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Postagem confunde conceitos e engana sobre fluxo migratório de brasileiros

Dados mais recentes do Ministério das Relações Exteriores são de 2022 e estimaram 4,5 milhões de cidadãos vivendo fora do País; movimento não é recente

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Conteúdo investigado: Publicação no X com um mapa e uma tabela com aqueles que seriam os países com o maior número de brasileiros residentes. A legenda diz que “O movimento de saída de pessoas do Brasil está tão grande que já está sendo considerado uma diáspora”, dando a entender que esses brasileiros deixaram o País no momento atual.

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Onde foi publicado: X.

Conclusão do Comprova: É enganoso post no X segundo o qual “o movimento de saída de pessoas do Brasil está tão grande que já está sendo considerado uma diáspora”. Sem mencionar diretamente, o conteúdo sugere que isso seria culpa do atual governo federal. A publicação compartilha um mapa produzido por um perfil especializado em fazer conteúdos a partir de dados, e este, por sua vez, não indica a metodologia utilizada. Embora a lista de países com mais brasileiros esteja bem próxima da realidade, a maior parte dos números difere do dado mais recente, de 2022, divulgado em agosto do ano passado pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), que aponta 4,5 milhões de brasileiros vivendo fora do Brasil.

Diferentemente do que o post leva a crer, os dados não mostram uma saída repentina de brasileiros do País, e sim o número de pessoas que já vivem no exterior no momento da coleta de dados – elas podem ter chegado em outros países há um ano ou há décadas. Esse número acumulado é chamado de estoque por especialistas.

Além disso, segundo a professora Rosana Baeninger, pesquisadora do Departamento de Demografia, do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó e Observatório das Migrações em São Paulo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não é possível chamar essa saída dos brasileiros de “diáspora”, porque isso exigiria a formação de uma comunidade politicamente forte em outro País, desencadeada por uma crise, o que não é o caso do Brasil.

O perfil que fez a publicação no X não se identifica por um nome, nem permite o envio de mensagens, de modo que não foi possível contatá-lo. Os responsáveis por produzir o material, Maps Interlude, também não disponibilizam uma forma de contato em seu site.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

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 Foto: Reprodução/X

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 29 de junho de 2024, o post tinha 1,9 milhão de visualizações.

Fontes que consultamos: Para esta checagem, foram acessados documentos do Ministério das Relações Exteriores que registram estimativas de brasileiros que vivem no exterior desde 2009. Também foram consultados dados sobre a população brasileira vivendo fora do Brasil no Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, foi entrevistada a professora doutora Rosana Baeninger, pesquisadora do Departamento de Demografia, do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” e do Observatório das Migrações em São Paulo da Unicamp.

Qual o tamanho da comunidade brasileira no exterior?

O número mais recente de brasileiros vivendo no exterior é uma estimativa referente a 2022, divulgada em agosto do ano passado pelo MRE: 4,5 milhões de pessoas, distribuídas em 175 países e territórios pelo mundo. “É importante a gente dizer que se trata de um estoque de brasileiros no exterior. Tem pessoas que foram há 60 anos, 50 anos, e estão lá. Não quer dizer que todo mundo saiu em 2022″, explica a professora Rosana Baeninger, da Unicamp.

Esses dados, contudo, não são exatos porque o MRE não tem jurisdição para fazer um censo fora do Brasil. Os números, então, são contabilizados a partir da emissão de passaportes e outros documentos e serviços realizados nas embaixadas, ou por uma matrícula consular – quando um brasileiro se apresenta ao consulado do Brasil no exterior para informar que se mudou, mas essa apresentação não é obrigatória.

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O único momento em que houve uma tentativa de contabilizar a população brasileira no exterior foi em 2010. No censo daquele ano, o IBGE perguntou aos moradores se algum integrante daquele domicílio morava fora do País. O número foi de 495.645 brasileiros vivendo fora do Brasil, bastante inferior aos 3,1 milhões que o MRE estimou para aquele ano. Mas, a pergunta não foi incluída na PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), feita ano a ano, nem no Censo de 2022, por isso não há como comparar.

Sobre os dados do MRE, o número estimado para 2022 é ligeiramente superior ao registrado no levantamento de 2021, que mostrava haver 4,4 milhões de brasileiros morando fora do Brasil, uma alta de 4%. O maior aumento, segundo os dados do MRE, ocorreu em 2013, com relação a 2012: naquele ano, 902.487 brasileiros deixaram o Brasil para viver em outros países, 48% a mais do que no ano anterior.

Para Baeninger, essa grande diferença entre 2012 e 2013 pode estar relacionada com uma melhora na coleta dos dados, mas também tem forte influência do acordo de residência do Mercosul, que permite que brasileiros transitem, morem e trabalhem nos países do bloco. O acordo foi firmado em 2009.

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Haiti e Colômbia viveram ou vivem diáspora, não o Brasil

A pesquisadora Rosana Baeninger explica que o fluxo migratório de brasileiros para outros países não chega a configurar uma diáspora, diferentemente do que alega a publicação investigada. O site responsável por criar o mapa também chama a saída de brasileiros de ‘diáspora’, mas sem atribuí-la a um governo ou afirmar que o fluxo é recente. “(A diáspora) é quando se forma uma comunidade politicamente forte em outros países, e quando tem uma crise. Nós não temos uma diáspora, uma crise em que os brasileiros estão escapando para sobreviver. Não são comunidades políticas fora do Brasil”, afirma.

Ela cita como exemplos de diáspora o que acontece há várias décadas no Haiti e o que ocorreu na Colômbia, quando muitos colombianos foram para a Espanha por causa da violência interna no país. O termo, na realidade, tem um fundo histórico e antropológico. Costuma ser usado para tratar da dispersão dos judeus e dos povos africanos, por exemplo. O dicionário Caldas Aulete define o termo diáspora como a “dispersão de um povo ou de uma classe pelo mundo ao longo dos anos ou dos séculos, por perseguição política, religiosa ou étnica”.

Para Baeninger, a emigração de brasileiros faz parte de um processo histórico. “Antes, a mobilidade social brasileira era muito garantida pela migração interna. Isso vai se decompor a partir dos anos 1990 e começo dos 2000. No século XXI, estamos passando por uma transição. Embora tenhamos muitos postos de trabalho, não temos a qualificação dessas pessoas. E aquela mobilidade social que a migração interna garantia vai se desfazendo”, explica. Por isso, muitos buscam essa mobilidade em outros países

“Não tem a ver com questão ideológica, nem com governo. Essa emigração tem, na ponta, uma questão que é global, dessas novas dinâmicas do emprego. Nesses países de destino, na Europa, Canadá, Estados Unidos, a transição demográfica está avançada e eles não têm mais jovens. Eles vão absorver a mão de obra qualificada deles e, para os serviços secundários, eles vão precisar de uma mão de obra migrante”, afirma a pesquisadora.

Onde os brasileiros mais moram no exterior?

A tabela exibida no post viral lista os 24 países com maior número de brasileiros. Embora a maioria dos países da lista esteja correta, os números são inconsistentes, e não há uma indicação de qual seja a fonte deles. O que se pode dizer é que os Estados Unidos são, há algum tempo, o país com o maior número de brasileiros – 1,9 milhão em 2022 –, seguido de Portugal (360 mil), Paraguai (254 mil), Reino Unido (220 mil) e Japão (206.990), de acordo com os dados do MRE.

Há uma razão histórica para alguns desses destinos receberem muitos brasileiros. Em outros casos, o fluxo migratório tem a ver com geopolítica internacional e com o que os países têm a oferecer aos brasileiros. Segundo Baeninger, já se sabe que os Estados Unidos tinham empresas em Governador Valadares (MG) na Segunda Guerra Mundial, o que ajudou a formar uma rede. O Japão, por sua vez, tinha uma forte política para receber imigrantes.

“Mas, a gente só vai se dar conta dessa dimensão quando chegou ao Primeiro Mundo. Porque já nos anos 1970, quantos brasileiros estavam no Paraguai? Mais de 400 mil. Mas, a gente só vai observar quando começa a ser esse fluxo sul-norte. Os principais destinos eram EUA, Japão e o Paraguai”, aponta.

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O número de emigrantes brasileiros partindo para outros lugares começa a aumentar depois de 2010 à medida que a política e o perfil migratório dos países foi mudando: Portugal, por exemplo, tinha uma migração focada em dentistas, e passou a se receber profissionais da construção civil; o Chile costumava empregar estrangeiros em cargos de gerência, mas hoje há brasileiros em diferentes postos de trabalho.

Por que o Comprova investigou essa publicação: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: O Comprova já checou outros conteúdos que tentavam atacar a situação econômica e política do Brasil: mostrou que um vídeo comparava dados diferentes e enganava sobre déficit das contas públicas; explicou o que é a Selic e porque ela não deve ser analisada a partir de valores médios em cada governo; e mostrou que post enganava ao afirmar que Lula foi afastado de líder em foto oficial do G7.

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