São falsas as alegações de uma parlamentar italiana que, em vídeo que viralizou nas redes sociais, acusa Bill Gates de desenvolver vacinas para "reduzir a população mundial". O discurso da deputada foi gravado em maio de 2020 e já foi desmentido por uma série de agências de checagem de fatos internacionais, mas voltou a circular recentemente. Leitores solicitaram a verificação deste conteúdo pelo WhatsApp do Estadão Verifica, 11 97683-7490.
A deputada italiana Sara Cunial distorce uma frase de Bill Gates dita durante uma palestra ocorrida em 2010. Na tentativa de sustentar sua teoria conspiratória, a parlamentar afirma que o cofundador da Microsoft teria declarado que "se fizermos um bom trabalho com as vacinas, sistemas de saúde e saúde reprodutiva, podem reduzir a população mundial entre 10 a 15%".
A gravação da palestra, no entanto, mostra que os percentuais citados por Gates se referem à expansão demográfica mundial. O empresário, na ocasião, pontuava que o crescimento populacional é um entre vários fatores que tem impacto em uma equação para reduzir a emissão do gás poluente na atmosfera. "O mundo hoje tem 6,8 bilhões de pessoas. E está indo para cerca de nove bilhões. E se fizermos um excelente trabalho com novas vacinas, saúde e serviços de saúde reprodutiva, nós podemos baixar isso (o crescimento populacional) para, talvez, 10 ou 15 por cento (da projeção), mas veríamos um aumento de cerca de 1,3 (%)", afirmou o palestrante.
O tema da palestra de Bill Gates era sobre avanços tecnológicos em eficiência energética. Durante sua fala, o americano diz que diminuir a quantidade de CO2 emitido cada unidade de energia é um fator chave para reduzir as emissões de carbono. "Quase todas as maneiras que produzimos energia hoje, exceto pela reciclável e nuclear, emitem CO2. Então, o que teremos que fazer, em uma escala global, é criar um sistema novo. Nós precisamos de milagres da energia", diz ele em outro trecho da palestra.
Uma carta publicada pela Fundação Bill & Melinda Gates em 2009 esclarece que, na visão do empresário, a queda da mortalidade infantil está associada à diminuição de índices de natalidade, em especial em países pobres. De acordo com o documento, as vacinas são ferramentais fundamentais para reduzir os óbitos de crianças nos primeiros anos de vida.
"Quando a saúde melhora, as pessoas têm famílias menores e o governo tem mais recursos por pessoa", diz Gates na carta. "Melhorar a nutrição e a educação torna-se muito mais fácil. Estes investimentos também melhoram a saúde, e sustentam um ciclo virtuoso que retira um país da pobreza. Esta foi uma enorme revelação para Melinda e para mim".
Não há registros de que o empresário tenha declarado que "só um genocídio pode salvar o mundo", como sugere Cunial.
Não, vacinas de Bill Gates não esterilizaram mulheres na África
O discurso da parlamentar também engana ao dizer que vacinas apoiadas pela Fundação Bill & Melinda Gates "esterilizaram milhões de mulheres na África". A afirmação repercute um boato originado de uma denúncia sem fundamentos de bispos da Igreja Católica do Quênia em 2014.
O grupo afirmou na época que uma análise independente mostrou que doses de uma vacina antitetânica distribuída pela Organização Mundial da Saúde no país estavam contaminadas com um hormônio Beta-HCG, e que a substância poderia desencadear infertilidade em mulheres. A OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) pontuaram em nota que as alegações não tinham respaldo em evidências e reafirmaram a segurança da vacina.
As entidades destacaram ainda que análises da composição de vacinas e medicamentos devem ser realizadas em instalações laboratoriais apropriadas, a partir de doses lacradas, e não com amostras de sangue de pacientes. O Ministério da Saúde do Quênia também negou problemas com o imunizante, como mostra uma reportagem da BBC.
Uma verificação da agência de notícias AFP ressalta que o médico responsável por um dos laboratórios que realizou a análise afirmou à imprensa local que os resultados dos experimentos foram mal interpretados e que os testes não foram conduzidos de maneira adequada.
É falso que vacina contra poliomielite tenha infectado 500 mil crianças na índia
Também é falsa a afirmação de que Bill Gates estaria por trás de uma campanha de vacinação que resultou em 490 mil crianças infectadas por poliomielite na Índia.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, "em casos muito raros", o vírus inativado usado na vacina contra poliomielite pode mudar geneticamente ao ponto de retomar a capacidade de provocar a doença. Conhecido como poliovírus derivado da vacina, o fenômeno ocorre quando o vírus do imunizante é transmitido de pessoa para pessoa durante um longo período de exposição.
Em outro documento, a entidade destaca que isso ocorre apenas em locais com cobertura de imunização limitada e condições de saneamento e higiene inadequadas. "Quando a população está totalmente imunizada, este tipo de transmissão não é viável", afirma a OMS.
Não há evidências, porém, de que a poliomielite derivada de vacina tenha afetado quase 500 mil crianças na Índia. Segundo informações da OMS, foram registradas 17 ocorrências no país entre 2000 e 2020, das quais 15 ocorreram em 2009.
Uma nota da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBIm) destaca que a taxa de registros dessa condição é de um caso para cada 3,2 milhões de doses aplicadas. "No Brasil, entre 1989 e 2011, foram registrados 46 casos, todos em crianças (um caso para cada 1,6 milhão de doses aplicadas)", diz a página da instituição.
Por outro lado, a fundação Bill & Melinda Gates de fato apoia campanhas de vacinação da poliomielite.
Bill Gates não simulou pandemia de covid-19 em evento
Cunial diz ainda que Bill Gates teria previsto a pandemia em 2018 e, no ano seguinte, participado de uma simulação da crise global provocada pelo novo coronavírus.
A parlamentar se refere ao "Evento 201" promovido pela fundação filantrópica do empresário em parceria com o Fórum Econômico Mundial. O encontro ocorreu em outubro de 2019 na sede do Centro de Segurança em Saúde da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.
Em nota, a instituição de ensino negou que o episódio fosse uma "previsão" da pandemia do SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19. "Modelamos uma pandemia de coronavírus fictícia, mas afirmamos explicitamente que não se tratava de uma previsão. O exercício serviu para realçar os desafios de preparação e resposta que provavelmente surgiriam numa pandemia muito grave.", afirma o comunicado.
O informe destaca ainda que o modelo do potencial impacto do vírus fictício simulado no evento não era semelhante ao novo coronavírus.
Em 2018, veículos de imprensa estrangeiros (1,2) noticiaram declarações de Bill Gates de que o mundo não estava preparado para uma pandemia. O empresário ressaltou na ocasião as dificuldades de uma resposta global à epidemia de ebola e alertou serem necessários mais investimentos em tecnologias para controlar uma crise sanitária internacional.
A preocupação de Gates, no entanto, é mais antiga. Em 2015, o cofundador da Microsoft fez um alerta durante uma palestra.
"Se algo pode matar mais de 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, é mais provável que seja um vírus altamente contagioso do que uma guerra. Não mísseis, mas microorganismos", disse ele. "Bem, um dos motivos para isso é que investimos muito em estratégias antinucleares, mas investimos muito pouco em um sistema que detenha uma epidemia".
Nada disso, porém, sustenta teorias conspiratórias de que o empresário já sabia da crise do novo coronavírus.
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