustento que a minha interpretação legal é no sentido de que os vigilantes que estiverem portando qualquer revólver no calibre 38 Special estarão cometendo infração legal e estarão sujeitos às sanções previstas”, declara o advogado.
O mesmo boato foi desmentido anteriormente por Lupa e UOL Confere.
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