Desinformação prejudica diagnóstico e terapia precoce do autismo, diz médica

Publicações falsas que circulam nas redes sociais relacionam o transtorno com vacinas e prometem curas milagrosas; veja como identificar fakes sobre o tema

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Foto do author Giovana Frioli
Atualização:
Entrevista com

O aumento no número de diagnósticos de pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) impulsionou uma onda de desinformação sobre o assunto nas redes sociais. Postagens falsas com grande circulação especulam sobre a existência de uma “epidemia”, atribuindo as causas do autismo aos aparelhos digitais ou à vacinação. Há conteúdos que recomendam curas milagrosas, sem comprovação científica, para pais e familiares. Nada disso é verdade — e, neste Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, é importante acessar informações corretas sobre o tema.

A neurologista pediátrica Isabella Peixoto Barcelos, pós-doutoranda do Hospital Pediátrico da Filadélfia, mais antiga instituição de pediatria dos Estados Unidos, entende que a desinformação é um grande problema para a identificação e o tratamento de pessoas autistas. “Informações falsas são limitadores e prejudicam o diagnóstico precoce de crianças e, consequentemente, o trabalho para garantir melhores chances de desenvolvimento. É comum que pais acreditem em terapias milagrosas, perdendo dinheiro e tempo de reabilitação”, afirma ela.

O Estadão Verifica mapeou alguns boatos relacionados ao autismo que estão nas redes sociais e conversou com a médica e pesquisadora Isabella Barcelos sobre eles. Confira:

O Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo é comemorado no dia 2 de abril e foi criadao em 2007 pela Organização das Nações Unidas (ONU). Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Há alguma evidência de que vacinas causem autismo?

Não. Antigamente, foi criada essa teoria porque não se sabia o motivo para o aumento no número de casos de autismo e passaram a especular diferentes razões, entre elas remédios, alimentos, produtos de higiene e também vacinas. Porém, foram feitos vários estudos grandes que comprovaram que nenhum imunizante está associado ao risco de autismo. As recomendações oficiais dos órgãos de saúde é que as pessoas sejam vacinadas – essa é uma informação muito bem estabelecida. Quem é autista, já nasce com o transtorno, pois trata-se de uma alteração genética no cérebro que afeta principalmente os comportamentos de socialização e comunicação. Antes mesmo de recebermos as primeiras vacinas quando crianças, podemos perceber alguns sinais de autismo.

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O que explica o aumento no número de casos de autismo nos últimos anos?

As pessoas estão mais atentas e têm mais informações sobre os sinais do TEA e houve intensificação e mudança nos diagnósticos. Foram redefinidos os critérios para identificação do autismo no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, número 5, feito pela Associação Americana de Psiquiatria. Com essas alterações, se tornou mais abrangente os sinais de autismo; coisas que não eram consideradas na edição anterior, passaram a valer. O aumento no número de casos é ocasionado pela ampliação dos critérios, com crianças que tinham outro diagnóstico sendo identificadas como autistas.

O diagnóstico de adultos com autismo também contribuiu para este crescimento?

Sim, houve aumento de pessoas que não haviam descoberto a condição na infância, como adolescentes e adultos. Antigamente, sobretudo em relação aos casos mais leves, era mais difícil de se diagnosticar. A desinformação sobre o assunto era muito maior que hoje em dia. Às vezes, por estar em uma comunidade menor e recebendo suporte da família ou da escola, o indivíduos adquire habilidades, até que chega um momento da vida, devido ao aumento muito grande de demandas de socialização, e ele não dá conta. Então, percebe que sente e pensa diferente das outras pessoas. Dependendo do nível, isso pode passar “batido” ao longo da vida, com dificuldades de socialização, comunicação e flexibilização sendo mascaradas. O que aparece mais à frente pode ser a ansiedade, depressão e outras questões psiquiátricas, sintomas não tão claros de autismo. Por isso, é importante termos um diagnóstico adequado e trazer um tratamento mais específico, por meio da terapia, que vai permitir que a pessoa lide melhor com as dificuldades dela.

É comum encontrarmos postagens que apontam ‘curas milagrosas’ para o autismo. Isso é existe?

O objetivo do tratamento com uma pessoa autista não é curá-la, já que sabemos que o autismo é uma condição genética; uma programação cerebral. O diagnóstico de autismo é baseado nos mesmos critérios no mundo inteiro e, em diferentes níveis, pessoas autistas demonstram dificuldades e um prejuízo no desenvolvimento de comportamentos sociais, como a comunicação e flexibilização cognitiva. Quando vamos tratar uma criança, por exemplo, a proposta não é “curá-la” ou “transformá-la” em outra e, sim, ensiná-la a adquirir habilidades que são esperadas para a idade dela, para que possa se comunicar na escola, praticar um esporte, fazer um curso… Ou seja, construir habilidades para que se desenvolva dentro do seu próprio potencial, podendo ser mais alto ou mais limitado. Com o tempo de terapia, muitas crianças vão deixando de ter o prejuízo, pois elas aprenderam tantas habilidades que o desenvolvimento é parecido com o de outras crianças da mesma idade.

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A desinformação sobre curas milagrosas também é muito prejudicial porque atinge familiares, que não são técnicos na área e não conseguem julgar as informações que recebem. Diante do que o filho está vivendo um momento de fragilidade, é comum que pais sejam abordados por terapias milagrosas e acabem perdendo dinheiro e tempo de reabilitação.

A exposição às telas e o uso das tecnologias tem alguma relação com o autismo?

Há conteúdos que atribuem o autismo ao uso de tecnologias por crianças, mas isso não é verdadeiro. O transtorno é genético e já nasce com a pessoa. O grande problema das telas pode atingir qualquer criança que passe muito tempo na frente de um computador, televisão ou celular. Ela não está brincando, engatinhando, correndo, pulando, abrindo um livro… Ou seja, a criança fica em uma privação de estímulos sensoriais e motores, como pegar, cheirar, vivenciar, que são importantes nas fases iniciais do desenvolvimento. O excesso de telas pode causar um atraso no neurodesenvolvimento, por não estar sendo exposta e estimulada. Isso não significa que as telas causam autismo; elas podem prejudicar os sintomas em crianças com o transtorno pelo mesmo motivo.

Os testes online se tornaram populares na internet para a identificação do TEA. Eles são indicados?

Para se fazer um teste diagnóstico é super complexo e precisa ser construído com pesquisas, processos metodológicos super rigorosos e ser validado. Os testes online não têm o poder de diagnosticar, principalmente uma condição como o autismo. Eles podem, eventualmente, ajudar uma pessoa a levantar suspeitas e procurar ajuda. No futuro, as tecnologias podem contribuir, pois o número de pessoas autistas realmente cresceu bastante e não temos terapeutas o suficientes no Brasil. Pesquisadores do mundo todo procuram maneiras da Inteligência Artificial contribuir para os diagnósticos e intervenções, mas ainda é muito incipiente e não temos nada do tipo.

Veja dicas para identificar falsas curas milagrosas

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As recomendações da Academia Americana de Pediatria, no documento Manejo de crianças com transtornos do espectro do autismo, pedem que profissionais de saúde encorajem famílias a procurarem informações confiáveis quando se depararem com teorias simplificadas sobre o autismo. De acordo com o manual, os seguintes pontos servem de alerta para falsos tratamentos milagrosos:

  • tratamentos baseados em teorias científicas excessivamente simplificadas;
  • terapias que são consideradas eficazes para vários transtornos ou sintomas diferentes e não relacionados;
  • afirmações de que as crianças reagirão drasticamente e algumas serão curadas;
  • informações que utilizam relatos de casos ou dados anedóticos em vez de estudos concebidos cuidadosamente;
  • falta de referências revisadas por pares ou negação da necessidade de estudos controlados;
  • tratamentos que afirmam não terem efeitos adversos potenciais ou relatados.
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