O que estão compartilhando: vídeo reproduz discurso do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de quando ele era deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro, em 2014, no qual ele exalta o golpe militar de 1964 e afirma que o Exército foi chamado pela sociedade a agir naquela ocasião.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Apesar de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Santos terem recebido manifestações contra reformas propostas pelo presidente João Goulart, não é verdade que toda a sociedade pediu um golpe. Uma pesquisa de opinião da época indicou que Jango era aprovado pela maioria da população. Bolsonaro também omite que os militares protagonizaram mais de um golpe no País.
O discurso engana ainda ao atribuir ao Congresso, e não aos militares, a cassação do mandato de Jango. O presidente foi cassado pelo Congresso, mas quando os militares já estavam nas ruas. Também não é correto dizer que, durante a ditadura militar, as pessoas não clamavam por emprego, educação, segurança porque eles eram plenos. E não é verdade que a população não cobrava o fim da corrupção porque ela quase não ocorria. A ditadura foi conhecida pela repressão aos protestos e é notória a corrupção no período.
A assessoria do ex-presidente foi procurada, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Saiba mais: Não é a primeira vez que um conteúdo parecido com este é investigado por agências de checagem. O Verifica mostrou antes como postagens enganavam ao dizer que os militares impediram o comunismo no Brasil e que uma marcha com 1 milhão de pessoas reivindicava o golpe militar. Algumas das declarações de Bolsonaro no discurso foram repetidas em outros momentos, como na entrevista ao Roda Viva em 2018.
Veja a seguir a checagem das principais declarações feitas pelo então deputado:
É verdade que o Exército atendeu a um chamado da sociedade no golpe de 1964?
É enganoso. No discurso, Bolsonaro disse que o Exército “sempre foi instrumento da vontade popular” e que o golpe de “1964 foi uma exigência da sociedade”. Segundo ele, mulheres e empresários “que não queriam ver o seu patrimônio estatizado pelo golpe de esquerda que se avizinhava”. Ele cita ainda a Igreja, a mídia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
A Igreja Católica, por exemplo, apoiou o movimento de 1964 por meio de sua cúpula nos meses que antecederam o golpe, e teve papel fundamental na organização da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Essa manifestação tomou as ruas de algumas cidades, como São Paulo, Santos e Rio de Janeiro. Mas, de acordo com o site Memórias da Ditadura, do Instituto Vladimir Herzog, alguns setores da Igreja atuaram na resistência ao regime após 1964, principalmente após a promulgação do AI-5, em 1968, por conta das violações de direitos humanos.
Apesar dessas manifestações, nem toda a sociedade clamava para que o Exército tomasse o poder. Uma publicação da Câmara dos Deputados mostra que, nas vésperas do golpe, Jango tinha apoio popular, com 70% de aprovação da população. Os números aparecem em uma pesquisa feita na época pelo Ibope, mas que não foram tornados públicos na ocasião. Muitos anos depois, em 2003, as sondagens foram doadas à Unicamp.
De acordo com o professor Carlos Zacarias de Sena Júnior, do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o golpe de 1964 não foi o único protagonizado pelo Exército. Ele aponta que os militares têm atuado na política desde o final do século XIX. Primeiro, porque ficaram descontentes com os desdobramentos da Guerra do Paraguai, conspirando para implantar uma primeira ditadura militar no Brasil.
“Depois, o Exército teria papel decisivo na deposição de Washington Luís em 1930, na decretação do Estado Novo, em 1937, no golpe que depôs Vargas, em 1945, nas crises que quase impediram a posse de JK, em 1955, e depois Jango, em 1961, até o golpe civil-militar de 1964, que mergulhou o País numa ditadura de 21 anos”, listou.
Foi o Congresso Nacional, e não os militares, que cassou o mandato de João Goulart?
Falta contexto. O mandato de João Goulart como presidente da República foi cassado pelo Congresso em 2 de abril de 1964. No entanto, nesta data, as tropas militares já estavam nas ruas – tinham partido de Minas Gerais em 31 de março.
No dia 1º de abril, véspera da cassação do mandato de Jango, o general do Exército Artur da Costa e Silva se autoproclamou “Comandante do Exército Nacional” e líder do “Comando Supremo da Revolução”. Neste mesmo dia, o cargo de presidente da República foi declarado “vago” pelo presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, mesmo com Jango presente no País.
Quem assumiu provisoriamente a Presidência foi o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Alguns dias depois, o general Costa e Silva foi eleito pelo Congresso como presidente, depois de mandatos da oposição já terem começado a ser cassados.
Segundo o discurso de Bolsonaro, Costa e Silva foi eleito pelo Congresso no dia 9 de abril, inclusive com voto de Ulysses Guimarães. Na realidade, esta foi a data do início da cassação dos mandatos, com a promulgação do primeiro Ato Institucional nº 1, que determinava novas eleições para presidente e vice dentro de dois dias.
Costa e Silva foi eleito pelo Congresso em 11 de abril de 1964 e, de fato, recebeu voto do então deputado federal por São Paulo Ulysses Guimarães. O voto dele aparece na ata da sessão conjunta do Congresso Nacional de 11 de abril de 1964. O nome de Ulysses Guimarães é comumente citado nessas ocasiões para contrapor um discurso histórico feito por ele em 5 de outubro de 1988, na promulgação da Constituição Brasileira, em que Ulysses disse ter “ódio e nojo à ditadura”.
“Durante a ditadura, o Congresso permaneceu aberto em alguns períodos apenas para chancelar as decisões dos militares, como se eles desejassem erigir uma fachada de democracia, quando na verdade o que existia era uma ditadura brutal”, explicou Carlos Zacarias.
O Brasil viveu ‘20 anos de pleno emprego, segurança, respeito aos humanos direitos’ durante a ditadura?
No discurso, Bolsonaro diz que o Brasil passou da 49ª para a 8ª economia do mundo durante a ditadura militar, mesmo com crises do petróleo, e que o País viveu 20 anos de pelo emprego e segurança. Segundo ele, as pessoas não protestavam por educação, emprego e segurança, nem contra a corrupção, porque ela não existia, e que os pedidos eram apenas por voto direto. Isso também não é verdade.
“Ao longo da ditadura houve expansão do emprego e crescimento da economia no País, mas isso não se deveu apenas à virtuosidade dos militares. A economia mundial crescia e o Brasil colhia os frutos desse desenvolvimento”, apontou Carlos Zacarias. Esse foi um período conhecido como o “milagre econômico”, por conta do alto crescimento do PIB do País.
No entanto, no final da década de 1970 e nos anos 1980, o Brasil viveu uma explosão da dívida externa e da inflação. Para se ter uma ideia, segundo dados do Banco Central, a dívida externa do Brasil se mantinha na casa dos 3 a 4 bilhões de dólares desde 1959. Em 1970, chegou a US$ 6,24 bilhões; em 1971, a US$ 8,28 bilhões. No ano seguinte, alcançou US$ 11,46 bilhões e seguiu crescendo. Em 1980, já era de US$ 64,25 bilhões.
Sobre a corrupção, o historiador também questiona o que disse Bolsonaro. “A ditadura militar brasileira, como costuma acontecer com quase todas as ditaduras, foi um regime muito corrupto”, explicou. “Foi durante a ditadura que as grandes empreiteiras cresceram na base dos favores e da corrupção desenfreada. As práticas de corrupção, conhecidas dos historiadores, ficavam todas abafadas pela censura”.
Alguns detalhes dessa relação entre empreiteiras e o regime militar aparecem no livro “Estranhas Catedrais”: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-militar, 1964-1988, do historiador Pedro Henrique Pedreira Campos, professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ). O livro foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti de 2015.
Também não faz sentido dizer que os direitos humanos foram respeitados. Segundo os dados reconhecidos oficialmente pelo Estado brasileiro, foram 434 mortos por discordância política. Um levantamento da Human Rights Watch (HRW) estima que 20 mil pessoas foram torturadas durante esse período.
As pessoas não se manifestavam durante a ditadura?
É enganoso. No discurso, Bolsonaro alegou que não havia manifestações contra a corrupção, nem pedindo emprego, educação e segurança porque eles eram “plenos”. Mas não é por isso que as manifestações eram mais raras.
“Ao longo da ditadura, as manifestações de rua praticamente cessaram”, apontou Zacarias. “Não porque não havia o que reivindicar, mas porque havia repressão e medo. No início dos anos 1970, a tática de sequestrar opositores, assassinar e desaparecer com seus corpos foi sistemática. Nessa atmosfera de medo, não havia circunstância para que se realizassem manifestações de rua”.
As manifestações de rua só começaram a ganhar força nos anos 1980, com o enfraquecimento do regime militar. Ao longo do vídeo investigado, inclusive, fotos de manifestações durante a ditadura foram usadas fora de contexto. A primeira delas é uma imagem histórica de uma passeata de artistas no Rio de Janeiro. A foto é usada no vídeo no momento em que Bolsonaro diz que “64 foi uma exigência da sociedade” e que “as mulheres nas ruas pediam o restabelecimento da ordem”.
A imagem mostra as atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell em uma passeata em fevereiro de 1968 contra a censura imposta pelo regime. Nesta matéria do jornal O Globo, a atriz Eva Wilma contou a história da foto.
Outra foto usada no post, curiosamente quando se fala em não haver manifestações, é o registro da Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, o principal protesto contra a ditadura militar no Brasil. A imagem é do fotógrafo Evandro Teixeira, que registrou vários outros momentos do período.
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