Vídeo de médica deturpa realidade ao citar ‘casos e casos’ de doenças relacionadas à vacina da covid

Boletim de monitoramento de segurança dos imunizantes mostra que possíveis eventos adversos graves são raros e equivalem a 0,005% do total de doses aplicadas

PUBLICIDADE

Por Bernardo Costa
Atualização:

O que estão compartilhando: vídeo antigo em que uma médica afirma ser “mentira” que, na época (fevereiro de 2022), crianças estavam respondendo por cerca de 25% dos casos de covid-19. Ela se referia a declarações de um membro da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em sessão temática do Senado. No vídeo, a médica ainda afirmava que a vacina contra a covid-19 estaria provocando “casos e casos” de trombose cerebral, acidente vascular encefálico, infarto do miocárdio, miocardite, embolia pulmonar, trombose de veias, doenças autoimunes, tumores e síndromes de imunodeficiências. A peça de desinformação voltou a circular após a recente inclusão da vacina contra a covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação de crianças a partir de 2024.

O Estadão Verifica apurou e concluiu que: é enganoso. Segundo dados oficiais do boletim de monitoramento de segurança das vacinas, do Ministério da Saúde, não é possível afirmar que as vacinas têm relação com as doenças mencionadas no vídeo. Eventos de trombose e miocardite são citados em notificações de possíveis eventos adversos graves, mas em proporção baixíssima, e sem ter necessariamente relação causal com a vacina. Além disso, não procede a afirmação de que “é mentira” que, no início de 2022, crianças chegaram a responder por cerca de 25% dos casos de covid-19 em algumas partes do mundo. Dados da American Academy of Pediatrics (AAP) mostram que, em janeiro daquele ano, crianças representaram 25.5% das ocorrências registradas nos EUA.

Captura de tela da postagem enganosa Foto: Reprodução/Facebook

PUBLICIDADE

Saiba mais: O vídeo analisado é antigo. Foi gravado por ocasião de uma sessão temática, no Senado Federal, que debateu o passaporte sanitário, em 14 de fevereiro de 2022. Após o encontro, a médica Maria Emilia Gadelha Serra afirmou, no vídeo, que “ouvimos mentiras do tipo de que 25% dos casos (de covid-19) agora são de crianças”. Ela acrescenta: “esses casos não estão acontecendo, os representantes de sociedades de pediatria, de imunizações, de infectologia, aqui literalmente mentindo para a população em rede nacional”.

A médica se referia a declarações do pediatra infectologista Renato Kfouri, que participou da sessão como representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Na ocasião, ele explicou que, à medida que as populações mais velhas vão sendo vacinadas, há um deslocamento proporcional dos casos para os não vacinados. “As crianças representavam menos de 1% dos casos de covid e hoje representam mais de 20% a 25%, dependendo do país”, disse Kfouri, como se pode ver na gravação da sessão.

Publicidade

Como mostrou checagem da Agência Lupa na época, o que Kfouri disse não era “mentira”. O dado aparece em boletim da American Academy of Pediatrics (AAP), que mostra que, na semana terminada em 20 de janeiro de 2022, as crianças responderam por 25.5% dos casos de covid-19 registrados nos EUA naquele período.

Não há confirmação de ‘casos e casos’ de doenças relacionadas à vacina

No vídeo, gravado no início do ano passado, Maria Gadelha diz que a vacina estaria provocando “casos e casos repetidos” de trombose cerebral, acidente vascular encefálico, infarto do miocárdio, miocardite, embolia pulmonar, trombose de veias, doenças autoimunes, tumores e síndromes de imunodeficiências. Não é isso o que mostra o boletim mais recente de monitoramento da segurança das vacinas covid-19 no Brasil. O documento do Ministério da Saúde traz um compilado de dados desde o início da campanha de vacinação, em janeiro de 2021, até a semana 13 de 2023 (19 de março). A análise se refere a casos de Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação ou Imunização (Esavi), que não necessariamente têm relação com a aplicação da vacina. Segundo o ministério, esses eventos “são qualquer ocorrência médica indesejada após a vacinação, não possuindo necessariamente uma relação causal com o uso de uma vacina”.

Vacina contra Covid-19 da Pfizer Foto: Rodrigo Garrido/REUTERS

Maria Gadelha se refere a crianças quando cita as enfermidades supostamente causadas pela vacina. No boletim, na seção dedicada a menores de 18 anos, consta a informação de que foram notificados 734 casos de Esavi considerados graves. Desses, 48 tiveram óbito como resultado, mas nenhum deles teve associação causal confirmada com a vacina (página 15). A análise é baseada em 47.600.374 doses aplicadas até 31 de dezembro de 2022 na faixa etária. Ou seja, a incidência de supostos eventos adversos relacionados à vacina representa 0,0015% do total de aplicações.

De uma forma geral, considerando todas as faixas etárias, o boletim afirma, nas considerações finais (página 19), que, em relação aos eventos graves, “apenas 0,005% do total de doses aplicadas no período analisado (cerca de 510 milhões, incluindo aplicação em adultos) evoluiu para essa classificação, ou seja, a maciça maioria desses eventos não teve qualquer relação causal com a vacinação”.

Publicidade

Na sequência, o boletim afirma que os eventos graves notificados com provável ou possível relação causal com a vacinação foram principalmente: reações de hipersensibilidade graves, síndrome de trombose com trombocitopenia (STT), pericardite e miocardite e síndrome de Guillain-Barré.

Dentre as enfermidades citadas no vídeo, só há registros no boletim de possíveis reações de trombose, AVC e miocardite, mas sem necessariamente ter relação causal com a vacina. E, ainda assim, numa proporção extremamente baixa, e não em um número elevado de casos confirmados, como a médica dá a entender.

O boletim de monitoramento de segurança das vacinas chega à seguinte conclusão (página 20): “Até o momento, os dados indicam que essas vacinas apresentam excelente perfil de benefício versus risco, tendo gerado um impacto extremamente positivo na saúde da população brasileira, com a redução expressiva dos casos, internações e óbitos pela doença”.

Incidência de miocardite: benefício da vacina supera os riscos

Em relação a miocardite (inflamação do músculo cardíaco) e/ou pericardite, o boletim epidemiológico aponta, na página 16, que houve 154 notificações no Brasil, entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022 – incidência de 0,04 casos a cada 100 mil doses aplicadas.

Publicidade

PUBLICIDADE

Segundo o boletim, “a maioria dos casos foi de indivíduos do sexo masculino (64,9%), com mediana de idade de 32 anos, variando entre cinco e 78 anos”. Entre os eventos graves, cinco (3,2%) resultaram em morte. Mas nenhum deles teve relação de causalidade comprovada com a vacina.

Diante da baixa incidência de miocardite como evento adverso pós-vacinação, a última nota técnica do Ministério da Saúde sobre o tema, publicada em outubro de 2022, reforça o benefício da vacina em comparação com o risco de infecção por covid-19 e desenvolvimento das formas graves da doença.

Conclusão semelhante aparece em dados divulgados pelo governo federal em março deste ano, que mostram que a probabilidade do desenvolvimento de miocardite como consequência da infecção por covid-19 é “muito maior” do que entre vacinados. A comparação é feita entre os 154 casos notificados como Esavi em um universo de 510.573.962 doses aplicadas até 31 de dezembro de 2022 – o que corresponde a 0,3 casos por milhão. Já a incidência de casos de miocardite em doentes de covid-19 é de 30 casos por milhão para a população em geral.

Covid-19: menores de 4 anos estão entre os mais afetados em agosto e setembro

No Brasil, agora em que o vídeo voltou a circular – a gravação viralizou no Facebook ao ser repostada em 2 de novembro –, os dados mais recentes do Ministério da Saúde mostram que as crianças estão entre o público mais acometido pela doença. No boletim epidemiológico com dados até a semana 35 de 2023 (2 de setembro), é informado que as faixas etárias com os maiores números de casos e mortes por covid-19 nas semanas 32 a 35 abrangem idosos de 60 anos ou mais e crianças com 4 anos ou menos (Página 17).

Publicidade

Já na página 13 consta que “a maior incidência e mortalidade de Srag (Síndrome Respiratória Aguda Grave) por covid-19 em crianças com até 4 anos de idade ocorreu em 2022 e 2023, quando comparados aos demais anos pandêmicos”. No acumulado do ano, o boletim informa que foram registrados 3.586 hospitalizações e 93 mortes por covid-19 em crianças com até 4 anos. Os dados aparecem, respectivamente, na Tabela 5 (Pág. 15) e na Tabela 6 (Pág.16) do boletim.

Ministério da Saúde reafirma: as vacinas são seguras e eficazes

Em nota enviada ao Estadão Verifica, o Ministério da Saúde reforçou que todas as vacinas ofertadas à população são seguras, eficazes e aprovadas pela Anvisa. E acrescentou que seu benefício é irrefutável, já que o atual cenário da covid-19 no País, com redução de casos graves e óbitos pela doença, é resultado da vacinação.

“Eventos adversos, inerentes a qualquer medicamento ou imunizante, são raros e apresentam risco significativamente inferior ao de complicações causadas pela infecção da Covid-19″, diz trecho da nota.

O que diz a autora do vídeo: Questionada diante da conclusão da apuração, Maria Gadelha encaminhou dados que, segundo ela, corroboram a hipótese de que as vacinas não são seguras. Alguns deles aparecem em um blog apócrifo que supostamente repercute dados do sistema de monitoramento de segurança das vacinas (Vaers), dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), e em relato de um senador norte-americano. No entanto, o próprio CDC, em seu site oficial, afirma que as vacinas são seguras e eficazes.

Publicidade

O sistema Vaers é comumente utilizado por movimentos antivacina para difundir a falsa ideia de que os imunizantes são perigosos. O Vaers é aberto ao público, e qualquer pessoa pode inserir dados nele. A imensa maioria das informações não são verificadas. Ele serve apenas como sistema de alerta para eventuais problemas com vacinas, que precisam ser investigados a fundo para detectar se o fenômeno existe e se tem relação com a imunização. Nunca houve comprovação de efeitos colaterais significativos das vacinas, embora os desinformadores insistam em afirmar o contrário.

Para corroborar sua tese, a médica também encaminhou dados que seriam do governo de Israel (via Google Drive) e de uma operadora de seguro de saúde da Alemanha. Porém os sites do governo de Israel e da Alemanha trazem a informação oficial de que as vacinas contra a covid-19 são seguras e eficazes.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.